Os segredos do sono
Quando uma pessoa chega aos 90 anos, 30 deles foram passados a dormir. Só essa constatação mostra que algo de importante, essencial e decisivo acontece durante as horas de sono, garantem os especialistas. Mas a verdade é que a ciência ainda não tem uma resposta exata para uma questão: porque é que precisamos de estar tanto tempo sem actividade consciente?
“Ainda não se sabe porque é que precisamos de dormir. Mas acredita-se que o cérebro tem de descansar”, diz Anselmo Pinto, otorrinolaringologista e especialista em sono, notando que está em causa o repouso de “um super computador”, com 133 triliões de ligações a assegurar a manutenção das funções orgânicas e que realiza 4 milhões de ações por segundo.
Quando fechamos os olhos e vamos perdendo a ligação ao mundo, não há, porém, um apagão, garante Joaquim Moita, presidente da Associação Portuguesa do sono: “O cérebro não para”. Durante a noite, quando dormimos, é, aliás, feita uma limpeza. “Toda a célula, órgão ou máquina que transforma energia produz desperdício. E, se fora do cérebro temos um sistema de limpeza, que é o sistema linfático, no cérebro temos o sistema glinfático que, não tendo vasos próprios, utiliza a veias e as artérias”. Ou seja, é um mecanismo do cérebro para retirar o lixo e assim eliminar os resíduos tóxicos que se acumulam no sistema nervoso central. Faz no cérebro o que o sistema linfático executa no corpo.
“Durante o sono ocorre, no sistema nervoso central, uma limpeza de substâncias nocivas como as beta-amiloide”, umas proteínas que quando se acumulam podem ser perigosas, esclarece, por seu lado, a neurologista Dulce Neutel, garantindo que esta não é a única função do sono. “Há várias”, defende, notando que quantos “mais estudos se fazem mais funções se descobrem”. É à noite, por exemplo, que se guardam e selecionam as memórias. “Através de imagens de ressonância magnética, por exemplo, percebe-se como a actividade cerebral funciona à noite, quer ao nível da preservação de memória e de criatividade quer ao nível da estabilidade emocional. Nota-se por onde as ondas vão”, relata Joaquim Moita, continuando: “No cérebro, há uma parte muito pequena que é uma espécie de inbox da informação — o hipocampo — onde as memórias são recolhidas provisoriamente durante a noite. Depois, vão pelo lobo frontal, onde se dá uma escolha entre as que nos interessa guardar e as que não nos interessa. E aquelas que nos interessa guardar vão, então, através de ondas do sono profundo, para o cortex cerebral onde são armazenadas”.
Por isso, dizem os especialistas, é essencial ter uma boa noite de sono depois de se aprender. “Costuma dizer-se que, quando os miúdos vão ter uma aula ou um teste, devem dormir bem na noite anterior. Mas também é muito importante que se durma depois de aprender”, nota o presidente da Associação Portuguesa do Sono. “Sabe-se que, se se dormir, consolida-se melhor o conhecimento”, concorda Dulce Neutel, explicando que “o sono lento profundo ajuda a consolidar o que se aprendeu”.
A criatividade parece estar também ligada com a actividade cerebral durante o sono. “Mas para ela contribui outro tipo de ondas, ou seja, as ondas da fase REM [Rapid Eye Movement] do sono, em que se dão os sonhos”, esclarece Joaquim Moita.
Fases dos sono
Uma das certezas da ciência é que o sono não é todo igual. Ao longo das horas em que estamos com os olhos fechados, vão sendo feitos ciclos de 90 minutos, e cada um deles tem quatro fases. A primeira, de acordo com a National Sleep Foundation (Fundação Nacional do Sono), é o adormecimento (fase 1), que demora em média 10 minutos, ou seja, 5 a 10% do total do ciclo de hora e meia. Passa-se depois para o sono intermédio (fase 2), que pode durar 40 minutos, seguindo-se o sono profundo (fase 3) que se prolonga por cerca de 20 minutos. E chega-se finalmente à fase conhecida como REM – movimento rápido dos olhos) em que se sonha e que decorre durante, em média, 20 minutos. Entre estas quatro fases, as primeiras três são designadas por NREM [Non Rapid Eye Movement], por não existirem aqueles movimentos oculares rápidos.
As fases vão-se repetindo de hora e meia em hora e meia. Uma noite de sono de 7h30, por exemplo, tem cinco ciclos. Tudo começa com sonolência, redução da atenção e o fecho das pálpebras. Depois, no estádio 2, o cérebro deixa de processar estímulos e dá-se uma redução da respiração, da função cardíaca e da temperatura corporal. A seguir entram em acção, na fase 3, as ondas cerebrais (delta) mais lentas e que estimulam a secreção da hormona do crescimento. Já na fase REM, a dos sonhos, o ritmo respiratório começa a acelerar e os olhos a fazer movimentos rápidos, enquanto muitos músculos ficam paralisados e a actividade cerebral passa a ser intensa.
“Esta fase REM é muito importante para a criatividade. Aqui vai-se buscar as emoções e aprender com experiências anteriores”, explica Joaquim Moita. “O cérebro armazena todas as vivências, por mais simples que sejam, e estudos demonstram que esse armazenamento é consolidado durante o sono”, acrescenta Anselmo Pinto, admitindo que possam existir sonhos nas fases NREM. “Mas há autores que negam a existência de sonhos nessas fases”, frisa.
Apesar de haver ainda muito por desvendar, há situações que não levantam dúvidas. Uma delas é o papel reparador do sono, garante Teresa Paiva, neurologista, especialista em medicina do sono e responsável pelo Centro de Eletroencefalografia e Neurofisiologia Clínica (CENC), que é uma das oradoras do programa Fronteiras XXI. Aliás, nota, “mesmo as árvores que não dormem, repousam”.
Fechar os olhos e descansar à noite, avisam os vários especialistas, é vital para o desenvolvimento físico, emocional e cognitivo e tem impacto a diversos níveis, como o imunológico e o metabólico.
Por isso, dormir pouco tem tantas e tão variadas consequências. Logo a começar pela diminuição das defesas. “Fica-se mais susceptível a bactérias e vírus”, nota Dulce Neutel. Mas também tem influência directa no peso, diz a mesma especialista: “Não dormir altera o sistema metabólico, pois durante a noite de sono liberta-se a hormona da saciedade”.
Uma investigação da Universidade de Uppsala, na Suécia, veio confirmar que a falta de descanso noturno pode favorecer o engordar, verificando que a privação do sono reduz o gasto de energia no dia seguinte entre 5% e 20%. Quem não cumpre o repouso do cérebro fica também com “menos bom senso social”, alerta Neutel, esclarecendo a razão pela qual a falta de sono pode tornar as pessoas mais desinibidas: “Uma das funções do lobo central é a inibição social. Quando fica sensível perde essa função inibitória”.
A sensibilidade desse mesmo lobo frontal afecta também outra área importante para o ser humano: a da atenção. É por isso, dizem os especialistas, que é comum ocorrerem pequenos acidentes caseiros e outros mais graves, nomeadamente de viação. “Todas as nossas funções cerebrais se tornam menos eficientes quando existe uma perturbação do sono. A maioria das funções cerebrais, como a memória, a atenção, a concentração, as nossas capacidades visou-perspectivas, visou-construtivas, executivas, o pensamento abstracto a linguagem, as emoções e mesmo a destreza motora dependem do sono”, enumera Carla Bentes, neurologista do Hospital da Luz e da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa.
Risco de doenças
São vários os estudos que nos últimos tempos têm chamado a atenção para a relação que existe entre o sono e várias doenças. “Sabe-se, por exemplo, que dormir pouco ou até dormir muito está relacionado com o cancro, enfartes do miocárdio, diabetes, hipertensão e doenças neuro degenerativas”, descreve Anselmo Pinto.
Um estudo divulgado em janeiro deste ano demonstrou que os jovens que dormem mal são mais propensos a desenvolver Alzheimer, isto por a falta de sono elevar o nível de uma proteína (tau) no sangue, que está relacionada com a doença. E diversas outras investigações têm revelado existir uma relação entre os problemas de sono e o Alzheimer. É o caso de um recente trabalho desenvolvido pela Fundação Pasqual Maragall, de Barcelona, segundo a qual as pessoas que dormem mal, nomeadamente com insónias, manifestam alterações em zonas do cérebro que também são afectadas no estágio inicial daquela doença.
