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Imagem de um grupo de refugiados ucranianos, a maioria mulheres com crianças, a cruzar a fronteira com a Polónia. Crédito: Shutterstock

Na Europa Central, o sentimento de compaixão está a esgotar-se

Este é o 8º de uma série de artigos da «Foreign Policy», publicados pela Fundação em parceria editorial com esta revista internacional. Um texto escolhido por Raquel Vaz-Pinto, investigadora do IPRI-Nova, por «servir de alerta para os líderes políticos europeus relativamente à solidariedade dos seus eleitores face à Ucrânia».
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Quando, no final de fevereiro de 2022, a Rússia iniciou a invasão em larga escala da Ucrânia, milhões de ucranianos fugiram da sua terra natal e foram acolhidos, um pouco por toda a Europa Central, com grande simpatia e afabilidade.

Nas primeiras semanas da guerra, oito milhões de pessoas atravessaram as fronteiras para a Polónia e para a Alemanha, enquanto outras quantas centenas de milhares se dirigiram para a restante Europa Central e mais além.

Incontáveis cidadãos comuns, sem nenhuma ligação com a Ucrânia, aguardavam nas gares ferroviárias, segurando cartazes redigidos em ucraniano traduzido pelo Google, decididos a proporcionar alojamento e uma refeição quente aos viajantes assustados.

A guerra prossegue, e os ucranianos que permanecem no estrangeiro dão sobretudo conta de uma grande generosidade e ajuda, tanto por parte dos cidadãos como dos Estados. Muitos deles estabeleceram-se nos países de acolhimento, têm empregos, pagam impostos e os seus filhos vão à escola. Na sua maioria, serão considerados residentes temporários até ao fim da guerra.

A hospitalidade da Europa, porém, tem vindo a dissipar-se, à medida que o sentimento de compaixão se esgota e a desinformação toma conta do debate público. Assim, é cada vez mais frequente ouvir dos cidadãos ucranianos que vivem na Europa Central relatos sobre incidentes de hostilidade esporádica por parte dos cidadãos dos países de acolhimento.

Na Polónia, as sondagens revelam uma crescente impaciência perante os cerca de um milhão de refugiados ucranianos. Nas escolas, nas ruas e nos transportes públicos na Polónia, há cada vez mais ucranianos que são insultados.

Veja-se o caso da Polónia, por exemplo, onde as sondagens revelam uma crescente impaciência perante os cerca de um milhão de refugiados ucranianos, passados quase quatro anos de estes terem sido forçados a fugir da invasão russa. Nas escolas, nas ruas e nos transportes públicos, há cada vez mais ucranianos que são insultados ou alvo de cuspidelas quando falam ucraniano. «Todos os dias, há ucranianos que são agredidos ou discriminados e que por isso vêm ter connosco», relatou Rafal Pankowski, da Associação Never Again, em Varsóvia, que acompanha crimes de ódio, à Foreign Policy. «Não é essa a experiência da maioria [dos ucranianos], mas está a aumentar.»

Myroslava Keryk, CEO da organização comunitária Ukrainian House, também em Varsóvia, disse ao Le Monde que, há um ano, era muito raro registarem-se incidentes de empurrões e impropérios como «“Na Polónia, falamos polaco!” Esses incidentes eram considerados marginais. Agora, não passa um dia sem que nos contem histórias deste género.»

Na Europa Central, incluindo a Alemanha, onde a receção inicial aos refugiados não foi menos generosa, os políticos populistas de direita alimentam este tipo de ressentimento: uma intolerância que, com grande habilidade, Moscovo tem vindo a promover. A Europa Central (com exceção da Hungria) não desistiu de combater a agressão russa na Ucrânia. No entanto, quase quatro anos depois, o seu papel de anfitriã — bem como a sua determinação na esfera da política externa — esmoreceu.

«Apesar de ser um pensamento irracional, porque não é verdadeiro, muitas pessoas acreditam que os refugiados ucranianos são mais bem tratados pelo seu próprio governo do que elas», afirmou Michal Vasecka, do Instituto de Política de Bratislava, na Eslováquia. «As pessoas estão ressentidas. “Porque é que”, perguntam-se, “o dinheiro do nosso orçamento deve ir para a Ucrânia e para os ucranianos, se esta não é a nossa guerra?”»

Em outubro passado, por exemplo, os resultados eleitorais na República Checa foram más notícias para os cerca de 400 000 ucranianos que residem no país — o número mais alto per capita na Europa. Na sua campanha, o vencedor das eleições, o populista Andrej Babis, do partido de direita ANO, atacou o custo das políticas de imigração do governo de centro-direita então no poder. «As mães checas [não recebem] nada, e os ucranianos recebem tudo», declarou, fazendo eco dos slogans dos dois partidos de extrema-direita vociferantemente xenófobos.

Num estudo realizado em julho por uma empresa de sondagens checa, concluiu-se que o ressentimento em relação aos refugiados está relacionado com fatores económicos, como o medo de que os apoios sociais sejam reduzidos e o medo da concorrência no mercado de trabalho, sobretudo entre as populações de baixo rendimento.

Até agora, e ao contrário da Polónia, da Hungria e dos partidos de extrema-direita checos, nem Andrej Babis nem a maioria do partido ANO propuseram cortar os subsídios concedidos aos refugiados ucranianos ou fazê-los depender de determinadas condições, por exemplo, estar empregado.

De acordo com o referido estudo, os checos ainda consideram — com uma ligeira maioria — que a decisão de conceder asilo aos refugiados foi correta. Contudo, a retórica adotada na campanha do partido ANO pressupõe a intenção de encontrar uma solução à custa dos ucranianos; de acordo com Pankowski, agora que assumiu o poder, o ANO pode entrar em parceria com os partidos de extrema-direita, que defendem abertamente o envio dos ucranianos de volta para «a terra deles».[1]

Segundo um estudo do Banco Nacional de Desenvolvimento da Polónia, os imigrantes ucranianos pagam mais em impostos do que recebem em subsídios.

Na Polónia, segundo os especialistas, Varsóvia não está a recuar no seu pleno apoio militar à Ucrânia. Sobre a mudança dos polacos face aos refugiados ucranianos, afirmou Jacek Stawiski, novo editor do semanário Tygodnik Powszechny, que «não reflete nenhuma simpatia da Polónia pela Rússia, de modo algum». «Reflete, sim, três fatores que se unem numa única corrente: antipatia [histórica] pelos ucranianos; populismo, que coloca a Polónia acima de todos; e desinformação, incluindo propaganda dissimulada e notícias falsas da Rússia. Estamos num contexto perigoso que, se a dinâmica se desviar demasiado para a direita, pode ficar descontrolado.»

Veja-se o caso dos ressentimentos que, ao longo da história, a Polónia acumulou em relação aos ucranianos.

Na Segunda Guerra Mundial, os nacionalistas ucranianos perpetraram uma limpeza étnica contra os polacos que custou a vida a cerca de 100 000 civis. Na Polónia, esses terríveis massacres — o maior dos quais ocorreu em Volínia (hoje no noroeste da Ucrânia) — foram classificados como genocídio. Na sua agenda, o novo presidente da Polónia, o historiador e conservador Karol Nawrocki, atribuiu prioridade máxima à total divulgação dessas atrocidades, defendendo que a Ucrânia deve ser impedida de entrar na União Europeia ou na NATO até que se retrate do «crime do genocídio de Volínia».

Em termos financeiros, até ao momento, a Polónia tem sido generosa, desembolsando mais de 29 mil milhões de euros para a ajuda aos refugiados, apenas atrás da Alemanha, com quase 37 mil milhões. Embora em larga medida os economistas concordem que os refugiados ucranianos têm sido uma bênção — e não um fardo — para o tenso mercado de trabalho da Europa Central, os populistas desta região tiram partido das perceções enviesadas e dos medos em torno das migrações — bem como dos reveses económicos, que são bem reais — de modo a apresentar os ucranianos como um peso para as finanças públicas.

A Alternativa para a Alemanha, partido de extrema-direita na oposição, exige que os refugiados ucranianos regressem ao seu país natal. O atual governo alemão já prometeu reduzir as prestações sociais de assistência aos ucranianos.

A Hungria pôs fim ao patrocínio estatal do alojamento para refugiados ucranianos vindos do oeste da Ucrânia, região que agora considera segura para o seu regresso. «Dizem que estamos simplesmente a desperdiçar dinheiro com a Ucrânia e os ucranianos, e que esse dinheiro deveria ser investido em saúde, em infraestruturas e em problemas sociais», explicou Vasecka, referindo-se aos céticos da Europa Central.

Nada ilustra tão bem este fenómeno quanto o lema da campanha de Nawrocki, eleito presidente em 2025: «A Polónia em primeiro lugar, os polacos em primeiro lugar.» De facto, a Ucrânia ocupou lugar de destaque na sua campanha de primavera. Em abril, Nawrocki defendeu que os polacos tivessem prioridade nas filas de espera de consultas médicas. Em agosto, afirmou: «Os cidadãos polacos são mais mal tratados do que nossos hóspedes da Ucrânia.»

Já depois da sua tomada de posse como presidente, recusou-se a renovar o pagamento de prestações sociais (por exemplo, os abonos de família) aos refugiados ucranianos que estivessem desempregados na Polónia. No entanto, segundo um estudo do Banco Nacional de Desenvolvimento da Polónia, os imigrantes ucranianos pagam mais em impostos do que recebem em subsídios. Desde 2022 — concluiu essa investigação —, os imigrantes anteriores à guerra e os refugiados ucranianos foram responsáveis por entre 0,5% e 2,4% do crescimento anual do PIB polaco e criaram mais de 13 000 empresas.

