A Ucrânia e a Europa, dois anos depois
A 28 de fevereiro de 2022, apenas quatro dias após a invasão do seu território pelas forças da Federação Russa, a Ucrânia apresentou um pedido de adesão à UE. Poucos meses depois, a Comissão Europeia, sob a batuta entusiasmada de Ursula Von der Leyen, recomendou que este fosse aceite, o que não demorou a acontecer por decisão do Conselho e com apoio do Parlamento Europeu.
Em Dezembro de 2023, apesar das dúvidas do primeiro-ministro húngaro, as negociações começaram. A rapidez do processo tem sido fulgurante, confirmando como a agressão russa – que pretendia manter a Ucrânia na sua esfera de influência – paradoxalmente, tornou realidade as aspirações europeias dos ucranianos.
Como explicar esta aceleração num processo tão complexo e intrincado? Faz sentido o alargamento da UE à Ucrânia, quando outros países esperam há tanto tempo para entrar? O que está verdadeiramente em causa? Que desafios se colocam com a admissão da Ucrânia? Dois anos depois do regresso da guerra à Europa muitas destas questões começam a encontrar respostas. Vejamos o que já é possível apurar e o que está em jogo.
Um processo relâmpago
Nestes meses, o mérito e a vontade reformista da Ucrânia tornaram-se inquestionáveis. Aliás, é a presidente da Comissão Europeia a primeira a reconhecer a «velocidade espantosa» com que Kiev está a implementar as reformas necessárias, tendo sobretudo em conta as condições excecionais em que o país vive: está parcialmente ocupado, à mercê de bombardeamentos diários e com a maior parte dos seus recursos canalizados para o esforço de guerra. Acresce que, por causa dessa situação, a maioria dos funcionários públicos ucranianos ou abandonou o serviço ou está deslocado.
Tudo isto confirma não só a extensão do empenho ucraniano, como a situação inédita que se vive. Na sua história de mais de sete décadas, a Europa nunca tinha aceite negociar a adesão de um país em guerra. Mesmo o caso do Chipre está longe de ser equivalente. Afinal, aquando da sua admissão, a situação do território estava estabilizada há 30 anos. Além do mais, a «outra” parte é a Turquia, país membro da NATO. A Ucrânia enfrenta a máquina de guerra do maior país do mundo, que tem determinação revisionista e capacidade nuclear.
Os motivos da adesão
Que razões levaram, então, a UE e a Ucrânia a dar este passo ousado num contexto tão difícil? Do lado da Ucrânia, destacam-se a importância de reforçar o moral da nação e o sentimento de “não estamos sós”, bem como a necessidade de garantir assistência financeira e militar para a guerra. Acresce, ainda, uma vontade forte de, a médio prazo, providenciar a todos os ucranianos os benefícios de viverem num país em segurança, em liberdade e com prosperidade. Tratam-se, evidentemente, de razões perfeitamente legítimas.
Do lado da UE, as razões são sobretudo ditadas pelos constrangimentos do contexto geopolítico e, por arrastamento, pelo desejo de se garantir uma estabilidade sustentável. Afinal, foi a agressão russa à Ucrânia – primeiro em 2014 e depois em 2022 – que demonstrou aos europeus como era uma ilusão a sua convicção de que a paz estava garantida. E, ao fazê-lo revelou, igualmente, como os pilares da sua política externa e de defesa se tinham tornado inválidos. Bruxelas teve de alterar os seus cálculos sobre o alargamento a novos membros e, em especial, à Ucrânia. Um caminho que até então parecia inconcebível, tornou-se vital. Em suma, o mérito ucraniano e a necessidade conjunta impuseram-se às convicções predominantes.
Claro que a integração de um país com o tamanho e a situação político-militar da Ucrânia parece um repto quase impossível. Todavia, tendo em conta a realidade regional e global e, principalmente, os custos da inação face aos desafios emergentes, não avançar com a integração ainda é mais impossível. Recusar admitir um país tão comprometido com os valores e o modo de vida europeus, traria custos altíssimos à própria comunidade. Se isso acontecesse, a União ficaria reduzida a ser simples arena de concertação de interesses egoístas dos seus membros, correndo o risco de, com o tempo, bloquear, como aconteceu com outras organizações internacionais. Inversamente, ao abrir-se ao desafio do alargamento, a União assegurará a sua viabilidade e o seu futuro, mesmo que isso implique ultrapassar obstáculos consideráveis.
Essa dinâmica reformista – cuja discussão já começou e se vai acelerar com as eleições para o Parlamento Europeu – implica decidir, entre outras questões, acerca dos novos mecanismos de votação e construção de consensos, de um novo orçamento plurianual e de uma nova política externa e de defesa. Mas implica, também, alterar o modo como se encara o próprio processo de alargamento, a sua natureza e a sua ambição. Em 2004, o alargamento Big Bang foi visto como um mecanismo de europeização em larga escala dos países que iam ser admitidos. Vinte anos mais tarde, o alargamento exige um fôlego superior: não pode ser apenas um exercício de aplicação meticulosa dos critérios de Copenhaga. Tem de ter a ambição, como afirmou a ministra dos negócios estrangeiros alemã, de ser uma via para assegurar uma Europa estável e segura de «Lisboa a Lugansk». Dito de outra maneira, tem de ser capaz de reforçar a Europa enquanto ator geopolítico.
Alargamento geopolítico
Trata-se de uma tarefa muito exigente. Entre os principais desafios que lhe estão associados, três merecem destaque: um, assegurar o apoio dos países membros; dois, evitar criar expectativas irrealistas; e três, não ficar dependente do final da guerra. O primeiro prende-se com os custos internos do alargamento, de que os países membros já começaram a dar sinal. A Comissão e os países do Sul da Europa assistiram com pasmo ao bloqueio, pela Polónia, a Eslováquia, a Hungria e a Roménia, de importações de cereais e outros produtos agrícolas da Ucrânia. Afinal alguns destes países eram tidos como estando na linha da frente da causa ucraniana. Algo semelhante acontecerá quando se discutir a repartição dos fundos europeus e, nessa altura, Portugal estará, certamente, entre os países descontentes. De facto, ainda não é claro até que ponto os Estados-Membros estarão dispostos a abdicar das suas vantagens económicas para acolher aquele que será o membro maior e mais pobre da União. Seria bom que se explicasse às opiniões públicas nacionais tudo o que está em causa.
O segundo desafio prende-se com a necessidade de os líderes ucranianos não criarem expectativas desajustadas no que toca à celeridade e à exigência da adesão. Caso contrário, o entusiasmo dos ucranianos pode dar lugar a desilusão e ressentimento. É o que está a começar a acontecer nos Balcãs Ocidentais, que há 20 anos esperam ser admitidos, e o que se verificou na Turquia, que pediu o estatuto de candidato em 1987, com as consequências conhecidas.
Todavia, o maior desafio é o terceiro, que decorre de não se saber quando e como acabará a guerra na Ucrânia. É verdade que quando esta for admitida, deixará de existir um Estado tampão entre o resto da Europa e a Federação Russa e que isso agudizará naturalmente as vulnerabilidades estratégicas do continente. Como tal, muitos gostariam que a Ucrânia entrasse previamente na NATO, como aconteceu aquando do alargamento de 2004. Ora, de acordo com a declaração da Cimeira de Vilnius, de julho passado, não parece provável que isso aconteça. Os Estados Unidos, em particular, não estão nada interessados num conflito direto com a Rússia. Outros gostariam que Kiev assinasse um acordo de paz permanente com Moscovo, antes de aderir à UE. Trata-se, contudo, de um cenário que parece altamente improvável, uma vez que Putin não mostrou disponibilidade para uma negociação justa.
Resta à UE aceitar que o caminho para a admissão da Ucrânia se fará com esta ainda sob ataque russo e sem a proteção da NATO. Isso significa que os países membros têm de definir um modo credível de assegurar a defesa de Kiev, tanto durante o processo de adesão, que durará o tempo que for necessário, como depois de se tornar membro. Idealmente, isto deveria ser feito em parceria com Washington. Mas, para já, a dinâmica da política interna norte-americana não oferece muitas esperanças a esse respeito.
Continuar a evitar estes desafios e, em vez disso, esperar por milagres, significa faltar às promessas feitas à Ucrânia e, mais importante ainda, comprometer o próprio projeto europeu. Ao contrário, incorporar a Ucrânia na Europa, não só comprovará a relevância global da UE, como também impelirá Moscovo a aceitar uma paz duradoura. O que não é pouca coisa.