O Brexit e o fim das ilusões
AEuropa encontra-se numa encruzilhada. Pela primeira vez na sua história, os cidadãos de um Estado-membro decidiram maioritariamente através de referendo sair da União Europeia (UE).
O desencanto dos ingleses para com a União é tão grande que estão dispostos a aceitar os enormes custos económicos, sociais e políticos associados a uma saída da União. Depois do choque inicial, trata-se agora de responder a duas questões fulcrais. Em primeiro lugar, como se explica esta decisão “irracional” dos cidadãos britânicos em relação ao referendo sobre o Brexit? E, em segundo lugar, agora que nos deparamos com o impensável, quais serão as repercussões desta saída no processo de integração europeia?
O Brexit é o culminar de um processo de crescente eurocepticismo e da deterioração do consenso político e social em torno da União em toda a Europa. O sucesso da campanha a favor da saída reflecte a dissonância entre as elites políticas europeias e os seus cidadãos, o chamado dissenso constrangedor. Um mal-estar que se iniciou no período pós-Maastricht, se aprofundou nas últimas décadas, e que atinge o seu auge com o voto dos cidadãos britânicos a favor da saída da UE. A opinião pública europeia tornou-se marcadamente eurocéptica, sobretudo com a politização das decisões tomadas por instituições supranacionais não eleitas directamente, tais como a Comissão Europeia e o Banco Central Europeu. Os cidadãos contestam agora abertamente a UE e as suas políticas, mostrando, por exemplo, uma enorme discordância ao acordo de livre comércio entre a UE e os Estados Unidos da América. E por fim, o surgimento de movimentos e partidos populistas anti-europeus ajudam a canalizar e a empolar esse eurocepticismo numa contestação exacerbada à UE. É neste contexto que se deve analisar o resultado do dia 24 de Junho de 2016.
O sucesso da campanha a favor do Brexit baseou-se essencialmente em três factores. Em primeiro lugar, a imigração maciça de cidadãos dos outros Estados-membros para o Reino Unido (RU), com cerca de 300.000 pessoas por ano, gerou medos e reacções xenófobas primárias sobretudo nas classes económicas mais desfavorecidas. Em segundo lugar, as elites políticas e sociais no RU sofreram nos últimos anos uma enorme perda de credibilidade e autoridade, por não terem respondido de forma clara e eficaz aos problemas gerados pela imigração, mas também à perda de qualidade dos serviços públicos sociais e de saúde, e às crescentes dificuldades económicas dessas mesmas classes. Em terceiro lugar, o RU continua a olhar para o futuro com uma auto-confiança extraordinária que tem os seus alicerces no passado glorioso e imperial do país, que ainda vive à sombra de toda uma mitologia associada ao seu papel como poder mundial do século XIX. Estes três factores explicam por que a razão e o pragmatismo britânicos perderam esta batalha.
A segunda questão crucial é quais são as consequências para o projecto europeu quando a União perde o seu Estado-membro com o segundo maior poder económico e que é, ao mesmo tempo em termos populacionais, o seu terceiro maior Estado-membro. A UE encontra-se à deriva, assiste-se desde 2010 a uma governação em modo de crise: da crise do euro passou-se à crise da austeridade e depois da crise dos refugiados (passando pela crise da Ucrânia) segue-se agora a “crise existencial”. Acabaram-se as ilusões de que o projecto europeu era irreversível e só conhecia uma direcção mais integração. A única certeza que existe é que não é possível regressar ao “business as usual” como se nada tivesse acontecido. Num momento em que assistimos a uma constante erosão da confiança e a um retrocesso, um spill-back, do projecto europeu que tipos de respostas podem ser agora ensaiadas para renovar a força do projecto europeu? E quem está disponível para assumir a liderança?
As primeiras reacções demonstram uma cacofonia de vozes, com os líderes das instituições europeias a reagirem agressivamente e a pedirem uma rápida invocação do artigo 50.° do Tratado de Lisboa por parte do governo britânico para que se possa iniciar formalmente o processo de saída da UE, com alguns Estados-membros, particularmente a chanceler alemã, a travarem precipitações e a evitar reacções extemporâneas. Seguir-se-á um novo rol de cimeiras em que será essencial manter a calma e negociar (“keep calm and negotiate”). Estamos basicamente perante a escolha entre três caminhos: supranacionalismo, ou seja a transferência de mais poderes para o nível europeu; intergovernamentalismo que corresponde a uma maior preponderância de decisões tomadas pelos Estados-membros; e diferenciação integrada, com uma geometria variavél em que os Estados-membros avançam a velocidades diferentes. Embora este último cenário (diferenciação integrada) constitua um modo de ultrapassar a crise, a sua escolha também acarreta riscos de maiores fragmentação e complexidade, pois leva à consolidação de núcleos variáveis e diversos.
Como o Brexit também desencadeou novas dinâmicas de desintegração ao nível nacional, com possivelmente os escoceses e os irlandeses do norte a pedirem a independência do RU para poderem assim ficar dentro da UE, e em que os partidos políticos ponderam proceder primeiro a novas eleições antes de pedir oficialmente a saída da UE, todas a opções continuam em aberto. Temos diante de nós um longo e difícil caminho a percorrer até que saibamos o desfecho deste Europa blues. Só existe uma certeza, as tendências centrífugas estão para ficar e os partidos populistas reagiram euforicamente à vitória do Brexit e já se fazem mesmo ouvir pedidos para novos referendos, nomeadamente na França, nos Países Baixos e até em Portugal.
Como os actores políticos britânicos decidiram manter o suspense e literalmente desaparecer da arena política, só nos resta manter a calma e esperar pelas próximas reuniões informais intergovernamentais e pelo desenrolar das cenas dos próximos episódios no RU. Um divórcio rápido, que é o cenário preferido do presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, não terá lugar. Se o Brexit for por diante será um longo processo, lento e moroso, que pode durar anos até estarem delineadas as relações entre a UE e o RU nas mais variadas áreas de política do comércio, à defesa, passando por ambiente, agricultura, etc.
Esperemos que esta crise existencial ajude a UE a sair do actual torpor e que tenha um efeito de catarse, em que se discuta claramente sobre a finalidade do projecto europeu. Nós sabemos quem somos, falta-nos como europeus responder à pergunta para onde queremos ir. O projecto europeu não é perfeito, está longe de resolver todos os desafios actuais da política global e europeia, mas a UE é o melhor dos mundos possíveis, longe da perfeição, mas preferível ao bilateralismo e unilateralismo, e a um mundo dominado por nacionalismos primários.
Eugénia da Conceição é a autora de O Futuro da União Europeia. Entrevista ao Expresso disponível em Com ou sem Brexit o terramoto já começou na União Europeia.
O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor