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Imagem de uma rua de cidade asiática, com grande concentração de motos. Crédito: Lan Yao, Canva

Nove em cada dez pessoas respiram ar com poluentes que excedem limites

As alterações climáticas e os fatores ambientais são o maior desafio para a saúde, alerta nesta entrevista Luís Campos, médico e presidente do Conselho Português para a Saúde e o Ambiente. Todos os anos, são responsáveis pela morte de cerca de 13 milhões de pessoas em todo o mundo.
9 min

Tem alertado para o grande impacto que os problemas associados ao clima terão na saúde humana. Que problemas terão mais impacto?

A superpopulação, as alterações climáticas, a degradação dos ecossistemas, a perda de biodiversidade e o esgotamento dos recursos naturais. Levámos 200.000 anos a atingir uma população mundial de mil milhões – em 1803 – e 220 anos a atingir 8 mil milhões de pessoas, o que aconteceu a 15 de novembro de 2023. Desde 1970, a nossa Pegada Ecológica tem excedido a taxa de regeneração da Terra.

 

O cenário é muito pessimista?

As alterações climáticas poderão arrastar mais de 100 milhões de pessoas de volta à pobreza extrema até 2030.

 

Que efeitos das alterações climáticas mais ameaçam a saúde humana?

O aquecimento global, as temperaturas extremas, a escassez de alimentos, o aumento dos alérgenos, a perda de biodiversidade, as tempestades mais severas, as inundações, os incêndios e as secas, os deslocamentos. Aliás, houve um aumento na frequência e intensidade das temperaturas extremas, incluindo ondas de calor, precipitação intensa, e grandes ciclones tropicais na maioria das regiões terrestres.

 

Qual a que lhe parece mais próxima de suceder?

A que poderá estar mais próxima é a alteração das correntes no oceano Atlântico.

 

Falou também do esgotamento dos recursos naturais.

Sim. A degradação dos ecossistemas, a perda de biodiversidade e o esgotamento dos recursos naturais são outras determinantes ambientais com impacto sobre a saúde das populações.

Desde a revolução industrial, as atividades humanas têm vindo a destruir cada vez mais florestas, prados e zonas húmidas, ameaçando vidas humanas e bem-estar. Estima-se que 75% da superfície terrestre livre de gelo já foi significativamente alterada e mais de 85% da zona húmida já foi perdida.

Nos últimos 50 anos, houve uma diminuição média de 70% no tamanho da população de mamíferos, aves, anfíbios, répteis e peixes e um milhão de espécies estão em risco de extinção.

As alterações climáticas ameaçam arrastar 100 milhões de pessoas para a pobreza extrema até 2030.
Presidente do Conselho Português para a Saúde e Ambiente

A falta de água preocupa-o?

A água é, no que concerne ao esgotamento dos recursos naturais, o mais preocupante. Estima-se que a seca global poderá ter impacto em mais de 75% da população mundial até 2050.

 

O ambiente será em breve uma das maiores ameaças à saúde das populações?

Creio que os fatores ambientais serão no futuro o maior desafio para o setor da saúde. Todos os anos causam a morte de cerca de 13 milhões de pessoas, mais de 20% da mortalidade global. A nível mundial, 9 em cada 10 pessoas respiram ar contendo elevados níveis de poluentes que excedem os limites das diretrizes da Organização Mundial de Saúde.

 

A poluição está na origem de muitas doenças?

A poluição do ar e o aumento de alérgenos estão a aumentar a incidência de doenças cardio e cerebrovasculares, cancro do pulmão, doenças pulmonares obstrutivas crónicas, asma e alergias. 

 

Há também, relacionado com as mudanças climáticas, o problema da transmissão de doenças pelos chamados vetores, como os mosquitos.

A alteração na ecologia dos vetores deverá aumentar as doenças transmitidas por vetores, como a malária, dengue, febre amarela, vírus zika e encefalite japonesa, as quais já são a causa de mais de 700.000 mortes anuais a nível global.

 

Outra situação que os especialistas têm falado diz respeito às doenças transmitidas pelos animais, como muitos coronavírus.

As alterações climáticas, mas também a desflorestação, o comércio ilegal e mal regulamentado de animais selvagens, a intensificação da agricultura, a produção animal e a resistência antimicrobiana aumentam, de facto, o risco de doenças zoonóticas, doenças transmitidas pelos animais, tais como salmonelose, o vírus do Nilo Ocidental os, coronavírus emergentes, a raiva, a brucelose e a Doença de Lyme. Estas doenças representam 60% dos agentes patogénicos que causam doenças humanas e quase 100% das pandemias têm sido causadas por zoonoses.

Mais de cinco milhões de mortes a mais por ano podem ser atribuídas a temperaturas extremas.
Presidente do Conselho Português para a Saúde e Ambiente

As doenças de origem alimentar também serão um problema cada vez maior?

Deverão aumentar. Já causam 420.000 mortes por ano em todo o mundo. E todos os anos, mais de 3,4 milhões de pessoas morrem em consequência de doenças relacionadas com a água, tais como cólera, tifoide e disenteria.

 

Ou seja, há cada vez mais mortes associadas a questões relacionadas com o clima?

Desde 1970, os riscos climáticos, meteorológicos e hídricos representaram 50% de todas as catástrofes e 45% de todas as mortes comunicadas. Mais de 10 milhões de pessoas perderam as suas vidas devido a grandes secas no século passado e, todos os anos, cerca de 339.000 pessoas morrem no mundo em consequência do fumo dos incêndios florestais. Mais de cinco milhões de mortes a mais por ano podem ser atribuídas a temperaturas extremas, que também afetam diretamente o organismo.

 

Há quem alerte para o impacto que as alterações climáticas podem ter na saúde mental.

As alterações climáticas estão a ter impactos cada vez mais fortes e duradouros nas pessoas, que podem, direta e indiretamente, afetar a sua saúde mental e bem-estar psicossocial.

 

Quem são os mais afetados por todos estes problemas?

Os grupos particularmente vulneráveis como as crianças, os idosos, os doentes com multimorbilidade, os sem-abrigo e as pessoas pobres. Nos últimos 20 anos, as doenças relacionadas com o calor aumentaram em mais de 50% entre os idosos, por exemplo.

Em Portugal, o setor da saúde tem uma pegada climática elevada, de 4,8%.
Presidente do Conselho Português para a Saúde e Ambiente

Além de o ambiente afetar a saúde, também os serviços de saúde interferem na qualidade do ambiente. Qual a pegada ecológica do setor da saúde?

O setor da saúde, sendo essencial para responder à transição epidemiológica em curso e ao maior risco de eventos inesperados, tem uma pegada climática que é equivalente a 4,4% das emissões líquidas globais de gases com efeito de estufa, a nível global.  Em Portugal, esta taxa é ainda mais elevada, sendo de 4,8%.

 

O que mais causa essa emissão?

A maior contribuição para esta emissão vem do fornecimento de bens e serviços, como os medicamentos e equipamentos, mas também dos transportes, da energia, dos sistemas de aquecimento e de refrigeração, da iluminação, e de outras múltiplas causas.

 

Por isso tem apelado tanto à necessidade de reduzir essa pegada.

Reduzir a pegada ecológica do setor da saúde tem que ser uma prioridade política, exige uma estratégia nacional e medidas como a criação nos hospitais de serviços de sustentabilidade ambiental, a revisão de leis obsoletas como a lei dos resíduos, a introdução de critérios de sustentabilidade ambiental nas compras e contratações, uma aposta na telemedicina e na medicina de proximidade para reduzir os trajetos dos doentes, a medição da pegada carbónica das instituições de saúde e a definição de metas claras para a descarbonização.

No Reino Unido, por exemplo, o National Health Service colocou como meta atingir as zero emissões em 2040, em tudo o que depender diretamente de si e, em 2045, em tudo o que dependa indiretamente.

 

Fala de medidas que implicam muitos investimentos…

Podem implicar investimentos a curto prazo, mas resultam em avultadas poupanças a médio e a longo prazo.

