Crise política e falta de integridade, até quando?
A corrupção é um crime de oportunidade. E as oportunidades florescem na opacidade, nos conflitos de interesse, na informalidade e na arbitrariedade da decisão pública e na falta de regras éticas. Políticas de bom governo, administração aberta e de prevenção da corrupção devem ter como objectivo proteger o interesse público, diminuindo a ocorrência e os riscos daquelas oportunidades.
Costuma dizer-se que a política tem horror ao vazio. Contudo, a política demitiu-se de cumprir a sua função na prevenção da corrupção. O poder judicial entrou com a repressão, que é a sua função, no espaço da prevenção que a política deixou vazio.
A sucessão de controvérsias e investigações judiciais de que temos sido testemunhas nos últimos anos (décadas?) em Portugal mostram que as oportunidades de corrupção, em sentido lato, abundam, que a prevenção tem falhado redondamente e que a prestação de contas e a responsabilização de conduta dos responsáveis políticos não é uma prioridade no debate político.
Se não é avisado fazer considerações sobre investigações em causa nem o grau de envolvimento de responsáveis políticos pela devida presunção de inocência e pela ausência de conhecimento de todos os factos, podemos e devemos olhar para o panorama da prevenção e compreender como chegámos aqui.
Porque importam standards éticos e culturas de integridade?
Cada individuo e, por maioria de razão, cada político, tem a sua moral individual, ou seja, um conjunto de princípios, valores e crenças morais que determinam o que, para si, é certo ou errado e que guiam as suas acções pessoais e deter. Esta moral pode variar de uma pessoa para outra, pelo que não é suficiente em contextos colectivos, institucionais e de representação.
A ética coletiva busca estabelecer um padrão comum de valores e comportamentos, assegurando, para dentro e fora das instituições, orientação, confiança e previsibilidade das condutas. É por isso imprescindível que as instituições políticas definam as suas próprias regras éticas, ou seja, standards comuns aos diferentes indivíduos que as compõem.
Um conflito de interesses não é, só por si, ilegal, mas, para além de gerar desconfiança, pode facilitar oportunidades de corrupção, favoritismo ou tráfico de influência. Pode facilitar o acesso a decisores políticos ou a parcialidade das suas decisões, ainda que de forma inconsistente.
As ofertas de bens materiais, refeições, bilhetes para eventos ou viagens podem não «comprar» decisões, mas tem como objectivo seduzir, criar intimidade, ganhar a confiança do político, podendo, mais à frente, abrir espaço para as ditas oportunidades de corrupção ou para simples cunhas.
Por seu lado, a informalidade promove a falta de registos que permitam reconstruir a fita do tempo de uma decisão político-administrativa e abre espaço a favores. A opacidade também apaga o rastro das decisões, diminui a capacidade de escrutínio e a probabilidade de detecção de irregularidades. Em resumo, são o oposto da boa administração da coisa pública.
O que falha em Portugal e como chegámos onde chegámos?
Em Portugal, apesar das queixas de judicialização da política, os standards éticos foram sobretudo balizados na lei, os alguns comportamentos foram criminalizados e a monitorização e cumprimento da lei foi entregue às autoridades judiciais.
Até há bem pouco tempo era a secção do Ministério Público no Tribunal Constitucional que verificava as declarações patrimoniais e de incompatibilidades dos detentores de cargos políticos. Quando se levantaram suspeitas sobre abusos nos subsídios de deslocação dos deputados ou de falsificação de presenças, a Assembleia da República foi incapaz de lidar com a situação e chamou o Ministério Público. E também foi este que teve de investigar se o pedido de lugares de camarote num estádio de futebol por parte do então ministro das Finanças era legal ou não, apesar de já existir um Código de Conduta do Governo.
Ao mesmo tempo, testemunhamos com demasiada frequência as instituições políticas, seja o Parlamento ou o governo, a demitirem-se de definir e impor uma ética colectiva, deixando aos indivíduos a avaliação das suas condutas segundo dos seus parâmetros morais individuais e não segundo os padrões éticos colectivos (que ou não existem ou não são valorizados dentro da instituição).
Quando ocorrem situações de potenciais conflitos de interesse o mais comum é assistirmos aos próprios envolvidos a rejeitarem, com toda a convicção, qualquer conflito, como se alguém fosse bom juiz em causa própria, e às instituições a ficarem em silêncio.
Por outro lado, subestimam-se evidentes incompatibilidades, ignoram-se riscos de corrupção, desculpam-se condutas duvidosas, promovem-se informalidades, como consultores com direitos de membros de governo, mas sem as devidas obrigações ou escrutínio. Quando um escândalo é espoletado, sustenta-se a situação até ao limite, com esperança de que o alucinante ciclo noticioso desvie as atenções para outro problema. Mas são raras as vezes em que não havia já sinais ou avisos de que determinada situação acabaria por gerar alguma polémica.
Chegámos a uma situação insustentável? Quais as soluções?
Pela primeira vez, um governo caiu devido a suspeitas de corrupção. Mas atrás deste episódio há um rasto de outras investigações judiciais, polémicas, demissões, conflitos de interesse e situações dúbias ou indesejáveis que nunca foram adequadamente tratados pelos responsáveis políticos e que têm vindo a minar a autoridade e a credibilidade das instituições e dos actores políticos.
A vertigem dos acontecimentos - as constantes fugas de informação sobre a investigação, a crise politico-constitucional e a campanha eleitoral que se avizinha – tem impedido uma reflexão sobre como aqui chegámos e como daqui podemos sair.
Na minha opinião, são necessários três elementos, dois relativamente fáceis de definir e implementar e um terceiro bastante mais difícil.
O primeiro são regras abrangentes, claras, sem alçapões e que estejam interligadas, criando uma espécie de ecossistema de integridade. Sejam leis ou códigos deontológicos, é fundamental tratar conflitos de interesse como um assunto de gestão diária, expandir as regras que regem os empregos pós-cargo político e evitam as portas giratórias, regular o lobby, aumentar os mecanismos de transparência e – tantas vezes esquecido neste debate – melhorar as regras do financiamento político.
Todos estes instrumentos devem ser coerentes e ligados entre si. Por exemplo, não faz sentido regular o lobby de interesses fora do sistema político, sem regular os interesses privados dos deputados no Estatuto de Deputados ou impedir, no Regime do Exercício de Funções por Titulares de Cargos Políticos e Altos Cargos Públicos, que antigos membros do governo façam lobby junto dos seus antigos colegas.
Também não faz sentido impedir, através de regras de ofertas e hospitalidade, que deputados e membros do governo recebam benefícios de privados, sem clarificar as leis de financiamento político, uma vez que, com frequência, as contrapartidas não são para benefício próprio, mas em prol do partido.
O segundo elemento é o aconselhamento e a supervisão do cumprimento das regras e a aplicação de sanções em caso de prevaricação.
Nos últimos anos, temos assistido à adopção de instrumentos como códigos de ética, mas a sua interpretação continua a ser deixada ao individuo e seu cumprimento parece opcional. Já no que se refere às leis, é a inércia institucional que reina: uma Entidade da Transparência invisível, um Tribunal Constitucional que não abre processos de averiguações por iniciativa própria, mesmo quando os factos são do domínio público, uma Comissão Parlamentar para a Transparência em permanente silêncio, uma incapacidade institucional de impor sanções e muitos aspectos das regras éticas que escapam à supervisão de qualquer entidade, como os empregos pós-cargo políticos.
É por isso fundamental que existam sanções disciplinares proporcionais à violação da regra e que não se limitem à perda do mandato, sanção tão extrema que ninguém se atreve a aplicá-la.
O aconselhamento e a monitorização do cumprimento das regras têm de ser levado a sério por entidades com os devidos poderes e recursos. Exemplos de diferentes soluções institucionais não faltam, bastando olhar para o Reino Unido, França, Canadá ou Chile.
Finalmente, o terceiro elemento, a vontade política para definir, implementar e apoiar os dois elementos anteriores. Como se atinge tão famigerada vontade política? Atinge-se quando os custos da informalidade, da opacidade, dos facilitismos e dos favores forem maiores do que os ganhos. Atinge-se quando os incentivos para ignorar os riscos forem menores do que a probabilidade de as irregularidades serem detectadas.
Até agora, parece que os actores políticos acreditam – e provavelmente com razão – têm mais ganhos com a opacidade e impunidade do que com a integridade e a transparência.
Como se altera este estado de coisas? É a pergunta de vários milhões de euros para a qual eu e a maioria dos politólogos não temos resposta. Importa por isso não deixar cair este tema no esquecimento. Abrir o debate na sociedade civil, chamar os cidadãos, impor o tema aos partidos. Usar o voto, a petição, a manifestação, a democracia participativa.
*A autora escreve sem o Acordo Ortográfico