Aliás, Dulce Neutel garante que as substâncias nocivas (beta-amilóides) que durante o sono são alvo de uma limpeza são precisamente aquelas que também estão em excesso nos doentes com Alzheimer. “Não há dúvida que dormir pouco é um risco para desenvolver demência”, garante Teresa Paiva.
“Praticamente todas, se não todas, as doenças neurológicas podem associar-se a alterações do sono”, garante a neurologista Carla Bentes, explicando: “As alterações do sono são transversais a diferentes doenças neurológicas”, desde AVC, dores de cabeça, epilepsia, esclerose múltipla, demência, Parkinson, entre outras.
Investigações recentes têm sugerido que algumas perturbações do sono podem mesmo ser indicadoras deste tipo de doenças, ainda antes de se manifestaram os sintomas. “Durante a fase dos sonhos (fase REM) há uma atonia muscular que impede que as pessoas reproduzam o conteúdo do que estão a sonhar, como dar pontapés, atirar objetos, gritarem etc. Mas há pessoas que perdem essa atonia e que enquanto dormem e sonham reproduzem os movimentos. E 95% delas, acabam por desenvolver Parkinson”, conta Dulce Neutel. A relação deste transtorno de comportamento do sono com aquela doença neurológica está desde 2018 a ser alvo de um estudo da Universidade de Oxford, no Reino Unido.
Quantas horas se deve dormir?
Os problemas do sono são, no entanto, transversais a todas as idades. Essa é uma das características desta área da medicina, nota Carla Bentes, explicando que afecta desde bebés a idosos, passando por crianças, jovens, mulheres em idades fértil e na menopausa e homens de todas as idades. “Diferentes fases da vida caracterizam-se por diferentes distúrbios do sono”, explica. Às vezes, pequenos acontecimentos na infância podem ser determinantes para a qualidade do descanso noturno na fase adulta. Segundo Teresa Paiva, um episódio marcante nos primeiros anos de vida, como abusos, casos de bullying ou outros podem mais tarde ser responsáveis por distúrbios de sono.
E quanto se deve dormir? Uma investigação do neurocientista Adrian Owen, da Universidade de Ohio, nos Estados Unidos, feita com mais de 40 mil inquiridos em todo o mundo, concluiu que o ideal era dormir entre sete e oito horas. Menos tempo prejudicava o raciocínio; mas dormir de mais também.
A mesma recomendação de horas já tinha sido dada pela Academia Americana de Medicina do Sono e a Sociedade de Investigação do Sono que, depois de avaliarem mais de 5.300 artigos científicos, concluíram que o ideal é dormir mais de 7 horas. Menos, garantem os especialistas, não faz bem.
“Pode haver pessoas que têm melhor tolerância há privação do sono, mas só 5% da população pode dormir quatro horas e não ter as mesmas consequências”, explica Dulce Neutel, notando que estas pessoas conseguem em menos horas fazer o que o sono demora nas outras a fazer 7 ou 8”. Esta diferença de necessidade de sono de algumas pessoas é um dos mistérios que ainda envolvem o sono, sublinha, por seu lado, Marta Gonçalves, psiquiatra e especialista do sono do Hospital da CUF.
“Há também pessoas que desde sempre dormem em hiperalerta”. Às suas consultas chegam muitas pessoas com insónias – um dos distúrbios do sono que mais afecta os portugueses “Entre 30% a 40% dos casos estão relacionados com depressão e ansiedade”, refere a especialista, notando que acaba por ser um círculo vicioso: por um lado, aqueles estados de falta de ânimo causam problemas a dormir, por outro os distúrbios de sono podem levar a estados de espírito depressivos. “É biredicional.” Estima-se que um terço dos adultos tenha queixas de insónia e que 10% sofra de insónia crónica. Traduzindo: demoram mais de 30 minutos a adormecer em três ou mais noites da semana ao longo de 3 meses, no mínimo.
As insónias não são todas iguais, nota Marta Gonçalves: algumas pessoas têm dificuldade de adormecer, outras despertam a meio da noite e depois não conseguem dormir e outras ainda acordam mais cedo do que deviam. As causas, essas, podem ser variadas — como comportamentos que prejudicam, como o consumo de estimulantes, ou doenças como as pernas inquietas ou a apneia, observa Marta Gonçalves.
Já a terapêutica mais eficaz parece ser a cognitiva comportamental, garantem os especialistas, alertando para o perigo de se achar que um comprimido para dormir resolve tudo. “Um comprimido não faz com que uma pessoa deixe de ser maltratada pelo marido, ou que o filho deixe de estar doente”, diz Anselmo Pinto, avisando que muitas vezes não se dorme devido a “problemas laterais” que têm de ser resolvidos.
Mas nem tudo tem explicação, admitem os médicos. Há casos em que as pessoas não dormem e não se sabe porque razão. Há até várias teses sobre o que leva as pessoas a terem insónias. “Há a teoria dos três P”, adianta o otorrinolaringologista, falando da tese de Arthur Spielman, um especialista pioneiro na investigação do sono. Segundo Spielman, as pessoas que sofrem de insónia reúnem factores predisponentes, precipitantes e perpetuantes. Sendo o primeiro a herança genética e as caraterísticas de personalidade (pessoas ansiosas); o segundo o despoletar de um acontecimento, como uma frustração ou um episódio traumático; e o terceiro a incapacidade para cortar o estado de ansiedade, mantendo-o.
Novos desafios entre os mais jovens
Hoje em dia, grande parte dos distúrbios do sono, têm tratamento. No entanto, alguns são mais difíceis de vencer. Uma das perturbações que está a chamar a atenção dos médicos afecta muitos jovens e, resumindo em poucas palavras, é como se vivessem noutra zona do mundo, com outro fuso horário. “São pessoas que têm um atraso da fase do sono”, refere Teresa Paiva, explicando que estas pessoas apenas têm sono muito tarde. Podem, acrescenta Marta Gonçalves, ser tratados com fototerapia (tratamento com recurso a luz), tomar melatonina (hormona que regula o sono) ou tentar resolver o problema com a alteração de alguns comportamentos. Mas nem sempre têm solução.
“São casos que têm muitas recaídas”, avisa Teresa Paiva, que em entrevistas que tem dado explica que se trata de um problema “muito português” que está relacionado com os maus hábitos de sono da população — que é das que mais tarde se deita em todo o mundo.
Além de se deitarem tarde, mais de 20% da população dorme menos de cinco horas e quase 6% dorme mais de 9 horas, segundo dados de vários estudos nacionais como o EpiReuma, coordenado por Helena Canhão e Jaime Branco. À má qualidade do descanso junta-se a elevada quantidade de problemas de sono. Ao todo atingem 60% dos portugueses: três milhões apresentam queixas de insónia, dois milhões ressonam, um milhão sofre de síndroma de pernas inquietas e um milhão vive com apneia.
Um dos maiores obstáculos, avisam constantemente os especialistas, são os horários praticados. Isto é, o facto de existirem muitas pessoas que estão a trabalhar quando todos os outros estão a dormir.
Rodrigo Diogo, de 41 anos, é pescador e há 15 que anda no mar, noites a fio sem dormir. “Há momentos de exaustão”, conta, admitindo que sabe e sente que isso tem impacto na sua saúde física e metal. Ainda recentemente teve dores de cabeça tão fortes que acabou no hospital e num outro dia, a meio de uma conversa com um familiar, perdeu o raciocínio e pura e simplesmente adormeceu. Também a enfermeira Sandra Medeiros, de 37 anos, sente que as noites sem dormir ou a dormir em horas diurnas lhe estão a dar sinais de alerta: “Sinto cansaço, adormeço na primeira oportunidade. Além disso, noto irritabilidade, falta de paciência para os filhos e lapsos de memória”, conta, explicando que, além dos turnos nas unidades de saúde a impedirem de dormir muito e a horas, depois para conciliar a vida com a dos filhos opta por descansar menos. Resultado? “Sinto um enorme desgaste. O que mais me preocupa são as oscilações de humor em alturas de maior cansaço e stress. Às vezes, sinto-me a rasar a depressão, o burnout.”. É que, apesar dos muitos segredos que ainda cercam o sono, há uma certeza, garante Anselmo Pinto: “Tudo o que acontece na vida tem uma relação com o sono”.
O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor.