O atribulado divórcio do gás russo na Europa
A tarefa de garantir um abastecimento estável de energia é frequentemente descrita em termos de um «trilema», em que se procura um equilíbrio entre a segurança do aprovisionamento, a sustentabilidade ambiental e o custo financeiro.
Dos três pilares do abastecimento energético, a segurança é o mais fácil de tomar por garantido. O aprovisionamento parece estar seguro até ao momento em que deixa de estar. É particularmente fácil para os países empenhados em reduzir o consumo de combustíveis fósseis ignorar a segurança do abastecimento de combustíveis fósseis. A atenção política centra-se na construção de sistemas de energia renovável e com zero emissões de carbono, bem como na atenuação dos custos económicos, sociais e políticos da transição. A ideia seria que o sistema existente funcionaria por si próprio até deixar de ser necessário. Foi este o pensamento em grande parte da Europa até há dois anos.
A invasão em grande escala da Ucrânia pela Rússia, a 24 de fevereiro de 2022, chocou os europeus, levando-os a perceber que não podiam continuar a considerar a segurança do seu abastecimento de combustíveis fósseis como um dado adquirido. Partia-se do pressuposto de que a Europa e a Rússia estavam ligadas por uma relação segura e simbiótica, uma vez que a Europa precisava de gás e a Rússia não tinha infraestruturas para vender esse gás em nenhum outro lugar. Esta convicção revelou-se errada.
Quando a guerra começou, a Europa importava uma série de produtos energéticos da Rússia, incluindo crude e produtos petrolíferos, produtos de urânio, carvão e gás natural liquefeito (GNL). Mas a arma energética mais incisiva do Kremlin era o gás natural, fornecido pela empresa estatal monopolista Gazprom através de gasodutos e com base em contratos de longo prazo. A Europa precisa do gás para produção de eletricidade, aquecimento doméstico e processos industriais.
Antes da invasão, mais de 40% do gás natural importado pela Europa vinha da Rússia, o maior fornecedor individual da Europa. O combustível era abastecido através de quatro condutas principais. Alguns países europeus dependiam da Rússia para mais de 80% do seu fornecimento de gás, incluindo a Áustria e a Letónia. Mas a Alemanha era de longe o maior cliente de gás da Rússia em termos de volume, importando quase o dobro do volume de Itália, o segundo maior cliente. «O petróleo e o gás representam, em conjunto, 60% da energia primária», escreveu a The Economist em maio de 2022, «e a Rússia é, desde há muito, o maior fornecedor de ambos. Na véspera do início da guerra na Ucrânia, a Rússia fornecia um terço do petróleo da Alemanha, cerca de metade das suas importações de carvão e mais de metade do seu gás».
O presente policy paper inaugura um projeto sobre a segurança energética europeia em tempos de turbulência, analisando a resposta europeia à redução drástica do aprovisionamento de gás russo por gasoduto. Os futuros papers desta série aprofundarão aspetos específicos da segurança energética europeia e as suas implicações políticas.
As medidas da Rússia para cortar o abastecimento de gás à Europa a partir de maio de 2022 foram particularmente agressivas, porque era extremamente difícil lidar com a perda de um volume tão grande de gás. Outras fontes regionais de gás fornecido por gasoduto (por exemplo, proveniente do Mar do Norte) têm vindo a diminuir e há setores-chave da indústria europeia (por exemplo, os produtos químicos) que dependem do gás como fonte de energia primária. O GNL é um potencial substituto do gás abastecido por gasoduto, mas exige infraestruturas especializadas. Além de que os mercados mundiais de GNL já eram escassos, com grande parte da oferta mundial a ser canalizada para a Ásia.
A história da adaptação da Europa ao fecho da torneira do seu principal fornecedor de gás natural é geralmente contada em termos heroicos, com o continente a assegurar novos fornecedores, a poupar ou a substituir outros (muitas vezes com generosos subsídios estatais para a indústria e/ou para os consumidores), de modo a resistir à tempestade e a atirar o declínio das receitas à cara da Rússia, que transformou o gás numa arma.
A narrativa não é falsa, e a escala e a velocidade da resposta teriam sido certamente inimagináveis do ponto de vista político antes da invasão. Mas o autoelogio esconde o facto de que houve significativas diferenças regionais tanto no abastecimento de energia como na resposta à crise, o que tornará difícil no futuro gerar uma resposta política à escala europeia.
Mais importante ainda, o divórcio entre a Europa e o gás russo não está de modo algum concluído. Globalmente, em 2023, a Europa ainda importava 14,8% do seu aprovisionamento total de gás da Rússia, com 8,7% a chegar através de gasodutos (25,1 mil milhões de metros cúbicos, ou bcm) e 6,1% sob a forma de GNL (17,8 bcm). (Para comparação, durante o primeiro trimestre de 2021, 47% do aprovisionamento total de gás da Europa vinha da Rússia). Isto significa que os poucos Estados-membros que não conseguiram ou não decidiram reduzir a sua dependência continuam a ser altamente vulneráveis ao uso das importações de energia como arma por parte da Rússia.
A Rússia tem um longo historial de uso do seu domínio no fornecimento de gás por gasodutos para a Europa para alcançar fins políticos, especialmente no que toca aos gasodutos russos que atravessam a Ucrânia. Em 2006 e 2009, as disputas com a Ucrânia sobre os termos dos contratos de trânsito levaram a cortes no aprovisionamento de gás russo, afetando muitos países da região. Disputas menos dramáticas ocorreram entre a Rússia e a Polónia relativamente ao trânsito para a Europa através do gasoduto Yamal. (Ronald Reagan opôs-se à construção do gasoduto Yamal na década de 1980, preocupado com a influência que este daria aos soviéticos sobre a Europa. As suas preocupações eram premonitórias.)
Os projetos mais recentes de gasodutos russos, incluindo o TurkStream e o Nord Stream, destinavam-se a contornar a necessidade de transportar gás através da Ucrânia e a evitar o pagamento de taxas de trânsito ao seu governo. Os países destinatários destes gasodutos ficaram genericamente satisfeitos por terem uma ligação mais direta ao fornecimento de gás russo, sem se sujeitarem a disputas entre a Rússia e a Ucrânia. Ao mesmo tempo, estes gasodutos tinham também claramente como objetivo aprofundar os laços políticos mútuos.
