A face exterior da América
Comecemos pelo óbvio. Os americanos, nas suas escolhas eleitorais, mobilizam-se essencialmente pela agenda do seu quotidiano interno. Nestes tempos ela é: poder de compra, segurança, imigração, aborto e temas de género, saúde, desemprego, armas, habitação, valores religiosos e nacionais, questões identitárias, estilos de vida – não necessariamente por esta ordem, dependendo das suas clivagens regionais, étnicas, de classe ou etárias.
Prevalece a ideia de que o cidadão americano, integrando embora o país mais poderoso do mundo, se interessa sempre pouco por esse mesmo mundo, ou apenas se preocupa pelo que dele possa resultar como impactando no seu dia-a-dia interno. A relevância da questão migratória, com a sua declinação securitária, na agenda eleitoral é talvez um bom exemplo contemporâneo disso mesmo.
Na História – depois das duas guerras mundiais, do que decorreu da Guerra Fria, de que o conflito no Vietnam é bom exemplo, a que se somou aquilo que o 11 de setembro determinou – as lideranças americanas sempre demonstraram alguma dificuldade em convencer a opinião pública da necessidade de envolver e sustentar a presença dos seus soldados em teatros de guerra no exterior, mesmo que para a defesa dos seus interesses.
O passado revelou também que, aos ciclos de intervenção externa, se sucederam sempre movimentos de retração no uso das suas tropas em cenários externos, internamente motivados.
As fórmulas simplificadas são sempre desmentidas pelas exceções, mas isso não nos deve inibir de reconhecer o que parece ser uma tendência: na América, as administrações democráticas surgem, quase sempre, como promotoras de intervenção em conflitos externos, por contraste com os tempos republicanos, aparentemente menos propensos a tal.
Numa explicação simples, fica a sensação de que, mais no seio dos democratas do que no dos republicanos, prevalece a ideia de que residem na ordem externa muitas das soluções que defendem os interesses da América.
O que ficou escrito serve de intróito à reflexão do que pode representar, para o mundo, a vitória de um dos dois candidatos no confronto eleitoral de 5 de novembro.
Comecemos pelo que parece mais fácil.
No cenário de vitória de Kamala Harris, é legítimo presumir alguma continuidade face à linha da administração cessante no que toca à Ucrânia.
No entanto, atento o conhecimento aprofundado que Joe Biden tinha das questões internacionais, é de supor que uma presidente Harris acabe por ficar mais nas mãos da máquina diplomática do State Department, e mesmo do Pentágono.
Isso faz presumir que a questão da Ucrânia venha a manter-se com uma elevada prioridade para os EUA, não sendo de excluir uma atitude mais firme face a Moscovo, o que pode depender da composição futura do Congresso.
A contrario, uma vitória de Trump parece apontar para um cenário de compromisso, a custo da integridade territorial da Ucrânia, o que representará uma imediata frente de divergência com a Europa.
No tocante ao Médio Oriente, uma vitória de Trump significaria uma imediata «carta branca» a Israel, aprofundando aliás o isolamento internacional dos EUA e o agravamento da sua perda de autoridade moral.
Harris pode ser um pouco mais sensível aos setores democráticos que se escandalizam com a tragédia de Gaza, mas é duvidoso que, mesmo que o tente, lhe seja possível travar Israel, que dispõe de uma capacidade de influência dentro dos EUA que é muito difícil de combater.
Uma grande dúvida permanece no caso do Irão. Trump foi o responsável pelo abandono dos EUA do acordo nuclear, mas Biden não teve vontade de retornar a ele. O caldo de cultura de apaziguamento que esteve na origem daquele compromisso não parece existir nos dias de hoje, tanto mais que a conflitualidade entre Israel e o Irão se coloca agora como um fator de agravamento.
Sabe-se que o tema do desafio que a China representa é, nos EUA, politicamente transversal, por um conjunto cumulativo de razões.
A questão de Taiwan surge como um elemento importante nesse contexto, mas fica a sensação de que uma nova presidência Trump poderia colocar a questão comercial na primeira linha de uma conflitualidade inevitável, enquanto uma presidência Harris, não esquecendo a dimensão económica, traria Taiwan e os vetores políticos das alianças no Indo-Pacífico para a linha da frente da sua diplomacia.
À parte estes e outros cenários geopolíticos, é óbvio que uma eventual administração Harris será muito mais favorável a um cultivo do mundo multilateral do que seria uma administração Trump. Isso refletir-se-ia em dossiês tão importantes como as alterações climáticas e, em geral, no papel futuro da ONU, cujo atual bloqueio interno não contribui para o seu prestígio.
Trump na Casa Branca significaria, quase inevitavelmente, a emergência de uma forte contradição com a Europa, seja pelo renascer do seu peculiar olhar sobre a NATO, com a questão da Ucrânia a agravar esta tensão, seja pelas clivagens comerciais e em outras frentes económicas.
Em síntese, se bem que nada garanta que venha a ser uma mera continuidade da linha Biden, uma América liderada por Kamala Harris tenderá a ser mais dialogante com os amigos tradicionais dos EUA e, em especial, será muito mais previsível. Trump, por seu turno, será o «happening» que foi no passado, quiçá potenciado no futuro.
Os Estados Unidos da América habituaram-nos a uma atitude de auto-suficiência e de relativo desprezo pelo modo como os outros, nomeadamente a Europa, olham os problemas globais.
Contudo, os democratas costumam disfarçar melhor essa sua arrogância. Trump, seguramente, não se preocupará um segundo com o modo como os amigos da América a olham, desde que consiga fazer com que a sigam. E, como sabemos, os EUA têm meios e poder suficientes para levar isso à prática, gostem os outros ou não.