Luigi e Mokryna
No coração da capital ucraniana de Kiev, na margem direita do Dniepre, existe um jardim frondoso, o Parque Khreshchatyi. Perto dele, simbolicamente, fica a Praça da Europa, assinalando o ideal democrático e os sonhos de liberdade que agora querem esmagar.
A dois passos, outro símbolo, o Arco da Amizade dos Povos, erguido em 1982 para comemorar os 60 anos da União Soviética e os 1.500 anos da cidade de Kiev. Quando levantaram o Arco, talvez os russos não tenham percebido que tão abissal diferença entre duas efemérides encerra uma lição de História: Kiev tem mais de um milénio, a URSS nem durou um século.
No Parque Khreshchatyi existe outra estátua, por certo menos imponente do que o arco soviético, mas sem dúvida mais perene e poderosa. Foi inaugurada em Maio de 2013 e mostra um casal abraçado, nada mais. Já idosos, ele acolhe-a num amplexo de ternura, ela segura-lhe o braço, como se o não quisesse largar. Nos últimos anos, a estátua do casal tornou-se o epicentro romântico da cidade de Kiev, onde os pares de namorados fazem juras de que irão ser, para todo o sempre, iguais àqueles velhinhos de bronze.
A estátua representa um italiano, Luigi Pedutto, e uma mulher ucraniana, Mokryna Yurzhuk. Encontraram-se os dois há décadas, noutra guerra de outros tempos. Num campo de concentração nazi, perto da aldeia de Sankt Pölten, na Áustria, Luigi estava internado como prisioneiro de guerra, enquanto Mokryna, com uma filha pequena, nascida já nesse campo, cumpria pena de trabalhos forçados. Conheceram-se por acaso, no meio de tantas tormentas, tinham ambos vinte anos.
Foi longo o romance, quase dois anos, e, nos escassos tempos de repouso, passeavam de mãos dadas pelo campo em completo silêncio, sem nada dizerem entre si, pelo singelo motivo de que se tinham apaixonado sem entenderem uma só palavra do que o outro dizia. Ele, que era alfaiate, fazia sapatos ou costurava vestidos para a impressionar; em troca, Mokryna dava-lhe a escassa comida a que ia deitando a mão.
Em 1945, quando o campo foi libertado, ela foi levada de volta para a Ucrânia. Luigi tentou ir atrás dela, desesperado, impediram-no. Mokryna, como milhões, foi sequestrada do lado de lá da Cortina de Ferro, ele teve de parar as buscas.
Passaram depois muitas décadas, quase uma vida inteira. Casaram ambos, cada qual legou filhos e netos à posteridade, enviuvaram os dois. Luigi ligou-se à finança, Mokryna trabalhou numa exploração agrícola colectiva, ou seja, ele no capital, ela no socialismo. Depois de enviuvar, e caído o comunismo, Luigi retomou as buscas: na terra onde vivia, perto de Nápoles, uma senhora ucraniana ajudou- a escrever uma carta para um programa russo de televisão, desses lamechas, de perdidos e achados. No dia do seu aniversário, em Outubro de 2004, tocou o telefone em casa, ligavam-lhe de Moscovo, dizendo para ir até lá. Luigi viajou até à Rússia, reencontrou Mokryna, abraçaram-se em directo. No coração de Kiev, ora devastado pelas bombas, a estátua do Parque Khreshchatyi, imortaliza esse momento.
Na inauguração da escultura, Mokryna encontrava-se já demasiado debilitada para poder viajar, mas os seus familiares disseram que ela estava radiante pelo facto de o seu amor de juventude servir de exemplo a outros casais. A neta referiu que a avó lhe contara vezes sem conta as peripécias daquela paixão de guerra, e lhe disse que jamais imaginara que, ao fim de seis décadas, voltaria a reencontrar o rapaz italiano que conhecera num campo nazi.
Na altura com 90 anos, vestido em uniforme de gala do exército italiano, Luigi Pedutto falaria, emocionado, na cerimónia de inauguração da estátua. «Quando tinha nove anos», afirmou, «o meu professor disse-me uma vez: lembra-te que, por tudo o que de mau passares na vida, serás recompensado». «Sinto que fui recompensado por tudo aquilo que passei».
Durante 60 anos, Luigi esperou por ela, guardando uma pequena fotografia e uma medalha com uma mecha do seu cabelo. Mokryna vivia numa pequena aldeia na região de Dnipropetrovsk, cuja capital era, e é, a quarta maior cidade da Ucrânia, onde os russos instalaram, no tempo dos sovietes, uma colossal fábrica de armas nucleares, agora tanto faladas.
Depois de se reencontrarem, Luigi pediu-a em casamento, Mokryna riu-se, não disse que sim ou não, mas ainda assim aceitou visitar a sua terra natal, Castel San Lorenzo, em Salerno, da qual foi feita cidadã honorária. Ele foi várias vezes à Ucrânia, com a mala carregada de azeite e parmesão para lhe preparar spaghetti. Diz quem os viu essas ocasiões que falavam os dois num estranho dialecto, uma mescla de ucraniano, italiano e russo. Sonharam ir juntos até Kiev para visitar a estátua feita em sua homenagem. Não se sabe se lá foram, é provável que não: Luigi faleceu em Agosto de 2013, escassos meses após a inauguração da escultura, sendo enterrado em Castel San Lorenzo. Mokryna morreria dois anos depois, em 2015. Em 2017, foi inaugurada em Castel San Lorenzo uma réplica exacta da estátua do Parque Khreshchatyi.
Enquanto escrevo estas linhas, neste preciso instante, os noticiários informam que está iminente um grande ataque russo a Dnipro, a terra natal de Mokryna, com grupos de mulheres a fabricarem cocktails-molotov que irão ser lançados contra os tanques inimigos por jovens adolescentes. Um deles, entrevistado pelos jornais, chama-se Vale, tem 19 anos. Mais novo assim que Luigi, quando conheceu Mokryna.
O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor