A primeira mulher a assumir o cargo de primeira-ministra do Japão tem de ser da linha dura
Na votação para a liderança do partido Partido Liberal Democrático (PLD) que terá lugar no sábado [1], prevê-se que Sanae Takaichi venha a tornar-se a primeira mulher primeira-ministra do Japão [2].
A escolha de Sanae Takaichi representa uma forte demonstração de progresso e visibilidade das questões de género no cenário mundial. No entanto, no essencial, a sua abordagem política – baseada numa ideologia ultraconservadora rígida, influenciada pelo seu mentor, o ex-primeiro-ministro Shinzo Abe – contribui ativamente para reforçar as estruturas conservadoras e patriarcais próprias do PLD, que se encontra no poder.
Neste sentido, a liderança de Sanae Takaichi não representará um avanço progressista, antes constituirá um teste para perceber se, para alcançar o verdadeiro poder no Japão, uma mulher tem de demonstrar obrigatoriamente uma «sobrelealdade» aos impulsos mais profundos e tradicionais do PLD.
Essa dinâmica parece estar em consonância com o conceito de «glass cliff» (penhasco de vidro), o fenómeno em que algumas mulheres (e outros grupos marginalizados) são elevadas a posições de liderança de alto risco e de natureza precária em períodos de crise ou de declínio organizacional, tornando-as altamente visíveis, mas vulneráveis ao inevitável fracasso.
Por exemplo, na Austrália, Sussan Ley foi nomeada líder do Partido Liberal (conservador) em maio de 2025, altura em que o partido atravessava o seu pior momento. Os comentadores políticos enquadraram esta medida num cenário de «penhasco de vidro», uma vez que Ley herdou um partido em ruínas, com perspetivas eleitorais diminutas, vendo-se numa posição de inevitável fracasso ou, na melhor das hipóteses, de conseguir estabilizar o partido para um futuro sucessor masculino.
Da mesma forma, a ascensão de Sanae Takaichi ocorre precisamente na sequência de um período prolongado de desconfiança pública em relação ao PLD. Vem no seguimento de duas derrotas eleitorais que deixaram o partido em dificuldades para manter o poder sem maioria parlamentar, o que significa que o próximo líder herdará uma legislatura fragmentada, além do grande desafio de negociar com os partidos da oposição a aprovação de legislação fundamental, incluindo o orçamento de Estado e vários pacotes económicos.
Promover uma candidata «atípica», como uma mulher da linha dura, dá resposta à necessidade imediata, por parte do PLD, de projetar uma imagem simultaneamente de mudança e de firmeza ideológica.
Se Sanae Takaichi acabar por não conseguir estabilizar o partido ou a economia – e há uma grande probabilidade de isso acontecer, tendo em conta que o atual governo é minoritário e a situação económica adversa –, a elite conservadora e dominada por homens do PLD poderá usar o seu fracasso para reforçar os estereótipos predominantes sobre a inadequação das mulheres para cargos de liderança de topo, isentando eficazmente a hierarquia masculina entrincheirada da culpa coletiva do partido.
O precedente histórico da primeira presidente da Coreia do Sul, Park Geun-hye, é contundente. A liderança conservadora e dinástica de Park não se traduziu num mandato político progressista em questões de género nem num compromisso sustentado para pôr fim à desigualdade de género na Coreia do Sul. Pelo contrário, o seu turbulento mandato caracterizou-se por escândalos políticos que acabaram por reforçar a fragilidade da liderança feminina em sistemas políticos profundamente patriarcais.
Para alcançar a liderança, Sanae Takaichi assumiu um rígido compromisso com o revisionismo histórico e o tradicionalismo do PLD, indispensável para o seu sucesso; assim, a identidade de género é um mero trunfo tático, e não uma promessa de reforma.
O seu sucesso deverá ser interpretado como uma vitória conservadora, não como um avanço para a igualdade de género, e muito menos para o feminismo. Na realidade, devido às suas origens conservadoras e à sua plataforma de apoio igualmente conservadora, Sanae Takaichi tem mesmo sido classificada como uma política antifeminista.
O cerne do paradoxo de Sanae Takaichi reside na concomitância da sua ascensão política como mulher e da sua firme oposição a mudanças jurídicas que beneficiariam tangivelmente a igualdade e a autonomia das mulheres no Japão. Sanae Takaichi é uma acérrima defensora da lei da sucessão monárquica exclusivamente masculina e uma das principais opositoras às mudanças legais que permitiriam aos casais manterem, se o quisessem, os apelidos de solteiros.
A oposição de Sanae Takaichi à lei do apelido duplo opcional (fūfubessei) tem origem na crença de que tais reformas prejudicariam irreparavelmente os valores familiares tradicionais. Há muito que Sanae Takaichi argumenta que o atual sistema de nomes deve permanecer em vigor, para preservar a unidade familiar e evitar confusões para os futuros descendentes.