Além da mais proeminente figura política da Polónia, também o Confederaçãopartido de extrema-direita na oposição e hoje o terceiro partido mais popular do país — se queixa da «ucranização» da sociedade polaca. Assim, exige que a Polónia encerre as suas fronteiras com a Lituânia, a Ucrânia, a Bielorrússia e a Eslováquia, e que comece a deportar os requerentes de asilo e os refugiados, incluindo os que vieram da Ucrânia. Em julho, milhares de manifestantes de direita saíram à rua em 50 cidades da Polónia, exigindo o fim imediato da «invasão imigratória».

As narrativas pró-russas disseminadas por bots; as imagens e as histórias geradas pela inteligência artificial; os trolls; os websites falsos; as teorias da conspiração — tudo se adequa na perfeição aos dogmas da extrema-direita. A mensagem subjacente é uma só: a Ucrânia é a nossa ruína e não vale o dinheiro que gastamos com ela.

As recentes incursões de drones russos sobre a Polónia também contribuíram para mudar a opinião pública. «A questão passou a ser encarada de outra forma: “Já chega, fizemos muito [pela Ucrânia], mas agora temos de defender a nossa pátria e [construir] a nossa própria base defensiva e as nossas estruturas civis”», considerou Stawiski.

Apesar de a Europa estar empenhada em construir «muralhas» de autodefesa contra os drones russos, a desinformação do Kremlin consegue infiltrar-se — da Polónia, tradicionalmente hostil à Rússia, à Eslováquia, que é russófila — e desempenha um papel importante no crescente ceticismo relativamente à Ucrânia. As narrativas pró-russas disseminadas por bots; as imagens e as histórias geradas pela inteligência artificial; os trolls; os websites falsos, concebidos para imitar fontes noticiosas legítimas; as teorias da conspiração — tudo se adequa na perfeição aos dogmas da extrema-direita. A mensagem subjacente é uma só, apesar de assumir múltiplas formas: a Ucrânia é a nossa ruína e não vale o dinheiro que gastamos com ela.

Segundo um estudo realizado nos EUA, há na República Checa grupos pró-russos que se dedicam a divulgar informações falsas sobre refugiados ucranianos a partir dos meios de comunicação pró-Kremlin que utilizam a língua checa. Estas fontes socorrem-se do tradicional discurso anti-imigração, através do qual alimentam o medo que as populações dos países de acolhimento sentem em relação aos recém-chegados. (De acordo com este estudo, muitas das mensagens contra os refugiados ucranianos surgem em contas e perfis das redes sociais que antes, durante a pandemia da COVID-19, partilhavam desinformação antivacinas.)

O facto de a desinformação ter, aparentemente, origem em cidadãos da Europa Central é essencial para chegar a bom porto. «Se os polacos associassem a desinformação a fontes russas, rejeitá-la-iam», declarou Stawiski. «Mas a sua origem russa não é identificável. A desinformação infiltra-se nas mentes, criando uma agenda antiucraniana ao serviço dos interesses russos. Explora o medo genuíno que muitas pessoas sentem em relação à guerra, bem como o medo da imigração que se observa por toda a Europa e também nos EUA. Retoma a ideia do presidente Trump segundo a qual a Ucrânia está a ir longe demais e que, caso se feche um acordo, pode haver paz.»

«A desinformação russa é verdadeiramente implacável na Alemanha», afirmou Iryna Shulikina, da Vitsche, um think tank ucraniano sediado em Berlim, referindo-se a uma campanha maciça de desinformação pró-Rússia contra o governo de centro-esquerda em 2024, a qual recorreu a 50 000 contas falsas na rede social X (ex-Twitter). Uma escala, na sua opinião, apesar de tudo moderada, se comparada com a forte histeria da Hungria contra a Ucrânia. Nesse país, o governo organizou campanhas com cartazes de rua anunciando que, caso seja admitida na UE, a Ucrânia destruirá esta organização.

Mesmo sendo, por ora, suportáveis, as perceções negativas e a intolerância latente que muitos ucranianos sentem hoje na Europa Central são um mau presságio para os futuros refugiados, caso a Rússia obtenha vitórias militares.

Não restam dúvidas de que a chegada de mais ucranianos à Europa Central não será bem-vinda e de que os ucranianos aí residentes terão de partir logo depois da guerra — para seu próprio bem, importa que os ucranianos reconheçam desde já esta situação. Dizer que a compaixão se está a esgotar é uma forma educada de expressar isso mesmo.

 

 

 

[1] Nota de editor: Este acordo foi, entretanto, finalizado. Não há ainda certezas quanto à resolução dos conflitos de interesses entre as empresas de Babis e o assumir o Governo do seu país (https://www.dw.com/en/will-conflict-of-interest-prevent-andrej-babis-from-becoming-prime-minister-of-the-czech-republic/a-74726318).

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