O envolvimento da Rússia no setor alemão do gás é o caso mais notório. O gasoduto Nord Stream permite uma ligação direta da Rússia à Alemanha através do Mar Báltico, evitando qualquer passagem pela Ucrânia, Polónia, Bielorrússia ou Países Bálticos. O empreendimento foi um projeto do presidente russo Vladimir Putin com o seu amigo, o chanceler alemão Gerhard Schröder, o qual assinou uma declaração de intenções conjunta para o projeto no início de setembro de 2005, pouco antes de perder as eleições nacionais para Angela Merkel. Imediatamente após a sua demissão, Schröder passou a integrar o conselho de administração do novo consórcio de gasodutos.
O primeiro gasoduto Nord Stream, também conhecido como Nord Stream 1, é uma joint venture com uma quota de 51% detida pela empresa russa Gazprom e os restantes 49% por um grupo de empresas europeias. (O Nord Stream consiste em duas condutas físicas, NS 1 A e B, uma das quais iniciou atividade em novembro de 2011 e a outra em outubro de 2012.) Com uma capacidade de 55 bcm por ano, o Nord Stream tornou-se a maior fonte de abastecimento de gás russo para a Europa e, em 2021, forneceu dois terços das importações totais da Alemanha. O envolvimento da Gazprom nos mercados de gás alemães e regionais aprofundou-se quando a empresa adquiriu um quarto das instalações de armazenamento subterrâneo de gás da Alemanha, incluindo a maior instalação deste tipo na Europa Ocidental, em Rehden, adquiridas ao seu proprietário alemão, a BASF. O acordo foi inicialmente interrompido após a anexação ilegal da Crimeia pela Rússia em fevereiro de 2014, mas acabou por ser retomado em 2015.
O projeto Nord Stream 2 foi anunciado em 2015 gerando grande controvérsia. O argumento principal centrava-se em perceber se se tratava de um projeto comercial, destinado a satisfazer a procura crescente de gás natural na Europa, ou de um projeto geopolítico destinado a aprofundar o domínio da Rússia sobre os mercados de gás europeus e a privar a economia ucraniana das receitas provenientes do trânsito de gás natural. Os Estados Unidos opuseram-se a este gasoduto, juntamente com a Ucrânia e muitos países da Europa de Leste, enquanto a chanceler alemã Angela Merkel o apoiou fortemente.
Este segundo conjunto de dois gasodutos (NS 2 A e B), que deveria duplicar a capacidade do Nord Stream 1 para um total de 110 bcm/ano, foi concluído em setembro de 2021, mas nunca entrou em funcionamento. A Alemanha interrompeu o processo de aprovação do Nord Stream 2 a 22 de fevereiro de 2022, dois dias antes da invasão da Ucrânia pela Rússia, quando esta reconheceu as «repúblicas» ucranianas orientais de Lugansk e Donetsk, partes das quais ocupava desde 2014. Posteriormente, a 26 de setembro, três das quatro condutas que constituem o sistema Nord Stream foram gravemente danificadas, naquilo que, segundo todos os relatos, foi um ato de sabotagem. Apesar de muita especulação e da abertura de vários inquéritos governamentais, os responsáveis ainda não foram identificados. (Alguns destes inquéritos foram encerrados desde então, sem se ter chegado a conclusões definitivas.)
Aqueles que defendiam contratos exclusivos e de longo prazo para gasodutos entre a Rússia e a Europa descreviam estas relações nos termos mais elogiosos e simbióticos, quase como um casamento. Um deputado alemão do Parlamento Europeu resumiu este sentimento amplamente partilhado em 2018 dizendo: «A economia russa está altamente dependente das receitas das exportações de gás para a União Europeia, o que cria uma forte dependência mútua entre nós.» Mas, como cônjuge, a Rússia revelou-se uma espécie de Barba Azul. Putin transformou o mercado europeu de gás natural numa outra frente da guerra do seu país contra a Ucrânia, utilizando como arma o seu domínio do mercado, para coagir os europeus à aquiescência ou, pelo menos, para os paralisar politicamente e, assim, os impedir de apoiarem Kyiv. Essa tentativa não só falhou como levou a uma separação quase completa — que, como na maioria dos divórcios, foi dolorosa para ambas as partes.
Em retrospetiva, é evidente que a Rússia começou a preparar cortes de gás antes da invasão em grande escala. Em 2021, uma forte recuperação económica após a queda da pandemia, uma forte procura de GNL na Ásia e um inverno e primavera particularmente frios levou ao aumento dos preços do gás natural na Europa e a níveis muito baixos de armazenamento de gás antes do inverno. A Rússia começou a abrandar o abastecimento para a Europa nesse verão, fornecendo os volumes de gás contratualmente obrigatórios, mas não as vendas à vista adicionais que normalmente ocorriam, e não reabastecendo as reservas de gás detidas pela Rússia na Europa. A Gazprom negou que estivesse a restringir o aprovisionamento de gás, mas o responsável da Agência Internacional de Energia, Fatih Birol, contrapôs que, se quisesse, Moscovo poderia aumentar o aprovisionamento em um terço. Putin respondeu sugerindo que a Alemanha teria de certificar o gasoduto Nord Stream 2.
O conflito do gás precipitou-se em março e abril de 2022, pouco depois de a Rússia ter invadido a Ucrânia. A Rússia exigiu que os seus clientes europeus abrissem contas no Gazprombank e pagassem o gás em rublos, em vez dos euros ou dólares estipulados nos contratos. Esta medida visava utilizar estes pagamentos de gás para apoiar o rublo e manter a Rússia ligada ao sistema bancário mundial, depois de as sanções ocidentais terem cortado o acesso ao banco central da Rússia e provocado a queda do valor do rublo.