Desde a década de 1980, o movimento fūfubessei, que reivindica a reforma do Código Civil, tem conquistado cada vez mais apoio entre os cidadãos japoneses. No entanto, apesar desse entusiasmo, o atual sistema continua a forçar mais de 95% das mulheres casadas a abandonarem as suas identidades profissionais e pessoais após o casamento.
Assim, a posição de Sanae Takaichi não apenas reflete uma convicção pessoal, como também revela que, de acordo com as expectativas do PLD, as mulheres que buscam o poder devem defender precisamente as estruturas que mais as impedem de alcançar a igualdade.
A ironia inerente à posição de Sanae Takaichi é flagrante: ela própria goza da autonomia profissional de utilizar o seu nome de solteira na carreira pública. Defende que a lei opcional do duplo apelido é uma ameaça direta ao sistema de registo familiar e à unidade nacional – um argumento conservador prevalecente que privilegia a rigidez institucional e demográfica em detrimento da liberdade pessoal e da igualdade de género.
Esta adesão ideológica coloca o Japão e a administração de Sanae Takaichi em conflito direto e imediato com os compromissos internacionais em matéria de direitos humanos. O principal órgão dedicado às questões de género das Nações Unidas, o Comité para a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres (CEDAW), tem denunciado repetida e explicitamente como discriminatórias a lei japonesa de apelido único obrigatório e a Lei da Casa Imperial, que permite apenas a integração dinástica de homens, instando o governo a alterá-las de forma a alinhar o país com as normas internacionais em questões de género.
As observações finais do CEDAW enfatizam repetidamente que essas leis perpetuam a desigualdade de género sistémica. A plataforma política de Sanae Takaichi vai seguramente servir para manter a tensão com a CEDAW, e as políticas do seu governo em matéria de família e de género continuarão a enfrentar intenso escrutínio internacional e a violar o espírito de igualdade de género preconizado pela CEDAW.
É provável que o empenho de Sanae Takaichi em preservar os valores tradicionais e conservadores não se trate de uma simples preferência, mas constitua a base inegociável da sua credibilidade política e do seu poder dentro do PLD.
A sua base de poder assenta sobretudo no patrocínio e no legado ideológico de Abe, que apoiou a sua carreira, e na mobilização política do núcleo ultraconservador do PLD. Este núcleo é fortemente influenciado pelo poderoso grupo de pressão ultranacionalista Nippon Kaigi (Conferência do Japão), que passou praticamente despercebido entre os principais órgãos de comunicação social até se ter tornado alvo de crescente escrutínio, a partir de meados da década de 2010.
O Nippon Kaigi defende agressivamente uma ampla agenda revisionista, que inclui a recuperação dos valores da família tradicional, a normalização do revisionismo histórico – procurando enaltecer a «libertação» da Ásia Oriental pelo Japão durante a guerra e reverenciar o imperador tal como acontecia antes da guerra – e a revisão do artigo 9.º da Constituição, reconstituindo as forças armadas.
As posições políticas passadas e atuais de Sanae Takaichi – a defesa do reforço estratégico da «diplomacia histórica» para contrariar narrativas estrangeiras sobre as «mulheres de conforto» [3] e o trabalho forçado durante a guerra, por exemplo, bem como a sua oposição a apelidos duplos e visitas frequentes ao Santuário Yasukuni – são sinais decisivos de lealdade dentro da esfera de influência desta organização.
Um dos aspetos essenciais do empenho ideológico de Sanae Takaichi é o facto de este poder estender-se à política securitária do Japão. Sanae Takaichi foi uma das principais defensoras do aumento significativo da despesa militar na sua última candidatura à chefia do governo, em 2021. Agora, defende o reforço da defesa nacional e a alteração da Constituição, com vista a legitimar totalmente as Forças de Autodefesa. Trata-se de um posicionamento em estreita sintonia com a «Doutrina de Abe», através do qual se projeta uma imagem forte, assertiva e masculina do Estado japonês a nível mundial, com enfoque na afirmação nacional e na expansão da defesa.
Tal como Abe – quando sob escrutínio internacional, por promover o ultranacionalismo – defendeu a «diplomacia pró-género» através da iniciativa Women Shine, Sanae Takaichi adotou uma linguagem que supostamente promove a capacitação feminina, em especial nas suas candidaturas à liderança do partido.
Incluem-se nesta abordagem propostas pragmáticas de cortes fiscais com benefícios monetários e uma assinalável promessa de «surpreender (odoroite)» o país com um equilíbrio de género ao estilo «nórdico» nas suas nomeações para o gabinete. É importante realçar que o atual «padrão nórdico» para o equilíbrio do executivo – frequentemente representado por países como a Suécia, onde o atual governo de Kristersson começou por nomear 11 mulheres ministras para um número total de 24 pastas (cerca de 45,8% de mulheres, aproximando-se da paridade) – continua a ser altamente ambicioso. É provável que esta mudança política estratégica se resuma à retórica do soft power, concebida para proteger o conteúdo das políticas da linha conservacionista dura.
É quase certo que os princípios fundamentais do nacionalismo de Sanae Takaichi – revisão constitucional, programas de defesa sólidos e revisionismo histórico – provoquem atritos diplomáticos imediatos. Nos últimos dias, Sanae Takaichi tem dado sinais de que vai moderar o discurso sobre alguns temas polémicos, nomeadamente no que toca à sua opinião segundo a qual o Japão deve manter boas relações com a China, um «vizinho importante». A candidata, porém, é já encarada por muitos como uma figura ultranacionalista e como a versão feminina de Abe, tanto na China quanto na Coreia do Sul.
As suas visitas frequentes ao controverso Santuário Yasukuni causam especial polémica. O santuário homenageia mais de 2,4 milhões de japoneses vítimas de guerra, incluindo indivíduos acusados de crimes de guerra de Classe A cometidos durante a Segunda Guerra Mundial. Estas iniciativas são interpretadas por Pequim e Seul como uma aprovação oficial do revisionismo histórico do Japão, minando os acordos pós-guerra.
Questionada recentemente na Fuji TV sobre se continuaria a visitar o santuário enquanto primeira-ministra, Sanae Takaichi evitou um compromisso explícito, afirmando que os criminosos de guerra tinham «cumprido» as suas sentenças e que «já não eram criminosos», acrescentando que «[pretende] continuar a rezar... seja onde for».
As suas declarações têm sido geralmente interpretadas como uma expressão de que pretende continuar a prestar homenagem às vítimas de guerra, evitando estrategicamente um ponto de conflito diplomático. Assim, é provável que um governo de Sanae Takaichi dê prioridade à memória nacionalista em detrimento da reconciliação regional.
Além disso, a retórica recente de Sanae Takaichi sobre as polémicas ilhas Dokdo/Takeshima – incluindo a reivindicação pública de propriedade sobre elas e a defesa da participação ministerial nos controversos eventos do «Dia de Takeshima» – inflamou os ânimos sul-coreanos e, caso venha a colocar essas palavras em prática ao ser eleita, Sanae Takaichi provocará um confronto diplomático imediato e grave com a Coreia do Sul.
Além desta disputa específica sobre as ilhas, a postura agressiva de Sanae Takaichi em matéria de política externa – impulsionada pelo seu alinhamento com a declaração de Abe segundo a qual «uma contingência em Taiwan é uma contingência para o Japão» –já é vista por Pequim como uma provocação deliberada e uma ameaça direta à estabilidade. A China considera que esta postura viola diretamente os seus interesses fundamentais em matéria de integridade territorial e que é um sinal político de que o Japão pretende abandonar o pacifismo do pós-guerra para se afirmar agressivamente num ponto nevrálgico regional. No entanto, é expectável que as agendas de política externa e de segurança de Sanae Takaichi sejam condicionadas pelo atual governo minoritário do PLD e pela sua coligação com o partido «pacifista» Komeito [4].
Por todos estes motivos, a potencial chefia do governo por Sanae Takaichi é menos uma vitória histórica significativa para a igualdade de género no Japão do que um sintoma da resiliência política do PLD e do seu núcleo conservador. Acima de tudo, a sua ascensão parece demonstrar que o caminho mais plausível para uma mulher chegar ao poder dentro da rígida hierarquia do PLD é através da plena e inabalável aceitação dos elementos mais patriarcais e nacionalistas do partido. Se for bem-sucedida, a liderança de Sanae Takaichi representará um triunfo da assimilação ideológica sobre a reforma em questões de género.
[1] Nota de editor: aconteceu no dia 4 de outubro de 2025.
[2] Nota de editor: é-o desde 21 de outubro de 2025.
[3] Nota de editor: expressão japonesa que se refere às mulheres que foram escravizadas sexualmente pelas Forças Armadas do Japão durante a Segunda Guerra Mundial. A própria expressão é vergonhosa, pois é claramente um eufemismo face ao sofrimento de milhares de mulheres que foram escravizadas.
[4] Nota de editor: este partido abandonou, após 26 anos, a coligação com o LDP. O governo atual fez uma coligação com o Partido da Inovação do Japão, conhecido como Ishin. Este último parece ser favorável à revisão do artigo 9, mas precisamos de mais tempo e mais dados para poder validar essa perceção.