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Imagem de Xi Jinping, presidente da República Popular da China

Xi Jinping: palavreado e poder

Este é o quarto de uma série de artigos da «Foreign Policy», ao abrigo de uma parceria editorial da Fundação com esta revista internacional, com o objetivo de facilitar o acesso do público português às reflexões de alguns dos melhores analistas mundiais. Um texto que «centra as atenções na parada militar de Beijing, e na sua importância para a estratégia de Xi Jinping», escolhido por Raquel Vaz-Pinto, investigadora do IPRI-Nova.
8 min

A verdadeira mensagem da China foi transmitida na parada militar em Pequim, e não nos discursos, pompa e circunstância da cimeira da Organização para a Cooperação de Xangai.

No palco, uma série de dançarinos com vestes esplêndidas moviam-se com rapidez, numa performance colorida a que assistiam, de semblante grave, cerca de 30 líderes mundiais. Reunidos em Tianjin para a cimeira da Organização para a Cooperação de Xangai (OCX), os altos dignitários assistiam a uma cerimónia que fora meticulosamente coreografada em Pequim. A sua presença fora pensada como mais uma forma de contribuir para a glorificação da China enquanto epicentro do mundo não ocidental.

Fundada em 2001, a OCX tem sido encarada como uma espécie de clube de ditadores. Ainda que sempre tenham atraído algum interesse por parte dos observadores da China e da Rússia, em especial aqueles se interessam pela Ásia central, as cimeiras da OCX nunca receberam o nível de atenção dos media internacionais de que a recente cimeira em Tianjin foi alvo.

Em larga medida, este recente interesse mediático reflete o mal-estar político que se faz sentir no Ocidente. Conforme demonstrou a reunião de emergência dos líderes europeus em Washington, realizada apenas duas semanas antes, as relações transatlânticas estão atualmente a atravessar uma crise profunda.

De facto, os europeus temem ser abandonados pelos Estados Unidos, mas revelam-se incapazes de conceber uma estratégia para enfrentarem a Rússia por si mesmos; por outro lado, o presidente dos EUA ataca indiscriminadamente amigos e inimigos, com atitudes imprevisíveis, plenas de malícia e de raiva  há, portanto, sérias razões para lamentar o fim prematuro do Ocidente.

António Guterres (...) falou com entusiasmo sobre a necessidade de «construirmos um mundo multipolar», afirmando que a OCX é uma das «condições essenciais» para lá chegarmos.

Perante este cenário, será que a OCX detém a chave para um futuro alternativo? Para alguns dos dignitários que participaram na grande gala do presidente chinês Xi Jinping, a resposta parece ser «sim». Até o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres  que compareceu na China com o objetivo evidente de assegurar a relevância da sua organização , falou com entusiasmo sobre a necessidade de «construirmos um mundo multipolar», afirmando que a OCX é uma das «condições essenciais» para lá chegarmos.

A realidade, porém, é bem mais complexa do que possa parecer. A OCX sempre foi menos do que a soma das suas partes. No passado, cumpriu uma função muito específica: ajudar a China e a Rússia a conciliarem as suas diferenças na Ásia central. Depois, mais recentemente, a adesão da Índia, do Paquistão, do Irão e da Bielorrússia tornou mais difusa a missão da OCX. Hoje, esta organização serve para pouco mais do que gerar oportunidades para requintados banquetes multilaterais.

A difícil situação da OCX ficou patente na intervenção de Narendra Modi, o primeiro-ministro indiano, em Tianjin. De acordo com as suas diplomáticas palavras, Modi teve uma conversa «frutífera» com Xi, e Xi, por sua vez, sublinhou que a Índia e a China não são «ameaças», mas sim «oportunidades mútuas de desenvolvimento».

Estas declarações, porém, não refletem a realidade. Pelo contrário, servem para encobrir a rivalidade que de facto existe entre a China e a Índia, na luta pela liderança no Sul Global, bem como as importantes disputas económicas e o conflito transfronteiriço, aparentemente insolúvel e que há não muito tempo, em 2020-2021, deu origem a vários confrontos sangrentos.

A OCX simplesmente não tem capacidade para atuar no que toca a essas profundas divergências. Não é uma aliança. Não é um eixo. Não é um acordo. É uma plataforma de diálogo e pouco mais.

Assim, não é de estranhar que, após uma leitura atenta, se perceba que a declaração conjunta da cimeira  composta por 6000 palavras e pomposamente intitulada «Declaração de Tianjin»  não passa de um entediante conjunto de banalidades. Contém uma pitada sobre terrorismo, uma pitada sobre inteligência artificial, uma pitada sobre turismo, uma pitada sobre educação e ainda outra sobre o recuo dos glaciares.

Não contém, no entanto, nenhum plano para a criação de um mundo pós-ocidental.

Putin tirou o melhor partido da reunião no Alasca, uma vez que pôde comparecer na cimeira chinesa como o improvável líder que, de entre todo o grupo, goza da melhor relação com Trump.

Em vez de conteúdos substantivos, na cimeira abundaram as imagens sugestivas e marcantes. Ali, vimos Xi em animada discussão com o presidente russo Vladimir Putin e o primeiro-ministro Modi. Acolá, vimos Modi e Putin viajando juntos numa limusina. Depois, vimos todos os participantes sentados à volta de uma grande mesa, cada qual lendo a sua declaração previamente redigida.

Xi falou sobre o esforço que é necessário para «contrariar a mentalidade típica da Guerra Fria, o confronto entre blocos e as práticas de intimidação»  uma crítica velada aos Estados Unidos  e sobre a necessidade de «defender a equidade e a justiça» (não entrou em detalhes). No seu discurso, Modi asseverou que a sigla OCX [SCO, em inglês] não corresponde a «Organização para a Cooperação de Xangai» (talvez lhe soe demasiado chinês), mas sim a «Segurança, Conectividade e Oportunidade».

Por sua vez, Putin mencionou os «entendimentos» com Donald Trump, que supostamente terá alcançado no encontro no Alasca. As críticas que dirigiu nesta cimeira aos Estados Unidos foram claramente contidas. Aliás, Putin tirou o melhor partido da reunião no Alasca, uma vez que pôde comparecer na cimeira chinesa como o improvável líder que, de entre todo o grupo, goza da melhor relação com Trump.

Neste encontro OCX+, realizado no dia 1 de setembro (em que participaram também vários parceiros e observadores), Xi aproveitou para apresentar aos convidados a sua nova «Iniciativa de Governação Global». Na senda da «Iniciativa de Segurança Global 2022» e da «Iniciativa de Civilização Global 2023», esta nova iniciativa propõe receitas altruístas e penosamente irrealistas para rumarmos a um mundo feliz. Na prática, tais receitas significam muito pouco, sobretudo para uma China onde impera o realismo brutal.

No seu auge, o discurso de Xi  que foi muitíssimo pouco memorável  invocou uma citação de Lao Zi, o velho filósofo taoista chinês: «Cultive o grande princípio [de Tao], e o mundo segui-lo-á.» Mas, tal como acontece com o Tao invocado por Lao Zi, a grande visão de Xi é profundamente obscura. Não pode ser vista nem nomeada. E, no entanto, o mundo deve segui-la.

Ao contrário da visão sugerida por Xi, evocando um mundo feliz de cooperação mutuamente benéfica, a parada militar sugeriu que é bem possível que alguém venha a perder – e que esse alguém não será certamente a China.

Alguns dos convidados em Tianjin (incluindo Modi) voltaram para casa logo depois da cimeira. Outros seguiram para Pequim, onde assistiriam ao segundo ato: uma parada militar que assinalou o 80.º aniversário do fim da Segunda Guerra Mundial.

Ao contrário da visão sugerida pelas palavras de Xi, evocando um mundo feliz de cooperação mutuamente benéfica, a parada militar sugeriu que é bem possível que alguém venha a perder – e que esse alguém não será certamente a China.

Em vez das banalidades e da perspetiva geral apresentada na cimeira da OCX, Pequim transmitiu uma mensagem mais provocatória, com a aprovação de um pequeno núcleo de países. Neste exuberante espetáculo, estiveram presentes Putin, o presidente iraniano Masoud Pezeshkian e até o líder norte-coreano Kim Jong Un. Da Europa, esteve presente Robert Fico, o primeiro-ministro eslovaco especialista em paradas militares, que também compareceu à parada militar de Putin em maio.

Envergando um traje militar, Xi leu o seu breve discurso:

«A nação chinesa é uma grande nação que não teme a violência», declarou. Depois, instou o povo chinês a «seguir resolutamente o caminho do socialismo de características chinesas» e a «incorporar e pôr em prática o grande espírito da Guerra de Resistência [contra o Japão]».

(...) a ambição, por parte de Pequim, de alcançar a supremacia global assenta numa base sólida: a reluzente armadura e os soldados marciais da sua máquina de guerra emergente.

No ar, sobrevoavam os aviões. Ao som de uma banda militar, a praça era atravessada por tanques, veículos blindados, armas laser e mísseis nucleares, cuidadosamente etiquetados em inglês, para facilitar a sua identificação.

Com uma ressonância mais maoista do que taoista, Xi recorreu a esta ostensiva demonstração do poderio militar chinês para que o público mundial  e os Estados Unidos em particular  nunca se esqueçam de que a ambição, por parte de Pequim, de alcançar a supremacia global assenta numa base sólida: a reluzente armadura e os soldados marciais da sua máquina de guerra emergente.

A parada militar parece ter alcançado esse objetivo.

«Que o presidente Xi e o maravilhoso povo da China tenham um dia longo e fantástico de celebração», escreveu Trump nas redes sociais. «Queira transmitir os meus mais calorosos cumprimentos a Vladimir Putin e Kim Jong Un, enquanto conspiram contra os Estados Unidos da América.»

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