Os cortes começaram a sério em maio de 2022, depois de os compradores se recusarem a pagar em rublos. A Rússia cortou o fornecimento de gás através do gasoduto Yamal para a Polónia e do gasoduto Gryazovets-Vyborg para a Finlândia. E, a 2 de setembro de 2022, suspendeu indefinidamente o aprovisionamento de gás através do Nord Stream 1, depois de os países do G7 se terem comprometido a impor um limite de preços ao petróleo russo. Além disso, ocorreu um corte adicional no fornecimento quando o operador de gás da Ucrânia (Gas Transmission Systems Operator Ukraine, ou GTSOU) cortou o abastecimento através do ponto de passagem de Sokhranivka, localizado na região de Lugansk, ocupada pela Rússia. Esta rota transportava anteriormente cerca de um terço do gás russo fornecido através da Ucrânia.
No final de setembro, o fornecimento russo estava 20% abaixo dos níveis anteriormente registados. A quota da Rússia no abastecimento de gás à Europa diminuiu para cerca de 15% até ao final de 2023. Ainda continua a chegar algum gás à Europa através do principal gasoduto de trânsito ucraniano, o gasoduto de Druzhba (também conhecido como Gasoduto da Amizade), e através do gasoduto TurkStream, mas os gasodutos Nord Stream e Yamal, que transportavam gás para a Alemanha através da Polónia, cessaram totalmente o seu funcionamento.
Os apoiantes ocidentais da Ucrânia, por seu lado, começaram também eles a tentar usar as suas relações energéticas com a Rússia como arma de guerra, a fim de reduzir as receitas do país (as vendas de energia representavam 45% das receitas do governo russo em 2021) e fazer morrer à fome a máquina de guerra russa. Os resultados têm sido maioritariamente mistos.
A 5 de dezembro de 2022, os Estados Unidos, a União Europeia e vários outros países estabeleceram um limite de preços (price-cap) para as vendas de petróleo russo transportado por petroleiros ocidentais ou assegurados por agências ocidentais, que historicamente representavam mais de 90% das vendas russas. Dado que a Rússia era o segundo maior exportador de petróleo do mundo em 2021, a seguir à Arábia Saudita, retirar totalmente o petróleo russo do mercado implicava correr o risco de destabilizar a economia mundial com preços de petróleo demasiado elevados, pelo que era inviável. O preço máximo foi uma política inovadora que fixou o preço do crude russo a um nível superior aos custos de produção, mas inferior aos preços de referência nos mercados mundiais, o que proporcionava um mecanismo para a venda do petróleo russo ao mesmo tempo que reduzia as receitas de Moscovo. O pressuposto era que, para manter as suas receitas de exportação, a Rússia continuaria a exportar petróleo enquanto o preço máximo excedesse o custo de produção.
Nos primeiros dias do estabelecimento do teto máximo, o petróleo russo foi transacionado abaixo deste e com um desconto em relação ao Brent (um tipo de crude que serve de referência para os preços) de mais de 30 dólares por barril. As receitas fiscais do petróleo caíram mais de 40% e o volume das exportações marítimas manteve-se estável. (O tipo mais comum de crude russo, dos Urais, é um crude de qualidade inferior à do Brent; era geralmente vendido a um preço ligeiramente inferior ao do Brent, mesmo antes do estabelecimento do preço máximo.) No verão de 2023, o desconto sobre o petróleo russo diminuiu, à medida que a Rússia passou a utilizar uma «frota-sombra» de armadores e seguradoras não vinculados ao limite máximo. Mas, nos últimos meses, as receitas têm novamente vindo a diminuir, em parte devido a uma diminuição na exportação de produtos refinados por causa dos ataques de drones ucranianos às refinarias russas.
O petróleo é geralmente fungível e o petróleo russo está a chegar quase todo ao mercado, conforme as medidas políticas pretendiam. Vários países, em particular a Índia, aumentaram consideravelmente as suas compras de crude russo a preços reduzidos, embora a utilização crescente da frota-sombra de petroleiros tenha reduzido a eficácia do limite de preços ao longo do tempo. Após um pico inicial, os preços de referência do petróleo a nível mundial voltaram ao seu nível anterior à invasão. O impacto exato do preço máximo do petróleo é difícil de determinar, uma vez que os preços do crude dos Urais não são transparentes, mas os dados sugerem que a aplicação coerente do preço máximo está a colocar pressão para baixar os preços das ofertas que a Rússia recebe pelo seu petróleo.
No que diz respeito à União Europeia (UE), a política energética está no seu ADN, uma vez que nasceu da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, criada em 1951 para resolver os problemas de abastecimento energético decorrentes da Segunda Guerra Mundial. Mas a história subsequente da sua política energética é marcada por uma tensão constante entre o protecionismo nacional e as tentativas, por parte da UE, de aprofundar a integração e eliminar as barreiras ao comércio transfronteiriço de energia, de resolver as questões climáticas e de sustentabilidade e, finalmente, de alcançar a segurança do fornecimento, na sequência dos litígios russo-ucranianos sobre o gás em meados da década de 2000 e das tensões geopolíticas no Norte de África e no Médio Oriente. Foi apenas em 2015 que a matriz da «União Energética» tentou juntar sob o mesmo teto os objetivos da União Europeia em termos de clima e energias renováveis e a sua estratégia de segurança energética.
Algumas semanas após a invasão russa da Ucrânia, a Comissão Europeia anunciou o plano REPowerEU, destinado a superar a dependência em relação aos combustíveis fósseis russos até 2027. Seguiram-se embargos sobre o carvão (agosto de 2022), sobre as importações de crude (dezembro de 2022) e sobre os produtos petrolíferos (fevereiro de 2023), e seguiu-se a participação dos países do G7 no limite máximo do preço do petróleo.
Mas a União Europeia não sancionou o aprovisionamento de gás russo (nem os produtos de combustível nuclear), receando que isso pudesse destabilizar os mercados. Três dos seus 27 Estados-membros — Hungria, Áustria e Eslováquia — ainda não têm outras fontes de gás para além dos gasodutos russos. Em vez disso, em agosto de 2022, a UE chegou a um acordo quanto a uma meta voluntária de 15% de redução da procura de gás em todo o continente até março de 2023. O prazo para alcançar esta meta foi prorrogado até março de 2024 e, mais uma vez, até março de 2025, sem ter em conta as diferentes utilizações de gás pelos países e as diferentes dificuldades de substituição do gás nos vários setores.
