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Imagem da Bandeira da União Europeia sobreposta à bandeira da Ucrânia

Um ano de guerra e três reflexões sobre o futuro

Um ano depois da invasão russa da Ucrânia, já nada será como dantes. São muitos os desafios que o conflito e uma eventual paz trazem para o futuro: uma Ucrânia que quer integrar a União Europeia e a NATO e uma nova ordem mundial, onde a Rússia poderá surgir como nação humilhada ou integrada, explica neste artigo a especialista em relações internacionais Lívia Franco.
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O regresso da guerra em larga escala ao velho continente está a abalar profundamente as políticas e as mentalidades dos europeus e, consequentemente, o modo como estes olham para a História e para o Mundo. Em especial, no que diz respeito à maneira como até agora foram encaradas as questões de defesa e a organização da arquitectura de segurança europeia, nada será como dantes. No entanto, sendo isso já evidente para a larga maioria dos países, há outros tantos desafios lançados pela guerra na Ucrânia que nos obrigam a repensar o que aí vem. De entre estes, destacam-se três como determinantes para a (re)configuração do futuro: o da plena integração da Ucrânia no Ocidente; o do posicionamento do resto do mundo face à ordem mundial; e o de saber que Rússia teremos no pós-conflito.      

Depois de décadas de turbulência política e de corrupção endémica, a Ucrânia mostrou por fim ter uma voz própria e um destino enquanto nação independente.

  Para lá do próprio início da guerra, entre as maiores surpresas que esta trouxe destaca-se a extraordinária coragem dos ucranianos. Depois de décadas de turbulência política e de corrupção endémica, a Ucrânia mostrou por fim ter uma voz própria e um destino enquanto nação independente. Partindo de um forte consenso nacional, a Ucrânia quer pertencer integralmente à Europa próspera e livre, que há mais de 70 anos se está a construir sobre os destroços da Segunda Guerra Mundial. Esse consenso tem-se fortalecido neste último ano vivido debaixo de fogo russo, mas as suas raízes são mais fundas. Da terrível experiência histórica do Holodomor, aos movimentos de ‘baixo para cima’ das revoluções Laranja e do Euromaidan, ele foi-se materializando na rede informal da sociedade civil ucraniana desde que, em 2014, a Crimeia foi anexada e a insurgência armada chegou ao Donbas.

É sobre esta cultura de resiliência generalizada que assenta a identidade de uma Ucrânia contemporânea, que sabe o que quer: integrar a União Europeia e a NATO. E sobre isto não há volta atrás. Resta, porém, saber se, para lá das apregoadas declarações de solidariedade dos governos europeus, as estruturas euro-atlânticas e as nações que as integram estão realmente preparadas para receber este troço gigante do território europeu, com os seus 44 milhões de habitantes e uma fronteira comum – longa de mais de 2.200 quilómetros – com a Rússia. É que, para lá da evidente bondade política e económica destes alargamentos, as suas consequências serão avassaladoras para os restantes países membros. Em especial para os do Sul e mais periféricos, como Portugal.

Invocando o lastro de um não-alinhamento datado da Guerra Fria, e escudando-se num gasto argumento sobre a prepotência ocidental, muitos países mantiveram inalteradas as suas relações com Moscovo.

Um segundo aspecto a merecer reflexão é o da posição assumida até agora por potências como a China, a India e outras zonas do mundo em relação aos acontecimentos na Ucrânia. Um pouco por toda a parte, em África, no Médio Oriente, na América Latina e, em especial, no chamado Sul Global, a condenação das acções russas foi tépida e pouco vocal. Invocando o lastro de um não-alinhamento datado da Guerra Fria, e escudando-se num gasto argumento sobre a prepotência ocidental, muitos países mantiveram inalteradas as suas relações com Moscovo e não aderiram às sanções impostas para limitar a máquina de guerra russa. Essa inércia é especialmente gritante quando muitos deles têm sido dos mais fortemente atingidos pelos custos indiretos do conflito, como a subida dos preços dos recursos energéticos ou a escassez de cereais e adubos no mercado global. Invocando o desejo de uma solução política para a guerra e não querendo contribuir para uma escalada militar do conflito, vários desses governos têm-se recusado a ajudar activamente a Ucrânia ou a vender munições aos ocidentais.

Tal posição pode ser bem-intencionada ou parecer neutra, mas politicamente não o é. Ao escolherem agir assim, esses países decidiram fechar os olhos à flagrante violação de um princípio nuclear da Carta das Nações Unidas: o de que não se pode violar a integridade territorial ou a independência política de um Estado, muito menos através do recurso à força. Dito de outra forma, a opção de tantos países da comunidade internacional de não condenar inequivocamente a agressão russa veio confirmar como as regras que, desde 1945, sustentavam a ideia e a prática de uma ordem internacional, estão em acelerada erosão. Portanto, não se trata apenas de repensar o futuro da Ucrânia ou da Europa, mas também o dessa ordem global que parece estar a ser percepcionada como não sendo suficientemente inclusiva.

O mais provável, portanto, é no final do conflito termos uma Rússia ainda mais revisionista, senão mesmo pária.

A terceira reflexão – e a que mais incógnitas traz – diz respeito ao destino do atual regime russo, ao estatuto internacional do país depois da guerra e, consequentemente, ao futuro da própria Federação. Uma vez que a narrativa de Moscovo tem colado a continuidade histórico-civilizacional da Rússia à vitória, é difícil perceber que resultado alternativo será aceite pelo Kremlin para além do de um triunfo militar absoluto (entendido, no mínimo, como a anexação definitiva da Crimeia e das outras quatro regiões ucranianas ocupadas, bem como o afastamento de Zelensky do poder em Kiev). Mas, uma vez que parece improvável que tal aconteça, urge pensar sobre o impacto que esta percepção de derrota terá sobre o regime Putinista. Acresce que, em vista do recente reforço da dimensão autoritária do Kremlin e da total eliminação da oposição no país, não se antevê qualquer alternativa política para Moscovo, inclusive nas eleições que terão lugar no próximo ano. O mais provável, portanto, é no final do conflito termos uma Rússia ainda mais revisionista, senão mesmo pária.

Claro que o tratamento que a Ucrânia e os seus parceiros escolherem dar a Moscovo no pós-guerra – integrar ou humilhar – determinará também o destino desse país. Ora, acontece que, ao contrário do que se observou nos idos anos 90, quando foi unânime a aceitação da Federação Russa como herdeira direta da URSS (com o seu arsenal nuclear e o lugar de membro permanente do Conselho de Segurança da ONU), muitos países vão agora querer rever o posicionamento internacional da Rússia e as suas prerrogativas de grande potência. Porque é o país mais extenso do mundo, com uma composição administrativa e étnica extremamente complexa, esse questionamento equivalerá a abrir a caixa de Pandora.

              É inegável que o desejado cessar das hostilidades na Ucrânia será um bem para aquele povo martirizado e para a comunidade internacional. Mas, neste momento, importa também exortar os beaux esprits atentos à actualidade internacional a inquietarem-se e a não ficarem complacentes com os desafios que se perfilam depois de uma eventual paz.

 

*O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pela autora.

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