«A sociedade portuguesa está organizada para que se durma pouco»
Porque é que o sono é tão importante?
Enquanto dormimos, o cérebro faz a seleção das memórias que são para preservar, renova células e limpa outras tantas (como os restos dos neurónios que morrem). Mas esta renovação e limpeza celular não acontece só a nível cerebral, estende-se a todo o organismo.
Habitualmente diz-se que existem três pilares fundamentais para uma vida saudável: o exercício físico, alimentação e saúde mental. Mas falta incluir o sono. De todos, é o pilar que tem consequências mais imediatas na nossa sobrevivência. Os sintomas de três ou quatro dias de privação de sono são insuportáveis.
Como dormem os portugueses?
Os portugueses dormem pouco e mal. E os dados comprovam-no: metade da população dorme menos de seis horas e meia por dia. A nossa sociedade – quer no mundo escolar que no laboral – está organizada para que se durma pouco.
Além da organização, que promove poucas horas de sono, também há uma questão cultural adjacente. Apesar de ser uma tendência que está a mudar, a ideia de que o sono é uma perda de tempo ainda está enraizada entre os portugueses.
A população portuguesa deita-se tarde e acorda muito cedo. E à noite, já em casa, as pessoas estão à frente de ecrãs (computadores, telemóveis e tablets) que emitem luz azul. Esta radiação tem dois problemas: inibe completamente a produção de melatonina - uma hormona fundamental para dormir - e tem no cérebro o mesmo efeito que a luz solar, que é essencial para o despertar.
É possível recuperar uma noite de sono mal dormida?
A ideia de que é possível recuperar de uma noite mal dormida é falsa. Quando se perde uma noite, perde-se para sempre.
Não dormir o suficiente impede que o cérebro selecione e trate das memórias, existindo assim uma grande probabilidade de se perderem. Por outro lado, a insuficiência de sono não permite por exemplo, a recuperação de danos a nível cardíaco ou do sistema imunitário. E esses danos tornam-se irreparáveis.
Que riscos têm as noites mal dormidas para a saúde?
Recomenda-se que um adulto entre os 18 e os 65 anos durma entre sete e nove horas por dia. Quem não cumpre este mínimo compromete seriamente a sua saúde física e mental. A curto prazo, as pessoas sentem-se cansadas, sonolentas, ansiosas, com problemas de memória, com dificuldades de concentração e de tomada de decisões. A longo prazo, as consequências são ainda piores.
Sabe-se que dormir pouco está associado à diminuição da imunidade, a um risco muito aumentado de doenças cardiovasculares – como hipertensão, enfarte, acidentes vasculares cerebrais e arritmias - e de diabetes.
Também há muita evidência de que os homens mais jovens produzem menos testosterona e as mulheres experienciam alterações no ciclo menstrual e na fertilidade.
Há décadas que decorre um estudo que tem vindo a revelar que o trabalho por turnos e as poucas horas de sono destes trabalhadores, estão associadas a um aumento significativo do risco de cancro da mama e da próstata. Aliás, a Organização Mundial da Saúde considera o trabalho por turnos um fator cancerígeno.
A insuficiência de sono pode ainda, a nível mental, desencadear demências e depressão.
Quais são os impactos da falta de sono nas crianças?
A pouca e fraca qualidade de sono é igualmente preocupante nas camadas mais jovens da sociedade. As crianças e jovens dormem, em geral, menos tempo do que o recomendado.
Como as aulas começam demasiado cedo, os alunos não são expostos à luz do sol, que estimula a produção de neurotransmissores fundamentais para o acordar.
Nos EUA fez-se a experiência de atrasar uma hora o início as aulas e, ao fim de alguns meses, o rendimento escolar aumentou, porque as crianças e os jovens começaram a dormir mais e a ser expostos à luz solar.
Sem dúvida que ia ser benéfico se as crianças portuguesas chegassem uma hora mais tarde à escola, mas nem a sociedade, nem a vida dos pais está organizada para que isto aconteça.
Também não tenho dúvidas: a irritabilidade e as dificuldades de concentração de algumas crianças estão a ser confundidas com défice de atenção e hiperatividade quando, na verdade, o problema está na falta de sono.
Que tratamentos para dormir são mais procurados?
A medicação é, sem dúvida, a forma mais procurada para resolver os problemas do sono. Portugal é o país da OCDE que mais consome fármacos para dormir. Isto é uma praga.
Muito frequentemente recorrem a benzodiazepinas (remédios para a ansiedade e stress) que não são a solução. Além de deixarem de ser eficazes ao fim de algumas semanas, estes medicamentos são muito aditivos e não melhoram a qualidade do sono, porque o tornam mais ligeiro. A sua toma prolongada também traz problemas de memória.
Que alternativas existem?
Os antidepressivos podem ser alternativas viáveis às benzodiazepinas, mas têm de ser tomados sob controlo médico.
A abordagem mais eficaz aos problemas de sono é terapia cognitivo-comportamental. O objetivo é educar as pessoas a dormir bem e durante o tempo necessário através de múltiplas estratégias. Um dos passos mais simples e importantes passa por aplicar corretamente as chamadas 'regras do sono': deitar e acordar sempre à mesma hora (incluindo ao fim de semana), ter uma alimentação saudável, fazer exercício físico, evitar a cafeína depois do almoço e o álcool à noite, controlar o uso de dispositivos eletrónicos e apostar em técnicas de relaxamento ao deitar.
Quantos distúrbios de sono existem? E quais afetam mais os portugueses?
Existem 150 doenças próprias do sono, segundo a Classificação Internacional de Perturbações do Sono. Há duas que afetam particularmente os portugueses: a Síndrome da Apneia Obstrutiva do Sono - que se caracteriza pela obstrução das vias respiratórias enquanto se dorme - e a insónia crónica.
Não há dados concretos sobre a realidade portuguesa, mas sabemos que 80% das pessoas que vivem com apneia do sono têm hipertensão e arritmia. Metade dos casos de AVC em idades jovens têm esta doença do sono e 60% dos diabéticos também. A relação entre esta síndrome e doenças cardiovasculares, apontadas como a principal causa de morte em Portugal, é mesmo muito forte.
A insónia crónica é o segundo distúrbio do sono mais frequente entre os portugueses. Na Europa, 10% das pessoas (mais mulheres e idosos) tem dificuldade em adormecer.
O sono é um problema de saúde pública?
A Síndrome da Apneia do Sono afeta 30% da população na Europa e nos EUA e 10% sofre de insónia crónica. Valores desta dimensão são preocupantes e mostram que há um problema de saúde pública, para o qual o sistema não está preparado para dar resposta. Portugal ainda não enfrentou este problema como devia.