No final de 2023, a UE alterou as suas regras do mercado do gás, de modo a permitir que cada país proíba individualmente a distribuição de gás russo por gasoduto ou sob a forma de GNL. Isto poderia constituir uma base para que as empresas de energia invocassem motivos de força maior (o princípio do direito contratual que permite às partes rescindir um contrato em caso de acontecimentos imprevistos excecionais ou catastróficos) para terminarem os contratos de longo prazo com os fornecedores russos. Contudo, as importações de GNL de Moscovo para a UEaumentaram. Embora uma parte seja enviada para países terceiros, o resto permanece na União. Estas vendas geraram um montante estimado de 8,2 mil milhões de euros para 20 bcm em 2023, financiando o esforço de guerra russo. É por isso que a UEestá agora a propor restrições limitadas ao GNL russo que transita pelos países da União Europeia para compradores externos — a sua primeira incursão em sanções relacionadas com o gás. Os países bálticos e a Polónia alegadamente até querem uma proibição total.
Num artigo da Brookings sobre a atividade económica a partir de setembro de 2023, os economistas alemães Benjamin Moll, Moritz Schularick e Georg Zachmann apoiam as sanções ao gás e salientam que, tendo em conta que terá de se utilizar gás natural durante pelo menos mais duas décadas, «a Europa deveria considerar a possibilidade de tirar partido dos fluxos historicamente baixos para estabelecer um controlo político conjunto sobre os fluxos de gás vindos da Rússia, em vez de comprar gás produzido a baixo custo e a preços elevados».
O caminho que a Europa tem de percorrer para renunciar totalmente ao gás russo foi demonstrado por uma reportagem recente que, em maio de 2024, concluiu que as importações de gás russo para a EU ultrapassaram as dos Estados Unidos, o maior fornecedor de GNL da UE. É muito provável que se trate de um pico temporário: desde que houve rutura de stock numa das principais unidades americanas de exportação, as exportações de GNL dos EUA têm sido inferiores ao normal; além disso, outro fator a ter em conta é que, devido a atividades de manutenção planeadas, as exportações russas por gasoduto através da Turquia têm sido superiores ao normal.
De qualquer modo, o dilema autoinfligido da Rússia é grave. Os campos de gás que abasteciam a Europa não estão ligados a outros clientes, nem a instalações que permitam que esse gás seja liquefeito e vendido como GNL. Por conseguinte, o gás que teria sido vendido à Europa permanece no solo. Embora a Rússia gostasse de vender mais gás à China, nenhum gasoduto liga estes campos de gás a esse país, e a China mostrou pouco interesse numa proposta de conexão por gasoduto. O que justifica a subida dos resultados financeiros de 2022 da Gazprom relativamente ao ano anterior, apesar da queda acentuada das exportações no segundo semestre, foram os preços elevados, que puderam compensar o volume inferior de vendas. De facto, as receitas de 2023 da empresa monopolista russa foram 40% inferiores às de 2022; as suas exportações de gás diminuíram para quase metade; e, pela primeira vez desde 1999, registou-se um prejuízo líquido de 6,8 mil milhões de dólares.
O gás natural é utilizado de forma bastante diferente de um país europeu para outro, por razões que incluem o clima, a utilização industrial e doméstica, a disponibilidade e as preferências por fontes alternativas de energia. Por exemplo, o gás é importante para o aquecimento das casas nos climas mais frios do Norte da Europa, ao passo que os vastos investimentos franceses em energia nuclear significam que é utilizado pouco gás natural na produção de eletricidade nesse país.
Algumas utilizações, como a passagem da produção de eletricidade a partir do gás natural para a eletricidade renovável ou para outras formas de produção a partir de combustíveis fósseis, podem ser mais facilmente substituídas. A construção de novas capacidades de produção de eletricidade leva tempo, mas os sistemas de eletricidade são muitas vezes bastante diversificados e têm capacidade suficiente para poderem ser substituídos por outras formas de produção. No entanto, a curto prazo, isto implica muitas vezes aumentar a produção de eletricidade a partir do carvão. O prolongamento do tempo de vida dos reatores nucleares existentes é outra opção, tal como está atualmente a acontecer na Bélgica.
Outras utilizações do gás natural são muito mais difíceis de substituir. As bombas de calor elétricas são um bom substituto para o gás natural no aquecimento doméstico, mas a sua instalação em milhões de casas e empresas individuais é morosa, dispendiosa e requer a vontade e a cooperação dos proprietários dos edifícios. Quando o ministro da economia alemão Robert Habeck tentou, em 2023, forçar a adoção de bombas de calor por lei no prazo de um ano, desencadeou uma tempestade política (a lei foi posteriormente aprovada com um prazo mais alargado e mais isenções). Além disso, muitas indústrias que utilizam gás natural requerem combustão para atingir um calor de processo muito elevado. O gás natural é o combustível mais limpo para estas aplicações. As indústrias que utilizam gás natural como matéria-prima, nomeadamente a indústria química, consideram ser especialmente difícil substituí-lo.
Uma combinação de poupança e mudança de combustível ajudou a Europa a ultrapassar o inverno de 2022-2023 (juntamente com a bênção de um tempo invulgarmente quente). O inverno de 2023-2024 teve um desempenho semelhante, tendo sido adicionado gás às reservas armazenadas mais tarde do que o habitual, uma vez que o tempo quente se prolongou até ao outono. O mesmo fator afetou de formas diferentes a procura nos vários países. Por exemplo, no inverno de 2022-2023, cerca de 20% da redução da procura de gás na Alemanha foi motivada pelo tempo mais quente, enquanto em França esse valor foi de 60%.
Um fator adicional impercetível se considerarmos a Europa como um todo é o facto de as fontes de gás natural diferirem muito de país para país. Embora globalmente 40% das importações europeias de gás fossem provenientes da Rússia antes do conflito, este dado estatístico omite uma dependência quase total nalgumas zonas e uma distribuição reduzida noutras. Assim, a questão passou a ser não só a substituição do gás em geral, mas também a procura de mecanismos de transporte de gás para zonas que eram anteriormente servidas por gasodutos russos.
O GNL tem sido um recurso fundamental para substituir o gás dos gasodutos russos, especialmente através da implantação de unidades flutuantes de regaseificação e armazenamento (FSRU na sigla inglesa). Estas unidades recebem o GNL dos navios de carga e transformam-no do estado líquido para o estado gasoso. As instalações de ligação destes navios podem ser construídas muito mais rapidamente do que uma instalação completa de regaseificação em terra, e a Europa obteve 12 novas FSRU em 2022. Desde o início da guerra na Ucrânia, a Europa acrescentou 53,5 bcm de capacidade de importação de GNL, incluindo a expansão de um terminal em França e várias FSRU na Finlândia, Países Baixos, Alemanha e Itália. Em 2022 e 2023, o GNL representou 34% e 37% do consumo de gás natural na Europa, respetivamente, contra 19% em 2021.
Após o início da guerra na Ucrânia, a UE permitiu abrir exceções relativamente às normas de imposição de limites aos auxílios estatais para construção de instalações de GNL. A Alemanha aprovou a Lei de Aceleração do GNL, simplificando e acelerando o licenciamento de terminais FSRU, e em novembro de 2022 nacionalizou totalmente a Gazprom Germania, uma subsidiária da Gazprom que é agora conhecida como Securing Energy for Europe (SEFE).
Além disso, embora as zonas servidas principalmente por GNL antes do conflito tenham sido menos diretamente afetadas pelo corte do gás, ainda assim registaram-se preços de GNL muito mais elevados devido ao aumento da concorrência. Consequentemente, estes países também pagaram um preço pelo corte e tiveram incentivos para reduzir a procura.
Eixo do trânsito continental: Alemanha
Antes da invasão em grande escala da Ucrânia pela Rússia, a Alemanha recebia cerca de 65% do seu abastecimento de gás da Rússia e, por sua vez, fornecia gás a outros países da Europa de Leste, incluindo a República Checa, a Áustria e a Polónia — a Alemanha era e continua a ser, sem dúvida, o principal eixo do trânsito de gás na Europa continental. Com o encerramento dos gasodutos Nord Stream e Yamal, a Alemanha perdeu todo o seu abastecimento de gasodutos russos em setembro de 2022. A extrema dependência do país e dos seus vizinhos em relação ao gás russo por gasoduto significava que a escassez física era uma possibilidade real após o corte, ao contrário de outras áreas onde a principal preocupação eram os preços elevados.
A Alemanha trocou, em grande medida, a dependência da Rússia pela dependência da Noruega no que respeita ao aprovisionamento de gás por gasoduto. Em dezembro de 2023, a SEFE assinou um novo contrato a longo prazo de 55 mil milhões de dólares com o produtor norueguês Equinor. O contrato prevê que a Equinor forneça 111 terawatts-hora (TWh) de gás (ou cerca de 10 bcm) por ano durante os próximos dez anos, cerca de 16% do abastecimento que a Alemanha recebia através do gasoduto Nord Stream antes da guerra. Com este novo contrato, aproximadamente 60% do aprovisionamento de gás da Alemanha virá da Noruega.
No entanto, alguns dos vizinhos da Alemanha continuam dependentes do gás russo. Por exemplo, a dependência da Áustria em relação à Rússia chegou aos 98% no final de 2023, o seu nível mais elevado desde o início da guerra. A empresa parcialmente estatal OMV declarou que pretende continuar a comprar gás à Gazprom ao abrigo de um contrato que vigora até 2040. O desafio é que a rescisão antecipada deste contrato confidencial de longo prazo iria provavelmente obrigar ao pagamento de uma taxa de rescisão no valor de mais de mil milhões de euros. Para rescindir sem pagar a taxa, seria provavelmente necessário um apoio político alargado, como uma lei que exigisse o fim do aprovisionamento russo e que permitisse à OMV invocar um caso de força maior.
As restantes necessidades de gás da Alemanha são atualmente supridas por GNL fornecido pelos Estados Unidos, pelo Qatar e pela Rússia. Antes da crise, a Alemanha não dispunha de terminais de importação de GNL, embora importasse gás de outros países, nomeadamente da Bélgica e dos Países Baixos, que chegava originalmente à Europa como GNL. Após o corte de fornecimento russo, a Alemanha implementou um programa de emergência para aumentar a capacidade de importação de GNL com FSRU, tendo a primeira destas instalações de receção sido construída num período recorde de nove meses. Atualmente, estão em funcionamento três FSRU e está prevista a entrada em funcionamento de mais duas no início de 2024. O Ministério da Economia alemão declarou que espera que a capacidade de importação de GNL alcance os 37 bcm/ano em 2024.
O aumento da oferta a partir de outras fontes tem sido fundamental para a resposta da Alemanha à crise. Mas a redução da procura também foi uma componente essencial para enfrentar a crise. De julho de 2022 a março de 2023, a procura de gás natural na Alemanha diminuiu cerca de 20%, sendo a indústria responsável por uma redução de 26%, e os agregados familiares por uma redução de 17% (também possível graças a um inverno ameno). As reduções na utilização pela indústria vieram sobretudo de setores com utilização intensiva de energia, como os produtos químicos, o papel ou os fertilizantes, com quedas significativas na produção e aumentos nas importações. Por exemplo, a BASF vai encerrar uma fábrica de amoníaco na Alemanha, tendo afirmado que «os elevados preços da energia estão agora a colocar um peso adicional sobre a rentabilidade e a competitividade na Europa».
Contudo, a substituição industrial alemã teve efeitos ecológicos negativos, uma vez que trocou frequentemente o gás pelo fuelóleo. E, apesar do seu forte lóbi antinuclear, a Alemanha prolongou brevemente a vida dos seus últimos três reatores nucleares e voltou a pôr em funcionamento várias centrais a carvão desativadas. Por último, o facto de o governo alemão ter açambarcado o GNL dos mercados mundiais e de ter enormes pacotes de subsídios para a indústria e os consumidores, limitou o abastecimento de outros países e fez subir os preços, irritando os vizinhos mais pobres da UE e os responsáveis políticos europeus em Bruxelas.
Conectores do Nordeste: Polónia, Finlândia, Países Bálticos
Em abril de 2022, a Gazprom cortou unilateralmente o fornecimento de gás à Polónia e, em agosto desse ano, à Finlândia e à Letónia. A Estónia e a Lituânia tinham deixado de importar gás russo em abril.
O Plano de Interconexão do Mercado Báltico da Energia da Comissão Europeia tem como objetivo a abertura e a integração dos mercados da energia na região. Os Estados-membros participantes são a Dinamarca, a Alemanha, a Estónia, a Letónia, a Lituânia, a Polónia, a Finlândia e a Suécia, com a Noruega a participar como observadora. Além do trabalho já realizado para integrar os mercados de gás natural, a Estónia, a Letónia e a Lituânia estão a trabalhar para separar a sua rede elétrica da Rússia e da Bielorrússia e sincronizá-la com a rede europeia. O prazo previsto para este projeto foi recentemente antecipado do final de 2025 para fevereiro do mesmo ano.
Os investimentos em infraestruturas, iniciados muito antes de a Rússia invadir a Ucrânia, foram recompensadores, ajudando a região a resistir ao corte do fornecimento de gás russo através do gasoduto Yamal. O gasoduto do Báltico, que liga a Noruega à Polónia através da Dinamarca, iniciou atividade em outubro de 2022. Uma ligação por gasoduto entre a Lituânia e a Polónia entrou em funcionamento em maio de 2022. O conector do Báltico ligou a Finlândia à rede de gás da UE pela primeira vez em janeiro de 2020, através da Estónia.
No seu conjunto, estes projetos permitem que o gás proveniente da Noruega e o GNL que entra na UE pela Polónia, Finlândia e Lituânia circulem em toda a região. Além disso, a Letónia tem uma grande instalação subterrânea de armazenamento de gás, o que contribui para a segurança energética da região.
Conectores do Noroeste: Países Baixos, França, Bélgica
Os Países Baixos são um caso invulgar na União Europeia, na medida em que dispõem de uma produção interna de gás natural significativa. O campo de gás de Groningen é o maior da Europa continental e um dos maiores do mundo. A produção começou em 1963, mas nos últimos anos começou a causar rebaixamentos do solo e terramotos. Um terramoto particularmente forte de magnitude 3,6 em 2012 mudou a opinião pública sobre a produção de gás e o governo holandês começou a limitar a produção do campo. Devido à crise, a produção de gás no campo de Groningen terminou a 1 de outubro de 2023, um ano mais tarde do que o previsto.
Devido ao seu historial de produção de gás, os Países Baixos possuem também infraestruturas de gás natural significativas. O Title Transfer Facility (TTF), nos Países Baixos, é um autêntico eixo de comércio de gás natural e é o maior entreposto comercial de gás na Europa. O TTF é um mercado líquido que fornece preços para contratos físicos e uma curva de preços até 13 anos no futuro.
A França, os Países Baixos e a Bélgica são o primeiro, o terceiro e o quarto maiores importadores de GNL na União Europeia, respetivamente, e estão ligados aos países vizinhos através de redes de gasodutos. Estas redes são uma componente importante do novo sistema de fluxos oeste-leste, destinado a substituir o gás russo transportado por gasoduto. No entanto, importam volumes significativos de GNL russo, na sua maioria ao abrigo de contratos de longo prazo assinados antes de 2022. A França é o maior comprador de GNL russo na União Europeia, em parte devido à participação parcial da empresa francesa TotalEnergies no projeto russo Yamal LNG. A Yamal LNG também tem relações com instalações de GNL em França e na Bélgica para viabilizar exportações logisticamente complicadas durante o inverno ártico.
Conectores do Sudoeste: Península Ibérica
A Península Ibérica não recebia gás russo por gasoduto, dependendo em vez disso das importações de GNL e do fornecimento por gasoduto da Argélia. A Espanha tem a maior estrutura de terminais de GNL na Europa, com seis instalações em funcionamento e uma sétima que voltou recentemente ao serviço para efeitos de armazenamento e logística. Portugal dispõe de um terminal adicional. A utilização destas instalações tem sido por norma bastante baixa, com uma média de 21% de utilização entre 2012 e 2019 e 36% em 2019. A utilização dos terminais espanhóis aumentou para 40% em 2022.
Os Pirenéus dificultam a ligação da Península Ibérica a França e, posteriormente, ao resto da Europa. Dois gasodutos transportam gás entre Espanha e França. Um terceiro está em fase de construção, mas as objeções da França impediram a conclusão do projeto. A França afirma que o gasoduto é contrário aos objetivos climáticos. Mas, como observou o The Economist , «os cínicos sugerem que o verdadeiro objetivo é proteger a sua indústria de energia nuclear». O gás tem circulado em ambos os sentidos nos gasodutos existentes, com a Espanha a fornecer gás a França em 2022, enquanto o parque nuclear francês, envelhecido e propenso a encerrar, estava a funcionar 50% abaixo da sua capacidade.
Um desafio adicional para o aprovisionamento de gás ibérico foi o encerramento do gasoduto Magrebe-Europa, proveniente da Argélia através de Marrocos, em novembro de 2021. O fornecimento de gás foi afetado por um litígio entre Marrocos e a Argélia sobre a administração do Sara Ocidental. O gasoduto de Medgaz, mais recente, continuou a transportar gás argelino, mas, em junho de 2022, o gasoduto Magrebe-Europa foi invertido para transportar de volta para Marrocos o gás importado para Espanha como GNL. Este litígio recebeu pouca atenção no contexto da crise mais vasta sobre o gás russo, mas também teve poucas implicações para o abastecimento da maior parte da Europa.
