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Imagem de tr~es líderes políticos em confronto

Tripartição ou a pulverização do espaço político?

Num contexto parlamentar em que nenhum dos três grandes partidos consegue impor a sua vontade aos outros, o espectro da crise política permanece no horizonte, escreve o professor de Direito Miguel Nogueira de Brito. Para o especialista, perante este cenário, uma coisa parece certa: «o desenho constitucional do funcionamento da Assembleia da República não está preparado para combater a consequências potencialmente nefastas» desta nova realidade.
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A recente aprovação da irresponsável proposta do PS, com o apoio dos restantes partidos de esquerda e a conivência do Chega, para acabar com as portagens das ex-SCUT (definitivamente introduzidas em 2010 pela mão, pasme-se, do próprio PS), torna visível o problema da tripartição do espaço político no nosso sistema partidário e no funcionamento do Parlamento.

É um problema bem conhecido, que exprime o desaparecimento de um contexto político em que a principal clivagem se fazia entre uma esquerda e uma direita fundamentalmente mobilizadas em torno da oposição entre uma política social progressista e a proteção da iniciativa individual e das empresas (tendo como referente último a oposição entre o comunismo e todas as demais correntes ideológicas), mas ancorada na base de um consenso amplo sobre a existência do Estado social.

Em vez deste contexto, largamente correspondente aos usualmente designados «Trinta anos gloriosos», que marcam, na Europa, o período de extraordinário desenvolvimento posterior ao fim da Segunda Guerra Mundial, deparamo-nos hoje com uma situação muito diversa.

 

Hoje há uma divisão do voto entre centros urbanos e zonas rurais: a esquerda está fortemente implantada nos meios populares urbanos, as classes populares das zonas rurais voltam-se para a direita radical e as classes altas mantêm o seu apoio ao centro liberal.

Neste novo contexto, em vez de uma bipartição transversal ao espaço político nacional, observa-se uma divisão do voto entre centros urbanos e zonas rurais: a esquerda está fortemente implantada nos meios populares urbanos, as classes populares das zonas rurais voltam-se para a direita radical (muitas vezes com transferência de voto direta dos partidos comunistas para os partidos da direita radical) e as classes altas mantêm, onde quer que se encontrem, o seu apoio ao centro liberal.

Segundo alguns, esta tripartição exprime a desestruturação ideológica do eleitorado tradicional da direita através de uma clara oposição de valores entre os eleitores da direita moderada e os da extrema-direita em questões relacionadas com a autoridade e a imigração.

É possível, com efeito, defender que a divisão ideológica entre o eleitorado da direita moderada e o da extrema-direita não se encontra na esquerda e é precisamente esse o pressuposto de muitos daqueles que falam de uma tripartição do espaço político.

O eleitorado dos partidos de extrema-esquerda tem certamente algumas características próprias, como a sua dimensão de protesto contra o funcionamento do sistema político, mas não teria uma natureza fundamentalmente diferente da do eleitorado de outros partidos de esquerda. Tal como o eleitorado de grande parte dos governos de esquerda, também o dos partidos da esquerda mais radical é caracterizado, antes de tudo, pela sua atitude de rejeição do liberalismo económico.

O espaço ideológico, que na Europa quase todos os governantes de esquerda foram deixando vazio, foi progressivamente ocupado em torno de questões culturais e identitárias.

Este modo de ver esquece, todavia, que a nova constelação do espaço político é, em grande medida, o resultado do desenvolvimento das propostas de uma Terceira Via, formuladas por políticos do centro-esquerda como Tony Blair e Gerhard Schröder.

Estas propostas estão na origem da ausência de distinções significativas em matéria de política social dos partidos do centro-esquerda em relação aos partidos da direita moderada e estão na base das tentativas de redefinir a base ideológica da esquerda.

O espaço ideológico - que na Europa quase todos os governantes de esquerda desde o fim do comunismo foram deixando vazio - foi progressivamente ocupado em torno de questões culturais e identitárias. E assim se deu lugar à ocupação do espaço público por uma pletora de novos conceitos da política do ressentimento, como o wokismo, o cancelamento, o interseccionalismo, o «decolonialismo» e, em geral, o domínio do império do politicamente correto.

A questão que os próximos tempos vão esclarecer consiste, assim, em saber se a cisão entre direita moderada e extrema-direita não encontrará um forte paralelo entre a esquerda moderada e a extrema-esquerda. Na verdade, é possível sustentar que também a esquerda é afetada por fraturas marcantes e intransponíveis. Talvez não tanto em torno das questões relacionadas com a imigração, mas certamente em resultado de questões relacionadas com a política da vitimização. Não por acaso, o título sugestivo do último livro de Susan Neiman, uma conhecida filósofa progressista, é «A Esquerda não é Woke».

Nenhum dos três grandes partidos consegue impor a sua vontade política aos demais. O desenho constitucional do funcionamento da Assembleia da República não está preparado para combater as consequências potencialmente nefastas da atual tripartição do espaço político.

Conseguirá a direita moderada encontrar propostas para os problemas das migrações na Europa sem ceder à xenofobia? Saberá a esquerda moderada deixar de procurar compensar a sua manifesta incapacidade para lidar com a «questão social» nos tempos atuais através das cedências à política da vitimização (como sucedeu recentemente com o lamentável exemplo da tentativa de redução dos símbolos nacionais a logotipos)?

Sobretudo, conseguirão a direita e a esquerda do que se costumava designar como o centro encontrar uma nova plataforma de entendimento comum, depois do desaparecimento do comunismo? Tudo leva a crer que não. E, todavia, não faltam no contexto político mundial atual candidatos fortes a uma oposição que pareceria, à partida, capaz de unir todas as forças políticas moderadas.

Independentemente da evolução futura da atual tripartição do espaço político uma coisa parece certa. O desenho constitucional do funcionamento da Assembleia da República não está preparado para combater a suas consequências potencialmente nefastas.

Num contexto parlamentar em que nenhum dos três grandes partidos consegue impor a sua vontade política aos demais é claro o incentivo para a formação de coligações negativas entre os dois partidos (o PS e o Chega) que não integram o Governo e enorme o risco de este último não reunir condições para levar o seu mandato até ao fim, como recentemente assinalou Jorge Reis Novais.

Sem dúvida que, segundo sugere o mencionado professor da Faculdade de Direito de Lisboa, esta situação aconselharia uma revisão da Constituição, introduzindo o conceito de moção de censura construtiva (nos termos da qual o derrube do Governo em consequência de um voto parlamentar de censura pressupõe a capacidade de apresentar uma alternativa viável por parte dos subscritores da moção) e o reforço dos limites financeiros da apresentação de projetos de lei pelos deputados, para além da lei-travão consagrada no artigo 167.º, n.º 2, da Constituição.

O espectro da crise política permanece no horizonte...Bem-vindos ao admirável novo mundo novo da política no século XXI.

Vale a pena a este propósito sublinhar que o projeto de lei apresentado pelo PS que elimina as taxas das portagens das ex-SCUT contorna as restrições da lei-travão com um expediente aparentemente simples, ao determinar que a correspondente lei entrará em vigor no dia 1 de janeiro de 2025.

Ora, do artigo 167.º, n.º 2, da Constituição resulta apenas que os Deputados não podem apresentar projetos de lei que envolvam, no ano económico em curso, aumento das despesas ou diminuição das receitas do Estado previstas no Orçamento. Mas nada impede, assim terão pensado os subscritores do projeto de lei, um aumento das despesas no ano económico subsequente.

Este singelo expediente mostra bem que o problema dificilmente será resolvido com revisões da Constituição, para as quais existe, de resto, pouca ou nenhuma viabilidade no contexto político atual. A questão é de confiança política e interinstitucional, um bem cuja escassez atual a ausência do chefe da oposição na tomada de posse do novo Governo deixa avaliar com exatidão.

E assim o espectro da crise política permanece no horizonte. Poderá o mesmo ser apenas superado através de uma aproximação entre a AD e o Chega, como parece sugerir Reis Novais? E conseguirá o PS manter a distância em relação à extrema-esquerda que a, afinal efémera, maioria absoluta de 2022 deixava antever? Bem-vindos ao admirável novo mundo novo da política no século XXI.

 

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