 

Como é que na prática médica se pode reduzir essa pegada?

Os gases anestésicos são responsáveis por cerca de 5% das emissões do setor da saúde, e podem deixar de ser utilizados porque existem alternativas anestésicas a estes gases. O uso de cateteres remanufaturados como alternativa a cateteres de uso único reduz em cerca de 50% o impacto no aquecimento global.  O chamado “blue wrap”, um plástico esterilizado que serve para embrulhar as caixas e os fatos nos blocos operatórios, e que vai diretamente para o lixo, por imposição legal, pode perfeitamente ser reciclado para roupa ou equipamentos.

 

O que é que tem de mudar mais nos hospitais?

Estima-se que os serviços de alimentação sejam responsáveis por cerca de 6% das emissões totais. Alimentos mais saudáveis, sazonais e de origem local podem melhorar o bem-estar e reduzir essas emissões. A própria organização dos cuidados de saúde, com a integração dos diferentes níveis de cuidados no mesmo local, onde tal for possível, pode diminuir drasticamente os trajetos que os doentes têm que percorrer, além de serem mais cómodos.

 

E os profissionais de saúde, o que podem fazer?

Os profissionais de saúde, para além de cuidadores, devem ser também advogados dos doentes.

 

Na sua opinião os médicos têm obrigação de fazer mais do que estão a fazer?

Quando sabemos que as determinantes ambientais já são a causa de uma em cada quatro mortes a nível global, penso que, nós médicos, temos o dever ético de nos envolvermos na luta contra as alterações climáticas e a degradação ambiental. 

Os profissionais de saúde são as profissões em que a sociedade mais confia e não podemos desperdiçar este capital de confiança, devemos elevar a voz para dizer que não estamos perante um problema de ambientalistas ou jovens radicais, mas perante algo que nos afeta a todos e cada um de nós.

A nível do nosso comportamento individual e a nível das organizações em que tralhamos temos que nos empenhar em fazer a nossa parte.

 

Como médico de Medicina Interna, acha que as sociedades médicas devem tomar posição sobre o assunto?

A Organização Mundial de Saúde, várias sociedades científicas, e organismos profissionais de diferentes países já tomaram posições sobre o impacto das alterações climáticas e da degradação ambiental na saúde da população. A Sociedade Portuguesa de Medicina Interna foi a primeira sociedade de Medicina Interna do mundo a tomar uma posição pública e a emitir recomendações sobre este tema, em 2017.

 

Aliás, a sociedade Portuguesa de Medicina Interna fez um documento a apelar ao envolvimento dos clínicos...

Sim, em 2022, publicámos no European Journal of Internal Medicine um apelo para um maior envolvimento dos profissionais de saúde na luta contra as alterações climáticas e a degradação ambiental, o qual resultou de um consenso das sociedades de Medicina Interna de 41 países da Europa, Médio Oriente e Norte de África, agregadas na Federação Europeia de Medicina Interna.

Já este ano, dinamizámos um apelo semelhante, publicado simultaneamente em Portugal e Espanha, o qual reuniu, pela primeira vez em qualquer área da Medicina, todas as sociedades ou associações de Medicina Interna dos países que falam espanhol com a dos países que falam português, no total de 29 países.

Em 2022 fundou o Conselho Português para a Saúde e Ambiente. Quais são os grandes objetivos deste organismo?

Foi fundado por mim em conjunto com o José Victor Malheiros e o professor João Queiroz e Melo. A nossa visão é a de que as gerações atuais e futuras tenham direito a um ambiente limpo, saudável e sustentável.

Os nossos objetivos são reunir as principais organizações relacionadas com a saúde para intervir conjuntamente nas questões das alterações climáticas, degradação ambiental e seu impacto na saúde. Queremos defender a necessidade de o setor da saúde reduzir a sua pegada ecológica, promover a sensibilização do público e dos profissionais de saúde, a educação e investigação nesta área e ajudar o sistema de saúde a responder à atual transição epidemiológica e ao aumento do risco de acontecimentos inesperados.

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