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Imagem gerada por IA de uma mulher a pintar um quadro

«O grande artista do futuro não será humano»

A imagem acima foi criada com Inteligência Artificial (IA). Pode ser considerada arte? Será a criatividade intrinsecamente humana ou é atingível por máquinas? Leonel Moura, artista pioneiro na aplicação da robótica e da IA à arte, diz que arte é aquilo que o artista quiser, acreditando em parcerias artísticas entre humanos e máquinas. Já José Carlos Pereira, professor na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, diz que é necessário distinguir a criatividade da habilidade técnica, considerando que, por vezes, produtos altamente sofisticados produzidos pela IA podem ser confundidos com obras de arte.
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A arte gerada por IA pode mesmo ser considerada arte?
Sim

Sim, absolutamente. Por dois motivos: [por um lado], a evolução da arte no último século ampliou bastante o campo daquilo que se designa por arte – por exemplo, o caso da galeria de arte vazia com o ar condicionado ligado, a que o grupo Art & Language chamou «A exposição do ar condicionado», em 1967. Na verdade, arte é aquilo que o artista diz que é arte e a cultura aceita como tal e vai integrando.

Por outro lado, a arte realizada pela Inteligência Artificial, ou por máquinas, como é o caso dos meus robôs, assenta em princípios de criatividade comuns aos seres humanos e restantes espécies. Aprende, combina e inova. O princípio é o mesmo e, portanto, não pode deixar de ser considerada uma forma de arte.

Não

Não, a questão da arte, como todas as questões importantes, deve ser considerada em perspetiva. Há várias teorias que poderiam ajudar-nos a refletir sobre este tema: Tomando como exemplo a posição do artista, poderíamos citar o pintor e escultor Anselm Kiefer que considera que a arte é sempre uma ruína do tempo e de si própria, mas que sobrevive sempre a essa mesma ruína pela sua energia e o seu poder.

Podemos também evocar uma perspetiva ontológica, como a do filósfo Martin Heidegger, em que a obra de arte é um acontecimento que torna mais compreensível, e afetiva, a própria existência humana. Esta perspetiva obriga-nos a pensar na natureza e limites da «linguagem» usada pela IA. O filósofo Paul Ricoeur afirma que o que se torna captável pelo espectador na experiência da obra de arte é a dimensão pré-reflexiva do jogo entre a imaginação e o entendimento do artista. Porém, é difícil reconhecer uma unanimidade quanto à possível universalidade destas teorias.

Por oposição à tradição filosófica continental, o pensamento anglo-saxónico sobre arte parece apresentar uma flexibilidade maior. A definição do fenómeno artístico só poderá ser encontrada no seio de uma prática ou conjunto de práticas que os humanos definem como arte, isto é, o que podemos admitir como arte é resultado de uma convenção de várias instituições: artistas, críticos, curadores, museus, historiadores, estetas e público.

A IA é uma ameaça à criação artística ou pode ser um parceiro criativo?
Não

Não, a IA não é uma ameaça. De momento, realiza-se com base numa operação simbiótica, numa parceria entre o humano e a máquina. Eventualmente, no futuro, a IA irá autonomizar-se em criações já sem referência à cultura humana, derivando de uma nova forma de cultura: a das máquinas – e nós iremos adorar. Por isso afirmo que o grande artista do futuro não será humano.

Não, mas

Não concordo que a IA seja uma ameaça à criação artística pelo facto de tanto a IA como a criação artística constituírem esferas distintas, apesar de estabelecerem um conjunto de relações diversas entre si. [Mas], por outro lado, torna-se importante clarificar o que entendemos por «ato criativo», para que possamos considerar ou admitir o «poder criativo» da IA.

A admissibilidade progressiva da «conversão» do mundo em imagem, ou conjunto de imagens, poderá concorrer para a perceção de que toda a imagem tem necessariamente uma dimensão artística, o que nem sempre é verdade. A criatividade não se confunde com habilidade ou virtuosismo técnico, e poderá ser a ausência desta distinção que frequentemente leva ao equívoco de considerarmos que a «máquina», pela sua enorme sofisticação, pode ser mais virtuosa tecnologicamente do que o humano, e, dessa maneira, fazer coisas «admiráveis», insólitas ou inesperadas, fazendo-as equivaler a «arte».

Considera que a intuição e a criatividade são intrinsecamente humanas e, por isso, impossíveis de replicar por sistemas de IA?
Não

Não, a criatividade não é uma exclusividade do humano. É um mecanismo que está presente em todas as formas de vida e é uma componente fundamental da evolução. É certo que a arte criada por IA ainda se encontra na fase de simular a cultura humana, [mas] certamente que irá libertar-se dessa referência e gerar uma arte e cultura próprias. Aliás, já se observa essa tendência: a IA mais desenvolvida começa a referenciar-se a si mesma, ou seja, vai buscar criações previamente geradas por máquinas e cria algo a partir desses dados.

Sim

Concordo, mas é necessário sublinhar que «replicação» não corresponde a «criação». [Por exemplo], Picasso não replica na Guernica os acontecimentos trágicos do bombardeamento da aldeia pelos alemães em conluio com Franco, nem os acontecimentos da sua vida íntima que aí também aparecem representados simbolicamente.

Na sua opinião, é justo chamar-se artista ou autor a uma pessoa que criou uma obra de arte com recurso a IA ou o artista é aquele que tem um papel ativo em todas as fases de produção da obra de arte?
Sim

Sim, é justo. O artista já não é aquele que faz, mas aquele que desencadeia um processo. Há mais de um século, pelo menos, que a criação artística recorre a processos aleatórios – pense-se, por exemplo, nos surrealistas – ou processos combinatórios, fora do controlo de quem inicia o procedimento.

Sim

Sim, é justo. Os artistas nem sempre executaram muitas das obras que lhes são atribuídas – estas foram executadas por profissionais com uma formação mais ou menos técnica: canteiros, ferreiros, construtores, etc. – mas criaram-nas, isto é, conceberam ou imaginaram por via do desenho, do esboceto, da maqueta, etc.. Por isso é legítimo que a autoria dessas obras lhes seja atribuída. O recurso à IA obriga-nos a saber se a sua possibilidade de criação constitui um mero simulacro, e a partir daí qual o estatuto da parceria da IA com o artista, e qual o resultado da obra.

 

 

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