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 Turbinas eólicas e tubos industriais com fumo a sair num dia nublado na Alemanha. Créditos shutterstock

O futuro da energia

Este é 11º artigo da «Foreign Policy», publicado pela Fundação em parceria editorial com esta revista internacional. Um texto escolhido por Bruno Cardoso Reis, professor no ISCTE-IUL, que «analisa os diferentes cenários de evolução da política energética no mundo, previstos no mais recente relatório da Agência Internacional da Energia» e que ganha especial relevância depois da Cimeira do Clima, realizada em Belém.
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A transição energética não é inevitável, mas também não o é que a situação atual se mantenha.

Na semana de 9 de novembro, os líderes mundiais reuniram-se em Belém, no Brasil, para a cimeira anual das Nações Unidas sobre o clima, para abordar uma realidade preocupante: as emissões globais de CO2 causadas pelos combustíveis fósseis devem atingir um novo pico em 2025; a meta de impedir que a temperatura aumente mais do que 1,5 ºC acima dos níveis pré-industriais é por ora inalcançável; e os Estados Unidos nem se deram ao trabalho de comparecer na cimeira.

Foi neste contexto que a Agência Internacional de Energia (AIE) publicou o relatório World Energy Outlook (Perspetivas Energéticas Mundiais), que se destaca pelo facto de um dos seus cenários admitir que a procura de petróleo continuará a aumentar até 2050.

O relatório prevê, no entanto, vários cenários diferentes, sendo algo ambíguo relativamente às premissas por detrás de cada um deles. Por isso, e como seria de esperar, há apologistas de diferentes posições que ora declaram que o relatório é uma análise realista e útil sobre o excesso de confiança na transição para a energia limpa, ora que demonstra que essa transição é inevitável.

Caso as políticas atuais se mantenham, a procura de petróleo subirá de 100 milhões de barris por dia para 113 milhões de barris por dia até 2050.

A verdade, como sempre, está algures num ponto intermédio. Nem o aumento sustentado da procura de petróleo e gás deve ser assumido como garantido, nem se deve confiar na inevitabilidade de uma transição mais rápida. Em grande medida, o rumo a seguir vai depender da forma como os países encaram o impacto da energia limpa na sua segurança nacional.

As notícias sobre o mais recente World Energy Outlook têm sido confusas, o que é compreensível, tendo em conta a dificuldade de compreender as premissas dos dois principais cenários hipotéticos previstos pela AIE: um baseia-se nas políticas efetivas que estão atualmente a ser seguidas pelos países; o outro reflete as políticas declaradas, ou seja, as propostas para o futuro. Assim, têm proliferado manchetes segundo as quais a procura de petróleo «pode» aumentar até 2050 — uma informação sem grande utilidade para avaliar probabilidades.

Caso as políticas atuais se mantenham, a procura de petróleo subirá de 100 milhões de barris por dia para 113 milhões de barris por dia até 2050; se nos basearmos nas políticas declaradas, a procura deverá atingir um pico de aproximadamente 102 milhões em 2030, depois do que começará a diminuir progressivamente. Noutro cenário, explica-se o que seria necessário fazer para atingir emissões líquidas nulas até 2050, uma meta para a qual o mundo continua a não estar preparado.

A AIE prevê que a União Europeia venha a implementar o seu plano de descarbonização industrial (...) mas não alcançará a meta improvável de produzir 10 milhões de toneladas métricas de hidrogénio verde até 2030.

Em suma, qual é o rumo mais provável? O cenário de manutenção das políticas atuais representa uma visão estática das políticas e da tecnologia, pressupondo que as leis atualmente em vigor não serão alteradas e que as novas tecnologias serão adotadas mais devagar — não só mais devagar do que no cenário das políticas declaradas, como também mais devagar do que tem sido efetivamente o caso no passado recente.

O cenário das políticas declaradas, por outro lado, apresenta uma visão mais dinâmica, pressupondo que os governos vão implementar as políticas declaradas, ainda que não cumpram todas as suas ambições ou metas.

Em alguns casos, as diferenças são subtis. No cenário do relatório da AIE baseado no pressuposto da manutenção das políticas atuais, por exemplo, as melhorias na economia de combustíveis no Japão estagnam assim que a meta regulatória para 2030 for alcançada, enquanto no cenário com base no pressuposto de que serão concretizadas as políticas declaradas se assume que o Japão continuará a reforçar gradualmente essa política energética depois de 2030.

Fazer certas opções é inevitável quando se trata de elaborar cenários. A AIE prevê, por exemplo, que a União Europeia venha a implementar o seu plano de descarbonização industrial, no valor de 100 milhões de euros, mas que não alcançará a meta improvável de produzir 10 milhões de toneladas métricas de hidrogénio verde até 2030. Em contrapartida, a AIE deposita muito mais confiança na capacidade da China para executar o seu plano energético nacional — uma convicção que tem por base a sua história recente.

Há, em todo o mundo, cerca de 2 mil milhões de pessoas sem acesso a água potável para cozinhar e 730 milhões sem acesso à eletricidade.

A AIE avisa que tratar as políticas atualmente em vigor como os «negócios como de costume» pode ser «enganador». Em relatórios anteriores, os cenários de manutenção das políticas subestimaram sistematicamente o dinamismo político e tecnológico. Por exemplo, o cenário de manutenção das políticas previsto no relatório anterior da AIE, em 2019, subestimou significativamente a rapidez de crescimento das energias renováveis — mas também o crescimento da indústria do carvão.

A escolha do cenário mais plausível depende dos pressupostos que considerarmos mais credíveis. Para darmos crédito à projeção da AIE segundo a qual a procura de petróleo vai aumentar até 2050, teremos de acreditar que o mercado dos veículos elétricos quase não crescerá fora da China e da UE, e que as tecnologias alternativas irão estagnar (apesar da diminuição dos custos e do aumento do investimento) e que o mundo vai ser complacente face ao agravamento do impacto das alterações climáticas.

Ao refletirmos sobre a forma como a perceção de urgência em torno das alterações climáticas pode evoluir, vale a pena evocar a máxima do economista americano Herb Stein: «Se uma coisa não pode continuar para sempre, então irá parar.»Tendo em conta a crescente preocupação com o preço da energia, importa sublinhar que a AIE considera que a despesa das famílias com a energia e os preços do petróleo serão mais baixos no cenário baseado nas políticas declaradas do que no cenário de manutenção das políticas atuais — isto porque, no primeiro cenário, o consumo de combustíveis fósseis diminui e o sistema produz eletricidade de forma mais eficiente.

Ao mesmo tempo, o relatório da AIE recorda os leitores de que há, em todo o mundo, cerca de 2 mil milhões de pessoas sem acesso a água potável para cozinhar e 730 milhões sem acesso à eletricidade. Milhares de milhões de outras pessoas consomem apenas uma ínfima parte da quantidade da energia que é dada por garantida por muitos habitantes das economias avançadas.

Para que se cumpram as aspirações não só relacionadas com o acesso à eletricidade, mas também com a agricultura mecanizada, a industrialização e confortos como o acesso ao ar condicionado, à refrigeração e aos automóveis, serão necessárias enormes quantidades de energia, muito para além das previsões da AIE.

O maior motor da queda nos custos da energia limpa tem sido a China.

O novo cenário de manutenção das políticas atuais está em consonância com a ideia, cada vez mais citada, de que «não há transição energética; há apenas soma de energia», como afirmou recentemente o secretário da Administração Interna dos EUA, Doug Burgum. Até ao momento, é isso que tem acontecido. O sistema energético mundial é tão vasto que, em grande medida, o crescimento da energia limpa tem respondido à nova procura, fruto do aumento populacional e económico; em contrapartida, não cresceu suficientemente depressa para substituir os hidrocarbonetos.

No entanto, conforme explicado no «Energy Outlook 2025» da BP, a distinção que se deve fazer não é entre soma e transição, mas sim entre soma e substituição, que são duas etapas distintas da transição.

A soma de mais energia é, necessariamente, a primeira etapa; segue-se a substituição. Hoje, cerca de 40% da procura mundial de energia provém de regiões que já entraram na etapa de substituição, uma percentagem que, segundo as previsões da BP, aumentará para 60% até 2050.

A procura de energia continuará a aumentar, mas isso não implica necessariamente que todas as formas de energia cresçam indefinidamente. O ritmo a que a soma de energia dará lugar à substituição depende da rapidez com que os custos da energia limpa diminuam — o que dependerá não só das políticas seguidas, mas também dos avanços tecnológicos, que, atualmente, são muito impulsionados pelo boom da inteligência artificial, como expliquei recentemente na Foreign Policy.

O maior motor da queda nos custos da energia limpa, porém, tem sido a China — facto que reforça a importância dos alertas da AIE sobre riscos geopolíticos. O aumento impressionante da capacidade industrial da China no setor das energias renováveis, baterias, veículos elétricos e tecnologias associadas reconfigurou os mercados globais.

Atualmente, a China consegue produzir mais do dobro dos sistemas de painéis solares instalados anualmente no mundo inteiro, o que fez com que o seu preço baixasse para menos de 10 cêntimos por watt — uma queda brutal face aos quase 80 cêntimos de 2014.

As tensões geopolíticas, os riscos para a segurança nacional e os receios relacionados com a economia estão a dominar a definição das prioridades da política energética.

A velocidade a que as tecnologias limpas mais baratas podem reconfigurar a política energética dos países ficou bem espelhada no Paquistão, onde a descida acentuada do preço dos painéis solares chineses levou as famílias e as empresas a instalarem grandes quantidades de painéis fotovoltaicos nos telhados. Devido a esta tendência, verificou-se uma quebra da procura de energia da rede elétrica gerada por centrais a carvão, comprado com recurso a mais dívida pública, face ao que o governo tinha planeado e orçamentado.

Resta saber se os governos de outros países seguirão o exemplo do Paquistão, adotando a energia barata e limpa chinesa. Isso dependerá da forma como interpretarem e responderem à mensagem central do World Energy Outlook, segundo a qual as tensões geopolíticas, os riscos para a segurança nacional e os receios relacionados com a economia estão a dominar, mais uma vez, a definição das prioridades da política energética.

Como Meghan O'Sullivan e eu argumentámos recentemente, os crescentes receios em matéria de segurança energética aumentam os incentivos para reduzir as importações e diversificar as fontes de abastecimento, por via da eletrificação do consumo de energia e da produção interna de eletricidade, nomeadamente através da energia solar, eólica, nuclear e geotérmica — e, em alguns países, também através do carvão.

Assim, a necessidade imperativa de reforçar a segurança energética poderia promover iniciativas destinadas a reduzir o consumo de petróleo e de gás: como aconteceu, por exemplo, na Etiópia, onde o governo procura substituir as importações de combustível caro por eletricidade produzida no país através da controversa construção de uma barragem e da proibição da importação de carros novos a gasolina e a diesel.

No entanto, não sabemos se os receios relacionados com a segurança nacional contribuem para implementar a energia limpa ou, pelo contrário, se a dificultam.

Todos os anos, serão investidos mais de 600 mil milhões de dólares em petróleo e gás — enquanto o mundo se afasta mais dos seus objetivos climáticos. 

A resposta depende de os países considerarem ou não que a dependência das cadeias de abastecimento chinesas para a tecnologia de energia limpa comporta os mesmos riscos de segurança energética que a dependência do petróleo e do gás importados. Em caso afirmativo, e se fizerem questão de produzir essas tecnologias limpas internamente, então os custos vão aumentar e a sua difusão vai abrandar.

Há menos diferenças entre os dois principais cenários previstos pela AIE do que sugerem as manchetes, as quais têm destacado a questão de saber se a procura de petróleo vai estabilizar daqui a uma década ou se, pelo contrário, vai aumentar mais 10% até meados do século.

Em ambos os cenários, o consumo de energia aumenta, a eletrificação acelera, as energias renováveis desenvolvem-se mais depressa do que quaisquer outras e, todos os anos, serão investidos mais de 600 mil milhões de dólares em petróleo e gás — enquanto o mundo se afasta mais dos seus objetivos climáticos. 

Nenhuma das trajetórias dos cenários desenhados pela AIE se vai desenrolar exatamente como previsto. Contudo, tendo em conta o ritmo da inovação tecnológica, as potenciais mudanças sociais e políticas e a constante reconfiguração da geopolítica energética, seria um erro ainda maior imaginar que o futuro será muito semelhante ao presente.

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