
Quinze anos, dois milhões de livros
Escrevendo em 1866, no prefácio ao livro Cousas Leves e Pesadas, Camilo Castelo Branco ergueu a sua voz contra as «bibliotecas do caminho de ferro», coleções de obras a preços módicos, vendidas nas gares das estações e difundidas em vários países europeus.
«Fazem‑se bibliotecas do caminho de ferro! Destinar livros para serem lidos onde ninguém lê, nem pode ler, nem deve ler! Que paradoxo!», afirmou, indignado, o autor de Amor de Perdição.
O tempo encarregar‑se‑ia de mostrar que Camilo não tinha razão: as coleções de obras populares, vendidas a preços reduzidos, impuseram‑se ao longo de todo o século XIX, acompanhando o aumento da alfabetização e as mudanças dos hábitos de leitura. Em 1863, no tempo em que Camilo escreveu, publicaram‑se em Portugal 525 obras, enquanto no final do século XIX apenas alguns números da Bibliotheca do Povo e das Escolas conseguiam atingir os 20 mil exemplares.
A primeira «bibliotheca» dirigida às camadas populares surgiu em 1845, sob a égide de António e José Castilho, com seletas dos principais autores nacionais editadas pela Livraria Clássica Portuguesa ao preço de 120 réis. Depois dela, sucederam‑se iniciativas, como a Bibliotheca Económica, de 1851, a Bibliotheca Portuguesa, publicada entre 1852 e 1855, a Sociedade Ibérica, de 1858, a Bibliotheca Selecta, de 1862, e, no mesmo ano, no Porto, a Bibliotheca Popular. Mais tarde, a Bibliotheca das Fábricas, de 1863, a Encyclopedia Popular, de 1867, e dois anos depois a Bibliotheca de Algibeira. Num domínio mais prático, destacavam‑se a Bibliotheca da Gente do Campo, de 1870, e a Bibliotheca de Agricultura e Sciencias, de 1880.
A mais famosa de todas seria, porém, a Bibliotheca do Povo e das Escolas, atrás referida, editada desde 1881 e que perfez 237 volumes. Em simultâneo, viram a luz do dia a Bibliotheca do Trabalhador, de 1892, a Bibliotheca das Costureiras, de 1895, e, enfim, a Bibliotheca de Instrução Profissional, fundada em 1904.1
O propósito de difusão do conhecimento e da leitura através de obras acessíveis ao grande público prolongou‑se pelo século XX adentro, podendo recordar‑se os Cadernos Seara Nova, a Biblioteca Cosmos, editada entre 1941 e 1948 por Bento de Jesus Caraça, com 145 títulos, e, mais perto de nós, a coleção Saber, das Publicações Europa‑América, os Livros RTP e a coleção Mil Folhas, editada pelo jornal Público.
A coleção Ensaios da Fundação inscreve‑se, pois, numa tradição editorial já antiga, sendo tributária de uma preocupação com a democratização do conhecimento que constitui, ao cabo e ao resto, a missão precípua da Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS) e o fulcro de todas as suas atividades.
Na sua génese, e tal como me foi transmitido pelo então presidente do Conselho de Administração da Fundação, António Barreto, esteve a ideia de produzir livros breves em formato reduzido, capazes de serem lidos numa viagem de comboio Lisboa‑Porto, ou vice‑versa; ou seja, e no fundo, tudo ao contrário do que Camilo julgava e defendia…
Comparada com projetos editoriais congéneres da Europa, com destaque para a Que sais‑je?, iniciada em 1941 pelas Presses Universitaires de France (e que conta hoje com mais de 3900 títulos e 2500 autores), a coleção Ensaios da Fundação procura aliar a transmissão de conhecimento numa dada área com um olhar mais pessoal e subjetivo — e, logo, mais opinativo — do autor. Daí o seu nome, «Ensaios».
Na escolha dos temas e dos autores, privilegiou‑se, desde o início, o interesse das questões abordadas para o cumprimento da missão estatutária da Fundação (que é conhecer Portugal e promover o debate livre e informado), além de, naturalmente, a qualidade dos vários ensaístas nas suas áreas de especialização. Em simultâneo, procurou‑se garantir o pluralismo e a diversidade de opiniões e de perspetivas, assegurando, de igual sorte, que todos os livros fossem redigidos e apresentados numa linguagem não técnica e acessível ao público leitor não especializado ou familiarizado com as temáticas abordadas.
Ao fim de 15 anos, com 152 títulos e 152 autores, poderá fazer‑se um balanço do caminho percorrido, algo que, como é óbvio, não competirá ao diretor de publicações da FFMS. Dir‑se‑á, tão‑só e sem falsas modéstias nem receios de exagero, que, com cerca de 2,1 milhões de exemplares nas mãos dos portugueses, entre aquisições e ofertas, as coleções Ensaios e Retratos da Fundação são já, seguramente, um marco na história do livro em Portugal.
Além de um feito que julgo ser único na história da edição nacional, dois milhões de livros nas mãos dos portugueses, dos portugueses de todas as idades e condições sociais, dos portugueses de norte a sul do território, dos portugueses das mais variadas formações e profissões, dois milhões de livros, dizia, exprimem a firmeza do compromisso que, desde os seus alvores, a Fundação Francisco Manuel dos Santos assumiu com o livro e com a leitura enquanto formas insubstituíveis de transmissão do saber e do conhecimento.
O êxito alcançado deveu‑se à confiança dos leitores e dos órgãos sociais da Fundação e, por outro lado, ao trabalho persistente de uma pequena equipa composta pelo signatário destas linhas, por Isabel Vasconcelos, até agosto de 2015, por Mónica Vieira, de 2015 a 2018, e por Susana Norton, desde março de 2011, com apoio externo de Duarte Vaz Pinto.