Conectores do Sudeste: Itália, Grécia, Turquia
Antes da guerra, a Rússia fornecia cerca de 40% do gás da Itália, principalmente através de um gasoduto que atravessava a Ucrânia. A Itália também recebe uma quantidade substancial de gás da Argélia e da Líbia por gasoduto. E acrescentou uma FSRU às suas instalações de importação de GNL em maio de 2023, estando prevista a entrada em funcionamento de uma segunda FSRU no início de 2025. Em outubro de 2023, a ENI assinou um acordo para comprar até 1 milhão de toneladas de GNL por ano (ou 1,5 bcm) à QatarEnergy durante os próximos 27 anos. A Itália planeia deixar de importar gás natural russo até ao segundo semestre de 2024.
O gás natural é particularmente importante para a produção de eletricidade em Itália, representando um pouco mais de 50% da produção em 2022, a quota mais elevada de todas as grandes economias europeias. A elevada percentagem de produção de gás natural significa que, nos últimos três anos, a Itália tem tido os preços mais altos de eletricidade nos principais mercados europeus, um terço acima da Alemanha e da França e 50% acima da Espanha. Em 2022, a capacidade de produção solar e eólica aumentou 11% e 5%, respetivamente, mas ainda há um longo caminho a percorrer para substituir a quota dominante do gás.
A Grécia estava igualmente dependente do gás russo antes da guerra, recebendo cerca de 40% do seu abastecimento através do gasoduto TurkStream. O país importou também cerca de um terço do seu abastecimento de gás em 2021 sob a forma de GNL. Em reação ao conflito na Ucrânia, a Grécia aumentou a utilização do seu terminal de GNL e acrescentou uma FSRU, que iniciou atividade em fevereiro de 2024.
A Grécia e a Itália estão também no centro do desenvolvimento do fornecimento de gás natural no Mediterrâneo Oriental, com grandes descobertas nas águas em torno de Israel, Egito e Chipre. Atualmente, grande parte deste gás é utilizada localmente em Israel, no Egito e nos países vizinhos, e transformado em GNL numa instalação no Egito. Um gasoduto proposto para ligar o gás do Mediterrâneo Oriental à Grécia, Itália e Europa Central está na lista de projetos de interesse comum da Comissão Europeia, o que significa que tem acesso a processos de licenciamento acelerados e financiamento especial. No entanto, este gasoduto enfrenta sérios desafios, devido à disputa de território e de fronteiras marítimas em Chipre. Há 15 anos que têm estado a decorrer discussões sobre o gasoduto, o qual faz parte da lista dos projetos preferidos da Comissão Europeia desde 2013.
A Turquia é um importante interveniente no setor do gás na Europa do Sul. Recebe gás da Rússia e do Azerbaijão e envia-o para países europeus como a Bulgária, a Sérvia e a Hungria. Gás russo do gasoduto TurkStream pode igualmente chegar à Roménia, Grécia, Macedónia do Norte e Bósnia e Herzegovina. Em abril de 2024, a Hungria assinou um acordo com a Turquia para receber aprovisionamentos de gás, provavelmente da Rússia, de modo a substituir o gás que poderá ser perdido se o trânsito de gás da Ucrânia terminar.
Apesar da guerra, a Rússia continua a fornecer gás à Europa através de gasodutos que atravessam a Ucrânia, embora o volume de gás fornecido por esta via em 2023 (12 bcm) tenha representado apenas um terço do volume fornecido em 2021. Antes da conclusão do gasoduto Nord Stream 1, a Rússia enviou mais de 110 bcm de gás através da Ucrânia durante alguns anos. O acordo quinquenal que rege este trânsito expira no final de 2024 e Kyiv já anunciou que não irá prorrogá-lo.
O gás natural fornecido por esta via entra na União Europeia pela Eslováquia e é utilizado na Eslováquia, na Hungria, na Áustria e em Itália. A Itália tem muitas opções de fornecimento e a Áustria está ligada ao GNL e ao gás por gasoduto através da Alemanha. Mas a Eslováquia deixará de ser a primeira da fila, em termos geográficos, para o gás da Ucrânia e passará a ser a última da fila para o gás fornecido por outros países. Enquanto a comissária europeia para a energia, Kadri Simson, afirmou que os beneficiários do gás de trânsito poderão substituí-lo, o primeiro-ministro pró-russo da Eslováquia, Robert Fico, apelou à Ucrânia para que prorrogue o acordo de trânsito.
Há também dúvidas sobre se é do interesse da Ucrânia interromper o transporte de gás da Rússia. Quando a economia ucraniana começar a crescer de novo e a sua produção interna de gás for insuficiente para satisfazer a procura, a Ucrânia incorrerá em custos significativos para obter abastecimento de gás a partir de outro ponto da Europa. Além disso, os países da União Europeia usam instalações de armazenamento de gás (a segunda maior do continente, a seguir à Rússia, com cerca de 33 mil milhões de metros cúbicos) no oeste da Ucrânia, mas não chegam a transportar efetivamente gás para essas instalações. Em vez disso, «trocam» gás nas instalações da União Europeia por gás russo detido na Ucrânia para ser utilizado mais tarde. Estas transações não seriam possíveis sem o fornecimento de gás russo. A Rússia também poderá ter boas razões para mudar de ideias quanto à prorrogação do acordo de transporte de gás, uma vez que o gás que fornece por esta via não tem outro caminho para o mercado.
Imediatamente após a invasão russa, a Administração Biden e a União Europeia criaram um Grupo de Trabalho UE-EUA sobre Segurança Energética, com os Estados Unidos a prometerem fornecer pelo menos 15 bcm de GNL adicional em 2022 e prováveis aumentos maiores depois disso, e com a União Europeia a comprometer-se a assegurar uma procura estável de pelo menos 50 bcm por ano até 2030. De facto, as importações europeias de GNL dos Estados Unidos mais do que duplicaram, de 2,6 bcm em dezembro de 2021 para 5,9 bcm em abril de 2024, correspondendo a mais de metade de todas as importações de GNL da União Europeia. Por outras palavras, o resultado das eleições norte-americanas de 2024 é significativo para a segurança energética da Europa.
A Administração Biden celebrou o fornecimento de GNL como um contributo crucial para a segurança dos seus aliados. Depois, em janeiro de 2024, o presidente dos EUA, Joe Biden, anunciou uma pausa na aprovação de novas exportações de GNL para países sem acordos de comércio livre com os Estados Unidos (incluindo a União Europeia). A pausa destina-se a dar tempo para reconsiderar os impactos climáticos, ambientais e económicos de novas exportações de GNL. Contudo, não afeta os projetos que já estão em construção ou que já passaram da decisão final de investimento, os quais permitirão duplicar a capacidade de exportação de GNL dos EUA até 2030. Entretanto, dada a rapidez com que os utilizadores europeus de gás estão a trabalhar no sentido de avançarem para fontes de energia com zero emissões de carbono, os importadores europeus de GNL têm-se mostrado relutantes em assinar contratos de longo prazo. Mas os novos projetos de GNL dos EUA exigirão compromissos contratuais, o que, provavelmente, constituirá um maior impedimento ao crescimento da oferta futura do que a pausa no GNL.
Nem o candidato republicano à presidência dos EUA, Donald Trump, nem o Partido Republicano divulgaram uma plataforma política antes das eleições norte-americanas de novembro de 2024. No entanto, o think tank conservador norte-americano Heritage Foundation liderou uma iniciativa chamada Projeto 2025, concebida para definir uma agenda política «pronta a servir» para a próxima administração republicana.
A secção sobre energia, no capítulo 12 desse documento, destaca a produção de combustíveis fósseis nos EUA e afirma especificamente que a próxima administração conservadora deve concentrar-se na «promoção dos recursos energéticos dos EUA como forma de ajudar os nossos aliados, diminuir os nossos adversários estratégicos e assegurar a existência de mercados que apoiem a produção interna de energia». Além disso, o documento apela a que o Congresso norte-americano reforme a Lei do Gás Natural de modo a alargar as aprovações de projetos de GNL a todos os aliados da América, referindo-se especificamente à NATO, em vez de apenas aos países com acordos de comércio livre, como na atual legislação aplicável. Estas palavras soam a boas notícias para os importadores europeus de GNL. Mas as repetidas expressões de desdém do candidato republicano para com a NATO, a Europa e a Ucrânia sugerem que os aliados europeus devem ser cautelosos em relação à segurança do fornecimento energético proveniente dos EUA, caso o próximo presidente dos EUA seja republicano.
Em retrospetiva, é claro que os esforços do Kremlin para usar como arma a dependência da Europa em relação ao petróleo e ao gás russos começaram muito antes da invasão em grande escala da Ucrânia, sob a forma de abastecimentos mais lentos e instalações de armazenamento quase vazias. Depois de 24 de fevereiro de 2022, o encerramento, por parte da Rússia, dos dois principais gasodutos para a Alemanha e a Europa central gerou um enorme choque de abastecimento e de preços, que se repercutiu por todo o continente e poderia ter levado a convulsões socioeconómicas generalizadas e à paralisia política.
No entanto, a reação global da Europa tem sido (com a ajuda de uma boa dose de sorte) surpreendentemente resiliente. Embora o limite de preços do G7 para o petróleo russo tenha tido resultados mistos, os europeus conseguiram libertar-se quase completamente do gás russo através da redução da procura e da substituição por GNL, o que levou Alexandra Gritz e Guntram Wolff, do Conselho Alemão de Relações Externas, a apelar a uma «adaptação maciça do sistema energético». Como refere secamente a economista de Cambridge Helen Thompson: «A dependência do gás não se revelou a arma eficaz que Putin previra em meados da década de 2010 […] [P]ara a Rússia, a resiliência da Europa foi um desastre geopolítico, uma vez que, ao contrário do que acontece com o petróleo, a Gazprom não pode substituir os clientes europeus por clientes asiáticos.» Os preços do gás natural voltaram aos níveis anteriores à crise.
No entanto, como demonstrámos neste policy paper, a trajetória de afastamento e adaptação tem sido bastante diferente de país para país, e tem tido um custo elevado: graves prejuízos para as indústrias de uso intensivo de energia, subsídios controversos e políticas protecionistas, além de tensões políticas acrescidas dentro e entre países europeus. Acima de tudo, é uma trajetória incompleta e vulnerável a choques futuros, como a contínua chantagem contra os países europeus que continuam a importar gás russo, o fim do acordo de trânsito de gás ucraniano, um resultado eleitoral desfavorável nos Estados Unidos ou a elevada volatilidade política e de preços que é típica do mercado de GNL. Em suma, a Europa continua, por enquanto, largamente dependente do gás importado, tendo-se limitado a diversificar os seus fornecedores e a aumentar a sua dependência relativa do GNL, que é mais caro. Manter a competitividade industrial europeia face aos elevados preços do GNL e aos imensos regimes de subsídios estatais para as energias limpas nos Estados Unidos e na China vai ser um desafio. A autonomia energética é, obviamente, inalcançável para a Europa. Mas a experiência de 2022-2024 deverá servir como incentivo para fortalecer a segurança energética, assegurando os fluxos transfronteiriços e investindo nas energias renováveis e na transição para a energia verde.
Por último, há ainda que abordar questões políticas fundamentais: quais devem ser os papéis dos mercados e dos governos na gestão da economia do gás e na afetação de recursos escassos? Se a segurança do fornecimento de gás faz agora parte da postura da Europa face à segurança geral de um continente interdependente, aberto e globalizado, o que é que isso significa para o estatuto das infraestruturas essenciais e das empresas energéticas? Que papel deverá a União Europeia desempenhar na integração do mercado europeu do gás e na resolução das desigualdades de distribuição e das respostas de políticas fiscais protecionistas? E, finalmente, como é que tudo isto se insere na aliança transatlântica? A segurança energética deve fazer parte das competências da NATO e, em caso afirmativo, de que forma? Os futuros policy papers desta série abordarão estas e outras questões.
Os autores gostariam de agradecer a Louison Sall e Sophie Roehse pelo seu apoio à investigação, a Rachel Slattery pela paginação e pelos gráficos, bem como a Adam Lammon, Alexandra Dimsdale e Ted Reinert pela edição.