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Imagem de um caixote com roupa

Pobreza: um conceito visto à lupa

Como se explica que o Luxemburgo, um pequeno país com um dos maiores PIB per capita do mundo, esteja mais longe de erradicar a pobreza do que a Hungria? Os dados não revelam tudo. É preciso conhecer os conceitos estatísticos que os suportam, defende neste artigo a especialista em estatística e diretora da Pordata Luísa Loura.
7 min

Os mais recentes dados sobre a pobreza revelam que o Luxemburgo está mais longe de erradicar a pobreza do que a Hungria. Será que é mesmo assim?

Quando se olha para a lista de países da União Europeia e para as suas respetivas taxas de risco de pobreza, ordenadas por ordem decrescente, há posições inesperadas.

É o caso do Luxemburgo, onde a taxa de risco de pobreza atinge os 17%, e da Hungria, onde este valor é de apenas 12%.

Imagem de um gráfico com o limiar de risco de pobreza em vários países da Europa
Fonte: Eurostat | PORDATA

O que esta imagem não mostra é que, ser pobre na Hungria não é bem o mesmo do que ser pobre no Luxemburgo.

Há uma definição estatística pelo meio que tem de ser bem entendida antes de podermos interpretar estes dados.

A taxa de risco de pobreza reflete a proporção da população que vive abaixo do limiar do risco de pobreza. E é na definição deste limiar que está o cerne do conceito de «risco de pobreza».

 

Como se define o limiar de risco de pobreza?

O limiar de risco de pobreza não é um valor único. É estabelecido para cada país e calculado (em dois passos) a partir dos rendimentos líquidos da população.

Para isso, primeiro apura-se o valor do rendimento que separa a metade da população com rendimentos mais baixos da metade que tem rendimentos mais elevados. A este valor chamamos «rendimento líquido mediano».

O limiar de risco de pobreza é igual a 60% deste rendimento líquido mediano. Fica claro desta definição que o limiar de risco de pobreza varia de país para país.

 

Os dados de 2022 remetem para os rendimentos auferidos em 2021 e mostram que o limiar de risco de pobreza no Luxemburgo era de 2.266 € por mês, enquanto na Hungria se fixava num valor sete vezes inferior (349 €). Em Portugal o limiar de risco de pobreza também era dos mais baixos em 2021 (551€)[1].

Imagem de gráfico sobre o limiar de risco de pobreza em diferentes países europeus
Fonte: Eurostat | PORDATA

Pode-se questionar agora, e com razão, que o custo de vida em cada um dos países não é idêntico e que há países onde os bens essenciais são bastante mais caros que noutros. Mas será que esse argumento é suficiente para desfazer esta disparidade?

O Eurostat apresenta uma solução relativamente simples para se retirar o efeito do custo de vida. Considera um «cabaz» de bens e serviços e avalia quanto é que esse cabaz custa em cada país.

Consegue, assim, retirar o efeito do custo de vida nas análises que envolvem montantes financeiros ao recalcular tudo numa moeda fictícia que designa por Paridade de Poder de Compra (PPC).

O gráfico abaixo, ilustra a relação entre os limiares de risco de pobreza quando avaliados em termos dessa moeda que retira o efeito do custo de vida de cada país. Para simbolizar essa moeda fictícia, utilizei uma cesta de compras.

Assim, assumindo que o limiar de risco de pobreza na Bulgária permite comprar quatro cestas de compras, então o limiar de risco de pobreza de Portugal permite comprar cinco cestas e o do Luxemburgo permite comprar 14 cestas.

Esta análise revela que o limiar de risco de pobreza do Luxemburgo permite adquirir três vezes e meia mais bens e serviços que o da Bulgária (e quase três vezes mais que o de Portugal). É certo que o limiar de risco de pobreza do Luxemburgo se demarca claramente dos restantes mas isso não impede de constatar a grande diversidade no «grau» de pobreza dos países da União Europeia: em 12 dos países o limiar de risco de pobreza permite adquirir pelo menos o dobro dos bens e serviços que na Hungria, na Roménia, na Eslováquia e na Bulgária e quase o dobro que na Grécia, Portugal e Croácia.

 

Em termos comparativos, ser pobre num destes sete países significa ser paupérrimo e passar por muito mais dificuldades.
Imagem de um gráfico que compara o risco de pobreza em países europeus com base na paridade do poder de compra
Fonte: Eurostat | PORDATA

Note-se ainda que muitos países alteraram a sua posição relativa quando se retirou o efeito do custo de vida, nomeadamente Portugal, que passou da 10.ª para a 6.ª posição a contar do fim.

Como equilibrar a distribuição de rendimentos?

O que é que tem de acontecer aos rendimentos para que uns países tenham mais de 20% da população abaixo do limiar de risco de pobreza e outros tenham apenas 10%? E será que é possível (estatisticamente) erradicar a pobreza?

Os dois gráficos seguintes ilustram a distribuição dos rendimentos em dois países virtuais[2] (país A que mimetiza o Luxemburgo e país B que mimetiza Portugal).

O padrão da distribuição dos rendimentos é análogo, com uma grande franja da população com rendimentos baixos (note-se que a área dos dois primeiros retângulos representa mais de 30% da área total).

No entanto, no primeiro caso os rendimentos oscilam entre 1.500 euros e 25.000 euros mensais e, no segundo caso, oscilam entre 350 euros e 6.000 euros.

Imagem de gráfico que simula a distribuição de rendimentos num país fictício
Fonte: dados obtidos pela autora por simulação estocástica (modelo de Gibbs-Boltzmann)
Imagem de gráfico que simula a distribuição de rendimentos num país fictício
Fonte: dados obtidos pela autora por simulação estocástica (modelo de Gibbs-Boltzmann)

A linha a tracejado assinala o limiar de risco de pobreza. Facilmente se constata que mesmo os mais pobres dos pobres do país A estão muito longe de serem considerados pobres no país B e que, por outro lado, quase 90% da população do país B seria considerada pobre no país A.

Note-se que em qualquer dos dois casos a percentagem de rendimentos abaixo do limiar de risco de pobreza é igual a 17%, pelo que este número por si só diz muito pouco!

Passemos agora ao país C, também um país virtual, com baixos rendimentos, mas onde a taxa de risco de pobreza é pouco superior a 10% (mimetizando a situação da Hungria).

Para simular uma distribuição de rendimentos com esse padrão basta alterar o parâmetro de forma do modelo da economia física que descreve este tipo de realidades. Desse modo, consegue-se visualizar o que tem de acontecer à distribuição dos rendimentos para que a taxa de risco de pobreza reduza: a classe média tem de ganhar preponderância e o peso dos casos de muito baixos e muito altos rendimentos tem de diminuir.

Imagem de gráfico que simula a distribuição de rendimentos num país fictício
Fonte: dados obtidos pela autora por simulação estocástica (modelo de Gibbs-Boltzmann)

Já vimos que ter rendimentos baixos que não sejam compensados por um igualmente baixo valor do cabaz de compras conduz a uma interpretação errónea da taxa de risco de pobreza.

A proporção da população que é considerada pobre pode ser baixa (como na Hungria) porque a distribuição dos rendimentos é mais equilibrada, mas, ainda assim, continuar a haver uma grande parte da população a viver em dificuldades por não conseguir ter acesso aos bens e serviços mais básicos.

Na União Europeia há apenas quatro países que conciliam uma taxa de risco de pobreza relativamente baixa com um nível de rendimentos que dá às respetivas populações um bom poder de compra: Dinamarca, Bélgica, Finlândia e Eslovénia.

São os únicos que se encontram no quadrante superior esquerdo do gráfico que segue. Portugal encontra-se no quadrante oposto por ter um nível de rendimentos (em PPC) abaixo da média europeia e uma taxa de risco de pobreza superior a 14%.

Imagem de um gráfico com a média do nível de rendimentos na UE
Fonte: Eurostat (Limiar de risco de pobreza)| PORDATA; Eurostat (taxa de risco de pobreza) | PORDATA

Erradicar totalmente a pobreza, tal como ela se encontra definida, é estatisticamente impossível, mas caminhar para que todos os países se aproximem de um mesmo ponto de cruzamento dos eixos (com uma taxa média de risco de pobreza a não exceder os 10%) poderia ser mais que uma mera utopia.

 

 

[1] O valor referente a 2022 foi divulgado pelo INE no passado dia 27 de novembro: 591€ por mês

[2]  Os dados dos rendimentos são simulados a partir do modelo de Gibbs-Boltzmann. Este é um modelo da física estatística que tem revelado um bom ajustamento na modelação de dados reais de rendimentos (ver “Khamnei, J. et. al. - 2023. Modeling income distribution: An econophysics approach. Mathematical Biosciences and Engineering. 20”  e respetivas referências).

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