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Imagem de soldados alemães, durante uma parad militar. Crédito: Shutterstock

Quem irá empunhar todas estas novas armas?

Este é o 6º de uma série de artigos da «Foreign Policy», publicados pela Fundação ao abrigo da parceria editorial com esta revista internacional. Um texto escolhido por Bruno Cardoso Reis, professor no ISCTE-IUL, porque «a Europa precisa de investir mais para se defender melhor». Para isso, «não bastam mais e melhores armas, também é preciso encontrar formas de recrutar mais tropas em países europeus com a população a tender para a retração e o envelhecimento», diz.
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Após muitas décadas de indecisão e procrastinação, os aliados dos EUA estão finalmente a rearmar-se.

Na cimeira anual da NATO, que teve lugar em junho, os membros do bloco comprometeram-se a gastar pelo menos 5% do seu PIB em defesa e em infraestruturas relacionadas com a defesa. Os países da Ásia Oriental estão a construir, tardiamente, navios de guerra e mísseis para combater uma China mais forte e assertiva. Contudo, mesmo com o aumento do financiamento, com a conversão de fábricas para fins militares e com uma maior produção de armamento, há uma questão que permanece sem resposta: quem irá empunhar todas estas novas armas?

Os países da NATO não resolveram o problema fundamental de saber quem irá combater. Uma das principais lições da guerra entre a Rússia e a Ucrânia diz respeito ao número de efetivos. A era das operações restritas de contrainsurreição e da guerra rápida e de precisão chegou ao fim. Com mais de meio milhão de soldados a defrontarem-se ao longo de uma frente de 1600 quilómetros, tivemos de reaprender um antigo princípio da guerra: a quantidade importa. E, em última análise, essa quantidade corresponde a seres humanos.

Há um aspeto fundamental da guerra entre a Rússia e a Ucrânia — a utilização em massa de drones no campo de batalha — que não deve desviar a nossa atenção da importância central do volume de efetivos.

Os drones são atualmente responsáveis por cerca de 70% das baixas de combate, mas representam uma evolução, e não uma revolução, das táticas militares. Os drones de ataque são muitas vezes um meio de apoio de fogo mais caro e menos eficaz do que a artilharia tradicional. Assim, a dimensão das frotas de drones nos campos de batalha ucranianos diz tanto sobre o esgotamento das armas tradicionais, incluindo artilharia e mísseis, quanto sobre a crescente capacidade dos veículos e das armas não tripulados.

Com mais de meio milhão de soldados a defrontarem-se ao longo de 1600 km, tivemos de reaprender um antigo princípio da guerra: a quantidade importa.

Sem verdadeira autonomia — já prometida, mas ainda não disponível —, os drones não podem substituir os militares. Pelo contrário: «No que diz respeito ao pessoal, a tecnologia exige uma grande quantidade de efetivos», escreveu Jack Watling, do Royal United Services Institute, um observador atento da guerra na Ucrânia. A expansão da guerra com drones levou os exércitos ucraniano e russo a transferirem pessoas para novas especialidades, mas não diminuiu a necessidade de soldados.

Até agora, a tecnologia não alterou fundamentalmente a centralidade da atrição nos grandes conflitos armados entre Estados. A insuficiência dos esforços de mobilização da Ucrânia e as deficiências no recrutamento da Rússia começaram a revelar-se. Contudo, mesmo com mais de um milhão de baixas russas e ucranianas, a maioria dos Estados europeus da NATO ainda depende de pequenas forças de militares profissionais típicas da era pós-Guerra Fria.

Com apenas 70 mil soldados a tempo inteiro, o exército britânico é o mais pequeno desde o século xviii. Com cerca de 180 mil soldados a tempo inteiro, a Bundeswehr [Forças Armadas Alemãs] tem cerca de um terço do tamanho que tinha durante a Guerra Fria. Provavelmente, qualquer país da Europa Ocidental teria dificuldade em mobilizar e destacar sequer uma brigada pesada pronta para o combate em menos de uma semana. Para fins comparativos, há atualmente cerca de 300 brigadas em ambos os lados da frente na Ucrânia, segundo as conversas que tenho mantido com analistas militares e fontes ucranianas.

As Forças de Autodefesa do Japão (JSDF) são competentes e dispõem de equipamentos modernos, muitos deles de conceção nacional. (...) O calcanhar de Aquiles do Japão são os recursos humanos

A situação é pior ainda na Ásia Oriental. O Japão é o aliado mais importante dos EUA na região. As Forças de Autodefesa do Japão (JSDF) são competentes e dispõem de equipamentos modernos, muitos deles de conceção nacional. À medida que a China se torna mais assertiva e belicosa, porém, o Japão tem respondido ainda que tardiamente. Só agora está a aumentar significativamente o seu orçamento de defesa para os próximos cinco anos, com uma longa lista de compras de novo armamento.

Mas o calcanhar de Aquiles do Japão são os recursos humanos. As forças armadas não atingiram as suas metas de recrutamento, ficando aquém, em quase 10%, no ano passado. Nas patentes mais baixas, os números são verdadeiramente alarmantes: a JSDF atingiu apenas 30% da sua meta de recrutamento para 2023 relativa a soldados rasos e patentes equivalentes.

Muitos dos que servem nas forças armadas têm uma preparação questionável. Recrutados a partir de uma população japonesa em rápido envelhecimento e declínio, a idade média nas Forças de Autodefesa do Japão ronda os 40 anos. Os militares mais velhos são mais propensos a lesões e têm uma disponibilidade muito menor para o combate, como demonstrou a experiência na Ucrânia. O envelhecimento também afeta as forças armadas por vias menos tangíveis: a escassez de líderes de patentes mais baixas dificulta a evolução da liderança e prejudica o moral e a motivação dos oficiais de patente superior.

Com um vasto exército e o serviço militar obrigatório para homens adultos fisicamente aptos por pelo menos 18 meses, a Coreia do Sul parece ser um caso à parte entre os países ricos. O país tem capacidade para convocar mais de três milhões de reservistas e dispõe de uma indústria de defesa robusta para os armar. No entanto, a Coreia do Sul atravessa uma grave crise demográfica. A sua taxa de fertilidade está em queda livre — 0,75 nascimentos por mulher, um terço da taxa de reposição — o que contribuiu, só nos últimos seis anos, para uma redução impressionante de 20% nos efetivos das forças armadas.

Quando a Rússia invadiu a Ucrânia em 2022, a Polónia foi rápida a reconhecer a ameaça à segurança europeia e a reagir em conformidade.

A Polónia é um bom exemplo dos muitos desafios a nível de efetivos que as forças armadas enfrentam atualmente. Membro da NATO desde 1999, a Polónia faz fronteira com um exclave altamente militarizado da Rússia: Kaliningrado. Esta proximidade coloca os mísseis russos Iskander a apenas alguns minutos de voo de Varsóvia. Quando a Rússia invadiu a Ucrânia em 2022, a Polónia foi rápida a reconhecer a ameaça à segurança europeia e a reagir em conformidade. Três semanas após o início da invasão, a Polónia adotou a Lei de Defesa Nacional, uma norma abrangente que estabeleceu um limite mínimo de investimento em defesa de 3% do PIB e estimulou um rearmamento convencional maciço, em grande medida recorrendo a tanques e artilharia sul-coreanos. Os gastos militares polacos aproximam-se agora de 5% do PIB, o nível mais alto da NATO.

Além de procurarem dissuadir a guerra e treinarem soldados para lutar caso a dissuasão falhe, as forças armadas polacas também têm de lidar com um desafio de segurança nas suas fronteiras. A vizinha Bielorrússia, uma satrapia russa, tem mobilizado intermitentemente migrantes internacionais para a fronteira polaca. Em resposta, a Polónia destacou até dez mil soldados, ao mesmo tempo que reforçou as vedações e fortificações. A necessidade de soldados não se limita a esse tipo de fins: no outono passado, outros 20 mil soldados foram destacados para operações de socorro após a ocorrência de cheias graves no sul da Polónia.

A Polónia rejeitou o serviço militar obrigatório como resposta às suas necessidades de efetivos. Em vez disso, instituiu um modelo de «recrutamento voluntário» invulgar. Os militares voluntários estão ao serviço até 11 meses, recebem o equipamento melhor e mais recente (apesar de algum descontentamento dos militares do quadro) e são recrutados para se juntarem às forças regulares após terminado esse tempo de serviço. Os militares do quadro e voluntários são complementados por uma Força de Defesa Territorial de soldados a tempo parcial em crescimento, e que já conta com mais de 40 mil efetivos.

Ao recrutar apenas 10% dos alunos do último ano do ensino secundário, a Suécia criou algo incomum e talvez até sem precedentes: um exército de elite a partir de uma base de recrutamento obrigatório

Há décadas que a reinstituição do serviço militar obrigatório se tem revelado politicamente tóxica na maioria dos países ocidentais. Com exceção de um pequeno número de Estados-membros, a maioria das forças armadas da NATO acabou com o serviço militar obrigatório após o fim da Guerra Fria. Mas a maré está a mudar. Na Alemanha, o ministro da Defesa, Boris Pistorius, discutiu abertamente o regresso do serviço militar obrigatório, enquanto a coligação governamental propôs uma lei para permitir a sua rápida reintrodução em caso de crise. Mesmo na Grã-Bretanha, historicamente avessa ao serviço militar obrigatório exceto como recurso de emergência em tempo de guerra, políticos como o ex-primeiro-ministro Rishi Sunak discutiram o seu restabelecimento.

A Finlândia e a Suécia, que só aderiram à NATO após a invasão em grande escala da Ucrânia pela Rússia, podem servir de modelo para outros aliados que enfrentam desafios de segurança.

A Finlândia, onde o serviço militar é obrigatório e universal para os homens, tem capacidade para mobilizar, de entre uma população total de menos de seis milhões de habitantes, um exército de quase um milhão de militares no ativo e reservistas. Embora precise de várias semanas para mobilizar todos os reservistas finlandeses, forças menores de elevada prontidão podem ficar disponíveis em dias ou mesmo horas — uma reação à invasão inesperada da Crimeia pela Rússia em 2014, que rapidamente se tornou um facto consumado. O exército finlandês também possui uma das maiores forças de artilharia da NATO, e em breve contará com o apoio de 64 novos caças F-35.

Após um breve hiato, a Suécia voltou, em 2018, a ter serviço militar obrigatório, com um novo sistema de serviço obrigatório seletivo e neutro em termos de género. Ao recrutar apenas 10% dos alunos do último ano do ensino secundário, a Suécia criou algo incomum e talvez até sem precedentes: um exército de elite a partir de uma base de recrutamento obrigatório. Embora a Suécia tenha o dobro da população da Finlândia, as suas reservas são muito menores do que as do seu vizinho. No entanto, o país duplicou o número de recrutas em poucos anos, ao mesmo tempo que recuperou, para o conjunto da sociedade, o princípio da «defesa total».

Se tivermos combates em países da NATO ou da Ásia Oriental, o voluntariado revelar-se-á insuficiente para a quantidade de efetivos necessários numa grande guerra.

Os modelos de recrutamento finlandês e sueco oferecem uma saída para o dilema da defesa da Europa. Mas também é possível que a grande visibilidade do esforço de rearmamento e a maior consciencialização sobre a ameaça à segurança europeia acabe por atrair mais recrutas sem necessidade de obrigatoriedade. A Bundeswehr, por exemplo, acaba de anunciar um excelente primeiro semestre em termos dos objetivos deste ano de recrutamento: mais de 13 700 novos recrutas, um aumento de 28% em relação ao mesmo período em 2024. A estagnação da economia alemã pode ser um dos fatores que contribuem para este resultado, mas a invasão russa da Ucrânia, o consenso político e social em torno do rearmamento e a melhoria do estatuto do serviço militar desde o início da guerra entre a Rússia e a Ucrânia também tiveram um papel importante.

Uma coerção moderada pode igualmente ajudar. De acordo com uma proposta de lei pendente de aprovação pelo Bundestag, todos os homens alemães que completarem 18 anos terão de preencher um inquérito digital sobre o seu interesse no serviço militar a partir do próximo ano. Os exames médicos obrigatórios serão reintroduzidos um ano depois.

Se tivermos combates em países da NATO ou da Ásia Oriental, o voluntariado revelar-se-á insuficiente para a quantidade de efetivos necessários numa grande guerra. A Ucrânia aprendeu esta velha lição aos poucos e talvez demasiado tarde. Apesar da fixação quase exclusiva nas metas relativas ao investimento em defesa, é possível argumentar que o melhor indicador para avaliar a determinação de um país moderno e rico em se defender é o número de pessoas fardadas e bem treinadas. Resta saber se as democracias da Europa e da Ásia estão dispostas a mostrar esse nível de empenho.

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