O estranho caso dos médicos que querem transplantar cabeças
Chamam-lhes Dr Frankenstein e não é para menos: Dois cirurgiões prometem realizar, até ao início de 2018, o primeiro transplante de cabeça num ser humano. Acreditam que esta operação inédita vai mudar a história da medicina e será uma esperança para prolongar a vida de milhões de pessoas com o corpo paralisado por lesões ou doenças incuráveis.
O neurocirurgião italiano Sergio Canavero e o cirurgião ortopédico chinês Xiaoping Ren são os protagonistas deste polémico projecto, que gera enorme controvérsia na comunidade científica, dividida entre a incredulidade do sucesso desta operação e os inúmeros dilemas éticos que um procedimento deste tipo envolve.
O método cirúrgico passa por transplantar a cabeça de um doente com o corpo paralisado, para o corpo de um dador cerebralmente morto. Foi desenvolvido por Canavero, ex-coordenador do Grupo de Neuromodulação Avançada de Turim, como uma forma de prolongar a vida de pessoas que sofrem de doenças degenerativas incuráveis.
O procedimento implica um feito inédito, considerado “impossível” por muitos especialistas: cortar e restaurar as ligações da espinal medula, a principal via de comunicação nervosa entre o cérebro e o resto do corpo. Ou seja, o médico italiano propõe decapitar os dois corpos, e depois fundir a espinal medula da cabeça transplantada com a do dador, restaurando as ligações nervosas.
Apesar da controvérsia, o projecto – publicado pela primeira vez em Junho de 2013 na prestigiada revista científica Surgery Neurology International – vai agora ser posto em prática pelo cirurgião ortopedista Xiaoping Ren.
O especialista integrou a equipa que fez o primeiro transplante de mão bem sucedido nos EUA, em 1999. E já anunciou que está pronto para realizar o procedimento na China. A data para a operação ainda não foi oficialmente divulgada: por agora, sabe-se apenas que deverá realizar-se até ao próximo mês de Janeiro.
A publicação do artigo original de Canavero provocou “uma tempestade” na comunidade científica, reconhece o próprio neurocirurgião. Não só devido à dificuldade extrema do processo, que implica a ligação de pele, tecidos, ossos, músculos, vasos sanguíneos e sobretudo da espinal medula. Mas também pelos riscos de rejeição da cabeça pelo novo corpo e porque ninguém sabe o que acontecerá e o que será o ser humano que sobreviver à operação.
Foi para pôr fim “à histeria de uma vez por todas” que o médico italiano publicou, três anos depois, um novo artigo, na mesma revista científica, onde clarifica como quer contornar os maiores desafios deste transplante inédito.
No trabalho escrito em parceria com Xiaoping Ren, e publicado em Setembro de 2016, é descrita a forma como os dois especialistas esperam conseguir fazer o corte e a fusão das duas espinais medulas.
O sucesso deste método, dizem, resulta por um lado da forma precisa como serão cortadas as medulas, minimizando os danos nas células nervosas. Por outro, da utilização de uma substância, o polietilenoglicol (PEG), que parece ter a capacidade de “refundir” e incentivar o crescimento de algumas das células do sistema nervoso.
Segundo os autores, a utilização deste PEG, que funciona como uma espécie de cola, no restaurar das ligações da espinal medula ficou já comprovada em várias experiências com animais, realizadas na China e na Coreia do Sul.
Algumas das experiências conduzidas pelo próprio Xiaoping Ren mostraram que ratinhos com as espinais medulas cortadas voltaram a andar ao fim de dois dias.
Será o ortopedista quem vai liderar o procedimento em humanos no Hospital de Harbin. A cobaia será um cidadão chinês, que voluntariamente dará a cabeça na esperança de ganhar um corpo capaz de movimentos.
A escolha do candidato só deve acontecer em vésperas da cirurgia, de forma a que o transplantado seja o mais compatível possível com o corpo do dador cerebralmente morto, explicou Canavero numa entrevista à revista “Ooom”, no passado mês de Abril.
Entre os vários voluntários na China está Wang Huanming, um sexagenário paralisado do pescoço para baixo após uma luta de wrestling com um amigo, que falou ao The New York Times.
Sem esperança de ser seleccionado para este procedimento ficou o russo Valery Spiridonov, que sofre de uma doença degenerativa incurável e progressiva, que o prende a uma cadeira de rodas. Canavero chegou a apresenta-lo como candidato à cirurgia e durante dois anos o russo deu a cara pelo controverso projecto. Mas como a operação vai realizar-se com voluntários da China, Spiridonov já esclareceu que tentará agora uma operação convencional apenas para melhorar a sua qualidade de vida.
A intenção de Canavero de encabeçar esta arriscada cirurgia é antiga. O neurocirurgião, com mais de uma centena de artigos científicos publicados, ambiciona realiza-la há mais de 30 anos. Mas só apresentou publicamente o método e o então candidato à operação em Junho de 2015.
Numa mediática conferência em Annapolis, nos EUA, perante mais de uma centena de cirurgiões, o especialista de Turim pediu apoio à comunidade científica norte-americana para a realização desta operação, avaliada em 13 milhões de dólares.
“Só fiz este anúncio quando tive a certeza de que poderia realizar esta cirurgia. As hipóteses de sucesso são de 90%”, defendeu Canavero aos jornalistas.
E será com este optimismo de Canavero, que o transplante vai decorrer a 8285 km de distância de Turim, onde o neurocirurgião está sedeado.
Na China, no Hospital de Harbin, o transplante deverá envolver 150 médicos e enfermeiros e prolongar-se por mais de 30 horas.
Vai exigir que duas equipas de cirurgia trabalhaem em simultâneo: Uma actuará no corpo do dador de cabeça e outra no homem em morte cerebral.
Segundo as explicações dadas por Canavero, a operação obriga ao arrefecimento dos dois corpos a uma temperatura entre os 10 e os 15 graus Celcius para prolongar o tempo de sobrevivência das células privadas de oxigénio.
Depois exigirá o corte parcial das duas cabeças (ao nível da vértebra C5) e a ligação por meio de tubos dos sistemas circulatórios dos dois corpos. Só depois será feita decapitação total das cabeças, com uma faca bisturi especial que minimiza as lesões na espinal medula, relatou o neurocirurgião, numa entrevista à revista “Ooom”.
O transplante da cabeça para o novo corpo, a fusão das duas medulas e restabelecimento do sistema circulatório terão de ser feitos em menos de 60 minutos. Caso contrário a cabeça transplantada ficará com lesões cerebrais irreversíveis.
Se o procedimento for concluído com sucesso, o doente transplantado ficará em coma induzido durante três a quatro semanas para reduzir as hipóteses de movimento e permitir que as lesões se consolidem. Depois disso, surgem novas incógnitas…
Como a personagem de ficção criada pelo Dr Frankenstein que pessoa será aquela? O que restará da personalidade e autoconsciência do dador de cabeça? Como aceitará e reagirá ao seu novo e desconhecido corpo?
São muitas as dúvidas colocadas pelos especialistas em bioética, que um pouco por todo o mundo, têm reagido ao processo.
Uma das críticas mais destrutivas foi feita pelo responsável de ética médica do Langone Medcal Center da Universidade de Nova Iorque.
Para Arthur Caplan a ambição de Canavero não só é impossível ao nível clínico, mas também “é cientificamente vil e eticamente deplorável”.
O norte-americano defende que Canavero “perdeu a cabeça” e que o procedimento acarreta enormes problemas éticos.
“O cérebro não está contido num balde, está integrado com a química do corpo e com o seu sistemas nervoso”, alega. “Poderá o cérebro incorporar novos sinais, percepções e informação de um corpo diferente daquele que lhe é familiar? O resultado mais provável é que [esse doente] venha a sofrer de insanidade ou doenças psiquiátricas graves”.
Na mesma linha, o especialista em bioética croata Anto Čartolovni e o clínico italiano Antonio G. Spagnolo defendem os riscos deste enorme salto para o desconhecido.
“Transplantar a cabeça significa que será transplantada toda aquela pessoa, com a sua mente, personalidade e consciência, para o novo corpo?”, interrogam-se num artigo publicado na mesma revista.
“A cabeça transplantada conseguirá viver com um corpo novo e como é que isso afectará a sua identidade, já que a auto-imagem e todas as memórias estão ligadas a um corpo diferente daquele que será o seu? E que património genético será transmitido aos filhos?”
Para Canavero, é a cabeça e não o corpo que definem a essência da pessoa, mas os candidatos ao transplante de cabeça estão a ser preparados há meses para as sensações de um novo corpo.
O médico explicou à revista “Ooom” que foi desenvolvido um método de realidade virtual por uma empresa de Silicon Valley para ajudar os candidatos a terem uma sensação tangível do que os espera se conseguirem voltar a mexer-se e a andar.
“A parte psicológica é determinante em todo o processo e queremos estar preparados para todas as eventualidades”, defendeu.
Canavero admite, contudo, que só depois desta operação haverá respostas para múltiplas questões. Algumas das quais existenciais. “Durante a separação da cabeça do corpo não haverá vida. Aquela pessoa estará clinicamente morta. Se conseguirmos faze-la viver num novo corpo teremos pela primeira vez a noção do que acontece após a morte”, defende o neurocirurgião.
Por isso, não tem quaisquer dúvidas: “depois desta cirurgia entraremos numa nova era, uma era de esperança para muitas pessoas”.
O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor