Que Serviço Nacional de Saúde teremos?
Os últimos tempos têm-se caracterizado pela revelação de muitos problemas na capacidade de resposta do SNS às necessidades dos portugueses. Alguns desses problemas tomam a forma de deficiências nas urgências, com más respostas da rede de hospitais e encerramentos de serviços.
Estes encerramentos começam a ser numerosos, erráticos e causa de um sentimento de insegurança na população e mais acentuadamente em grupos que se vêem agora com riscos acrescidos, como é o caso das grávidas. Se estes encerramentos têm dominado o panorama mediático, eles estão longe de ser o principal problema com que o SNS se está a debater.
Os tempos de espera para cirurgias, para consultas de especialidade e para outras intervenções como sejam exames e testes, têm vindo a tornar-se barreiras quase intransponíveis no acesso à saúde. Estas dificuldades, sentidas nos cuidados de base hospitalar, estão também presentes nos cuidados primários, onde tempos de espera e falta de cobertura da população por médicos de família se tem vindo a agravar ao longo dos últimos tempos.
Os problemas, já existentes, foram ampliados pela pandemia do covid-19. Durante os períodos mais intensos da pandemia acumularam-se enormes défices de prevenção, de monitorização e de prestação de cuidados no caso das doenças não-covid. Sabemos que, aparentemente, a incidência de vários tipos de doenças crónicas se “reduziu” significativamente.
Ocultados por detrás de um manto pesado de medidas para o Covid-19, o sistema de saúde ignorou ou subtratou os problemas cardiovasculares, cerebrovasculares, oncológicos, respiratórios, metabólicos, etc. que se iniciaram ou que se agravaram desde o início oficial da pandemia em Portugal, em março de 2020. Entre a distância mantida pelos doentes face às unidades de saúde, motivada pelo receio de infeção, até ao afastamento ativo/intencional dos doentes por repriorização da atividade nas unidades de saúde, criou-se um défice acumulado na prestação de cuidados de saúde. Este certamente não é alheio ao excesso de mortalidade registado, para além da atribuível ao Covid 19.
Estes défices acumulados poderão vir a ter consequências graves, não só em termos de mortalidade futura como na saúde das populações, com a consequente delapidação da sua qualidade de vida relacionada com a saúde. As crises atuais indiciam que não se está a eliminar este défice e que nem sequer se tem conseguido responder satisfatoriamente às novas necessidades que, entretanto, vão surgindo.
Quais são os impedimentos que têm impossibilitado uma boa performance do SNS e que têm conduzido à sua degradação? A lista é longa e muitos destes impedimentos têm sido referidos bastas vezes em críticas na comunicação social. Assim, de acordo com o que temos vindo a ler, os problemas serão a falta de financiamento, a falta de médicos ou a falta de enfermeiros.
No entanto, análises recentes mostram que os números de médicos e enfermeiros têm vindo a subir e que o próprio recurso base, o dinheiro, ou seja, o financiamento do SNS, tem vindo a subir. O que se tem vindo a deteriorar é a produtividade destes recursos. O SNS começa a parecer-se com um sumidouro onde cada vez mais recursos geram cada vez menos resultados.
Por estas razões, muitos têm vindo a adiantar como principais problemas do SNS a gestão deficiente e a ausência de reformas. Um argumento nesta linha que parece ter algum peso na discussão pública vai repescar a excelente performance dos hospitais geridos em Parcerias Público Privadas clínicas, em má hora terminadas. Se foi possível ter hospitais com qualidade na prestação de cuidados e observando uma grande disciplina económica, porque não fazer os hospitais do SNS seguir uma gestão de igual qualidade? Esta visão é um pouco simplista e esconde uma falsa ingenuidade: não é possível que os hospitais do SNS sejam geridos como as PPP porque os incentivos de todos os decisores e o ambiente em que teriam de agir são completamente adversos.
A questão é que há causas estruturais dos problemas do SNS e que estes têm raízes longas e profundas. Os problemas começam pelo facto de a saúde ser uma área de atividade com muitos interesses, muitos grupos de pressão e muitas corporações, que vão desde os profissionais de saúde aos administradores hospitalares, passando por outros grupos profissionais relevantes no SNS. Todas estas entidades e grupos contribuem para o sistema de saúde e têm interesses legítimos. O problema põe-se no facto de os interesses mais importantes, os da saúde da população portuguesa e os dos contribuintes portugueses, por vezes correrem o risco de ficar secundarizados.
Para se ir ao essencial da questão convém revisitar os dados de base do financiamento e da prestação de todo o sistema de saúde em Portugal. Desde que a Conta Satélite da Saúde começou a ser publicada pelo INE, cobrindo os anos desde 2000, temos acesso a uma visão ampla, com grande rigor e precisão, do sistema de saúde e da sua evolução. A informação contida nas Contas Satélites é surpreendente e merecia ser melhor conhecida. A parte mais familiar para os interessados nas questões económicas da saúde diz respeito ao financiamento, ou seja, às origens dos fundos que pagam a saúde.
Entre 2000 e 2019, a proporção pública do financiamento desceu de 69,8% para 63,8% das despesas totais em saúde. Uma outra parte, menos conhecida, são os dados relativos à prestação, ou seja, para onde vão os fundos. Entre 2000 e 2018 a proporção do setor público na prestação reduziu-se de 46,1% para 39,0% das despesas totais. Não há aqui um engano: em 2000 o setor público era já responsável por menos de metade do valor da prestação de cuidados de saúde e essa percentagem minoritária reduziu-se uns adicionais 7,1 pontos percentuais no tempo decorrido entre 2000 e 2018. Os dados mostram que, apesar do crescimento absoluto do financiamento e da prestação públicos, estes são cada vez mais pequenos em termos relativos.
Estas tendências poderão ter sido perturbadas nos anos da pandemia, mas tudo leva a crer que o percurso está a voltar para os mesmos padrões de evolução que se vinham a afirmar nas últimas décadas.
Uma análise estatística básica da evolução das componentes públicas do financiamento e da prestação revela que a tendência para a “desestatização” da saúde é independente dos partidos no governo, ou seja, não se encontram efeitos estatisticamente significativos que permitam descortinar diferenças no ritmo de “desestatização” entre períodos com governos liderados pelo Partido Socialista e períodos com governos liderados pelo Partido Social Democrata.
É possível chegar a várias constatações baseadas nos factos atrás referidos. Uma delas é que existe uma grande diferença entre as retóricas políticas em conflito, que caraterizam o discurso ideológico dos partidos, e a convergência real de resultados que procede da sua governação. Participar na discussão dos temas em moda em cada momento, mergulhar na espuma dos dias, não deverá ter grande significado ou consequências.
O que se está a passar no essencial? Desde há muitos anos que nos Governos em geral e nos Ministérios das Finanças em particular é dominante a ideia de que o SNS é uma máquina sempre pronta para gastar tudo o que puder, pressionada pelos grupos de interesse e pelas corporações, num processo despesista e sem garantias de eficiência. O resultado é que todos os anos o SNS e os seus responsáveis (e outras partes interessadas…) se queixam do “subfinanciamento” imposto pelas Finanças.
Por detrás deste subfinanciamento, no entender das Finanças estaria a ideia que dando menos dinheiro ao SNS este responderia positivamente à escassez e seria necessariamente melhor gerido. Na prática os resultados contradizem esta esperança de mais eficiência, tanto mais que o SNS tem uma longa história de não respeitar os limites orçamentais que as Finanças tentam impor, criando dívidas a fornecedores e outras entidades e que regularmente têm de ser amortizadas por medidas orçamentais excecionais como é o caso dos orçamentos extraordinários.
Uma outra consequência da tentativa de controlar as despesas na saúde e limitar as suas ineficiências, foi a generalização do controle de muitas decisões de gestão pelas Finanças (e mesmo do que poderíamos designar de microdecisões, como a contratação de um único profissional de saúde). Hoje em dia qualquer contratação no SNS, por muito trivial que seja, precisa de despacho conjunto dos Ministérios da Saúde e das Finanças. A autonomia de gestão das instituições do SNS é extremamente diminuta e, numa perversão da lógica habitual, com cada vez menos poder vem cada vez menos responsabilidade. Infelizmente, até é provável que as suspeitas das Finanças tenham algum fundamento, ou seja, que financiamentos que à partida pudessem ser suficientes seriam sempre tratados como meros pontos de partida para se fazerem despesas ainda maiores…
A consequência das situações e evoluções descritas é que o SNS nunca tem recursos que considera suficientes, tem uma permanente incapacidade de gestão associada a uma sistemática falta de autonomia e um grau de ineficiência no uso dos recursos que limita grandemente a satisfação das necessidades em saúde da população portuguesa.
O resultado estranho, mas verdadeiro, é que as políticas de contenção de custos adotadas pelas Finanças têm sido bem-sucedidas, só que por vias diferentes das referidas habitualmente.
Ao baixar a qualidade e acessibilidade dos cuidados de saúde, criam-se as condições para um crescimento da procura dos cuidados de saúde no sistema privado. Este crescimento da procura tem tido resposta pelo lado da oferta. A título de exemplo, de acordo com estatísticas do INE, entre 1999 e 2019 os hospitais privados e outros não estatais passaram de 22% para cerca de 32% das camas hospitalares no país. Os episódios de internamento no sector privado passaram de 15,3% para 24,1% em 2019. Notícias muito recentes indicavam que em 2021 cerca de 28,5% dos partos na região de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo teriam ocorrido em unidades de saúde privadas.
O grande crescimento do sector privado corresponde a enormes poupanças para o Estado. Se a prestação de cuidados feita pelos privados fosse feita pelo SNS (mesmo que só em parte), haveria um incomportável aumento das despesas públicas. Quanto mais a procura for redirecionada para o sector privado, mais o Estado poupa.
Um outro aspeto interessante do desvio da procura para o setor privado é o impacto na progressividade fiscal do financiamento do SNS. O SNS é financiado pelas receitas gerais do Estado, em particular pelas receitas fiscais: os pagamentos pelos utilizadores como é o caso das taxas moderadoras são tão reduzidos que são irrelevantes numa ótica de financiamento.
O sistema fiscal tem componentes muito progressivas, como é o caso dos impostos sobre o rendimento, e componentes menos progressivas, como é o caso dos impostos sobre o consumo e em particular o IVA. Ao baixar a qualidade de serviço do SNS e induzindo partes da população com rendimentos médios e altos a usar o setor privado, gera-se uma situação em que estes grupos com rendimentos médios e altos pagam pelo SNS ao pagar os seus impostos, mas pouco o utilizam, fazendo com que o financiamento do SNS seja muito mais progressivo.
Nesta lógica, os mais pobres seriam favorecidos pela redução da qualidade do SNS: se o SNS melhorasse os grupos populacionais com rendimentos médios e altos passariam a utilizar mais o SNS, aumentando os seus custos globais. Isso levaria a aumentos dos impostos que também afetariam os mais pobres.
Em suma, a consequência das várias tendências e pressões descritas acima é termos chegado a um resultado que se pode descrever como um equilíbrio político com a caraterística de a qualidade de serviço do SNS ser reduzida. Este equilíbrio pode não ser explicitamente desejado por ninguém, mas resolve o problema primordial das Finanças que é a contenção de custos, e resolve-o de uma forma politicamente redistributiva já que quem ganha são os mais pobres graças ao aumento da progressividade no financiamento global do SNS.
Este equilíbrio tem perigos. Durante muito tempo, o desvio da procura para o setor privado foi visto como tendo limites naturais porque o setor privado, à parte alguma conveniência e conforto, não era visto como uma verdadeira alternativa ao SNS, sobretudo quando estavam em causa patologias pesadas como é o caso do cancro.
Surpreendentemente, o crescimento do setor privado nos últimos vinte anos revelou um grande dinamismo e capacidade de iniciativa, apanhando de surpresa os mais confiantes num domínio permanente do SNS nas dimensões científicas e clínicas. Hoje há unidades de saúde privadas com níveis de sofisticação clínica que pouco ou nada devem ao que de mais avançado se faz no SNS.
Apesar de a maioria da população, para efeitos de cuidados de saúde, continuar a depender diretamente do SNS, a sua percentagem tem vindo a descer ao longo do tempo. No limite, corre-se o risco de o modelo político subjacente ao SNS começar a falhar e de este ser visto como um SNS dos grupos de rendimentos mais baixos (negando o princípio da universalidade do SNS) e de mais baixa qualidade. Se quisermos evitar uma evolução neste sentido vai ser necessário fazer verdadeiras reformas estruturais, as quais serão difíceis, duras, cheias de conflitos, e que necessitarão de usar todos os instrumentos à disposição da política de saúde incluindo, sem ironia, a utilização dos privados com a sua contratação na prestação de serviços públicos.
A alternativa será uma contínua redução da qualidade do SNS, ou subidas exponenciais nas despesas de saúde. Em qualquer dos casos, estas evoluções levarão a pontos de rotura, com consequências imprevisíveis a longo prazo.