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Uma família toma o pequeno-almoço na cozinha, mas o pai e os dois filhos estão a ver ecrãs de computador ou telemóvel. Crédito: Canva

Ser família numa sociedade digital

Como é que os ecrãs estão a redefinir os laços familiares? A comunicação das famílias estão a ser prejudicada por uma utilização cada vez mais forte dos ecrãs, com uma redução significativa da atenção, no tempo de conversa e na escuta ativa. Um problema que está a mudar as relações de crianças a adolescentes e os pais, alerta neste artigo Patrícia Dias.
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Infância mediada por ecrãs

Desde tenra idade, as crianças são expostas a dispositivos digitais. A naturalização do uso de ecrãs na infância é evidente em atividades como refeições, momentos de lazer e na hora de dormir. Esta integração precoce pode ter impacto no desenvolvimento cognitivo e emocional, especialmente quando substitui interações humanas.

A mediação parental das tecnologias desempenha um papel crucial neste contexto, uma vez que as crianças pequenas não têm ainda todas as competências necessárias para autorregularem as suas práticas digitais ou tomarem decisões críticas e informadas a este respeito. A partir do projeto pioneiro EU Kids Online, liderado por Sonia Livingstone, especialista mundial em crianças, jovens e media digitais e professora de Psicologia Social na London School of Economics (LSE), têm sido  realizados vários estudos sobre a forma como as tecnologias digitais moldam as dinâmicas familiares (tendo eu participado em vários trabalhos sobre este tema no âmbito da União Europeia).

Um tema recorrente nestes estudos é a mediação parental, ou seja, as diferentes estratégias que os pais definem e implementam para regular o papel destas tecnologias na vida familiar. Muitos progenitores adotam estratégias restritivas, assentes na limitação do tempo de ecrã e no uso de ferramentas de controlo parental, ao passo que outros seguem estratégias permissivas, sobretudo quando não têm literacia digital nem mediática suficientes para terem uma intervenção mais ativa. Há também pais com uma atuação intermitente, que em certas ocasiões regulam as práticas digitais dos filhos, mas noutras são permissivos, quando têm menos tempo ou necessitam de entreter ou de distrair a criança, por exemplo.

Entre todas estas possibilidades, os especialistas elegem a mediação ativa, que envolve conversas sobre as práticas e os conteúdos consumidos, e a coparticipação, em que pais e filhos utilizam a tecnologia em conjunto, como abordagens eficazes para mitigar os potenciais efeitos negativos do uso excessivo de ecrãs em idades mais jovens.

Crianças com menos de dois anos não devem ser expostas a ecrãs, exceto para videochamadas, recomenda a OMS.

Em 2019, a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomendou que crianças com menos de dois anos não sejam expostas a ecrãs, exceto para videochamadas, e que, entre os dois e os quatro anos, o tempo de ecrã seja limitado a uma hora por dia, no máximo. Nos últimos anos, muitos pais têm privilegiado práticas mais restritivas, evitando a exposição precoce dos seus filhos a dispositivos digitais, em consonância com estas diretrizes.

Já os pais de crianças mais velhas e de adolescentes explicam que é difícil resistir à pressão dos pares, pois os filhos começam a solicitar um smartphone insistentemente quando percebem que muitos dos seus amigos já possuem um dispositivo destes. A escola tem vindo a reforçar esta orientação mais restritiva.

Nos últimos anos, vários países têm reavaliado o papel dos dispositivos digitais no ambiente educativo, implementando restrições ao seu uso para melhorar a concentração dos alunos e promover interações sociais mais saudáveis. Países como França, Espanha e Grécia adotaram políticas que limitam ou proíbem o uso de telemóveis nas escolas, e o mesmo tema está atualmente em debate em Portugal, com vários estabelecimentos de ensino a avançarem já com essa proibição. A Suécia, por exemplo, foi pioneira na substituição dos livros escolares por manuais digitais, mas recentemente decidiu reverter essa medida. Após observar uma descida nos resultados escolares, o governo sueco iniciou, em 2022, um programa para reintroduzir livros em formato impresso nas escolas.

Estas mudanças refletem uma crescente consciência sobre os impactos do uso excessivo de ecrãs na infância. À medida que se reconhece a importância das interações presenciais e do brincar offline para o desenvolvimento saudável das crianças, torna-se essencial explorar como os laços afetivos são construídos na primeira infância, especialmente num contexto em que a presença digital é constante.​

Contudo, é importante não esquecer os três direitos digitais que Sonia Livingstone sugeriu acrescentar à Convenção sobre os Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas (ONU): o direito à participação no mundo digital e a beneficiar das oportunidades que este proporciona; o direito à proteção por parte dos adultos contra os riscos que podem encontrar online; e o direito à provisão, ou seja, a receber dos adultos os conhecimentos e as competências necessários para se tornarem utilizadoras informadas e críticas do mundo digital, atuando de modo consciente, seguro e benéfico (Livingstone et al., 2017).

A descida nos resultados escolares levou o governo sueco a reintroduzir livros em formato impresso nas escolas.
Construção dos laços afetivos na primeira infância

A formação de vínculos afetivos sólidos na infância é fundamental para o desenvolvimento emocional e social das crianças. A atenção partilhada, o contacto visual e o brincar offline são componentes essenciais para estabelecer relações de confiança e empatia. No entanto, a presença constante de dispositivos digitais pode interferir, levando a uma «presença ausente» por parte dos pais, em que estes estão fisicamente presentes, mas emocionalmente distantes devido à sua distração com os ecrãs. Estes mesmos pais, que utilizam tecnologias digitais para manter uma vigilância constante quando estão fisicamente afastados dos filhos — solicitando frequentemente fotos e vídeos quando as crianças estão na creche ou monitorizando a sua localização através de aplicações —, tendem a distrair-se com os ecrãs quando estão presencialmente com os filhos.

Frequentemente, as crianças são descritas como estando «viciadas» nos ecrãs, pois dedicam muito do seu tempo a atividades realizadas nestes dispositivos e preferem essas atividades a outras, como conviver com a família, por exemplo. Mas não nos podemos esquecer de que as crianças, sobretudo na fase mais inicial do seu desenvolvimento, aprendem muito por observação e imitação, e estão muitas vezes rodeadas de adultos que também têm a atenção focada nos seus smartphones e computadores pessoais. O reverso da moeda da «presença ausente» dos pais é a «solidão acompanhada» das crianças. Esta desconexão pode comprometer a sua capacidade de desenvolver competências sociais e emocionais, afetando a autoestima e a qualidade das futuras relações interpessoais. É, portanto, essencial que os pais estejam conscientes do impacto do seu próprio uso das tecnologias digitais nas dinâmicas familiares e nos laços que constroem com os filhos.

Muitos adultos usam excessivamente dispositivos digitais. A atenção dividida dos pais pode levar a sentimentos de negligência e insegurança nos filhos.
Estratégias para melhorar a comunicação e a qualidade do tempo em família

A comunicação familiar tem sido afetada pela crescente presença dos ecrãs, com uma redução significativa no tempo de conversa e na escuta ativa entre pais e filhos. A prática do phubbing, que consiste em ignorar alguém para se concentrar no telemóvel, tornou-se comum, prejudicando a qualidade das interações familiares.​

Não são apenas as crianças e os adolescentes que estão «viciados» nos ecrãs e não comunicam com os pais. Muitos adultos também usam excessivamente dispositivos digitais, o que resulta numa diminuição da qualidade das interações com os filhos, afetando negativamente o desenvolvimento linguístico e emocional das crianças. A atenção dividida dos pais pode levar a sentimentos de negligência e insegurança nos filhos, impactando negativamente as dinâmicas familiares.​ Um estudo realizado em Portugal sobre processos de desconexão digital de jovens, baseado em entrevistas a adolescentes que procuravam desligar-se de alguma dimensão do mundo digital — redes sociais, jogos online, pornografia, apostas, compras — oferece testemunhos impressionantes sobre as suas experiências ao longo desse processo. O sentimento de que não podiam recorrer aos adultos (pais, professores, outros cuidadores) para pedir ajuda, por os considerarem tão ou mais «viciados» do que eles, é recorrente (Dias et al., 2023). Os jovens estão, efetivamente, mais sozinhos do que se pensa.

Estabelecer espaços e horários livres de dispositivos - durante as refeições e antes de dormir - ajuda a reforçar os laços familiares.

Para mitigar os efeitos negativos do uso excessivo de ecrãs — tanto em jovens como em adultos — é fundamental implementar estratégias que promovam um uso equilibrado das tecnologias digitais no ambiente familiar. Estabelecer espaços e horários livres de dispositivos, como durante as refeições e antes de dormir, pode ajudar a reforçar os laços familiares e a promover interações mais significativas.​ Projetos de «desintoxicação digital» têm sido adotados por algumas famílias, visando reduzir a dependência tecnológica e incentivar atividades offline que fortaleçam os vínculos afetivos. Testemunhos de famílias que participaram num estudo que tinha como objetivo avaliar os resultados da implementação deste tipo de mudanças relataram melhorias na comunicação, no bem-estar emocional e na coesão familiar.​

É importante que os pais adotem uma abordagem consciente e crítica em relação ao uso das ferramentas digitais, servindo de modelo para os filhos. A mediação parental deve ter como finalidade última a aquisição de conhecimentos e o desenvolvimento de competências necessários para que as crianças e os jovens sejam capazes, à medida que crescem, de autorregular o seu uso das tecnologias, evitando a utilização excessiva, bem como de tomar autonomamente as melhores decisões relativamente às suas práticas digitais. Não existem soluções «one size fits all» nem fórmulas mágicas para uma boa utilização das tecnologias, mas cada um deve ser capacitado, durante o seu desenvolvimento, para fazer as melhores escolhas para si próprio.

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