Quatro notas sobre o conflito no Médio Oriente
O drama humanitário
A primeira nota é sobre a evidência do drama humanitário. Não sendo um problema de agora, o profundo agravamento da situação socioeconómica em que vivem as populações um pouco por toda a região, incluindo na Cisjordânia e, sobretudo, em Gaza, parece ter despertado por fim a atenção da comunidade internacional.
Em particular, no último caso, os números impressionam muitíssimo: 41.431 mortos, 95.818 feridos e 1.9 milhões de desalojados, de uma população estimada em 2.2 milhões de habitantes. Num contexto em que cerca de 70% da edificação existente foi destruída – incluindo infraestruturas básicas, escolas e hospitais – as condições de vida tornaram-se inumanas.
Por estes dias, os palestinianos têm de lutar diariamente por água, comida, medicamentos e abrigo, podendo confiar apenas na ajuda internacional que vê dificultado o seu acesso e demora a chegar. A situação é insustentável e responsabiliza não apenas Israel, como alguns dos países vizinhos e a comunidade internacional que, durante anos a fio, estiveram convencidos de que era possível manter o status quo e adiar uma solução política definitiva para o povo da Palestina.
Daí o desconforto, que não desaparece, apesar do coro geral de indignação e de denúncia de violações do direito humanitário. É inegável que não haverá estabilidade no Médio Oriente enquanto a Palestina não tiver um horizonte político próprio. Mas também é certo que, neste ponto, as responsabilidades recaem não apenas sobre Israel, como sobre uma boa parte dos países da região e a comunidade internacional em geral. Não há inocentes. Durante muitos anos foi mais fácil olhar para o lado. Agora isso deixou de ser possível.
Os palestinianos
A segunda nota é sobre os palestinianos. E aqui é necessário começar por afirmar, de modo claro, o que tantos omitem: da OLP ao Hamas, passando pela Autoridade Palestiniana, o monopólio do poder político e o conforto económico dos seus respetivos líderes sempre se sobrepuseram ao bem-estar das populações que dizem representar.
Acresce que a escolha em favor da luta armada e do terrorismo foram fatores determinantes na situação dramática em que se encontram as populações palestinianas na atualidade.
Claro que há diferenças evidentes entre estas organizações. A cultura do martírio incentivada pelo Hamas, por exemplo, em nada se assemelha à passividade corrompida da Autoridade Palestiniana. No entanto, apesar de uma grande parte dos palestinianos – muitos dos quais na diáspora – quererem ser representados por organizações de terceira via, mais moderadas, tanto o Hamas como a Autoridade Palestiniana têm constantemente impossibilitado que isso aconteça.
Por isso, é preciso reconhecer que grande parte do ónus da impossibilidade de se equacionar um futuro político razoável para os palestinianos, reside nas suas próprias lideranças e no modo como estas os têm conduzido. É tempo de se deixarem representar por outros interlocutores, que levem a via negocial a sério, e apresentem um plano credível e realista que possibilite um futuro político sustentável para o povo massacrado.
Israel
A terceira nota é sobre Israel. Apesar de a sociedade israelita continuar dividida do ponto de vista político e na prioridade a dar à libertação dos cerca de 100 reféns ainda em cativeiro, o consenso popular em relação à necessidade de eliminar a capacidade militar do Hamas e do Hezbollah nunca foi tão forte.
Também o apoio dos israelitas às suas tropas (IDF), às forças de segurança e aos serviços de informações, tem vindo a crescer. Afinal, estas têm sido responsáveis quer pela bem-sucedida campanha militar que aniquilou virtualmente o Hamas, quer pelas sofisticadas operações que decapitaram o Hezbollah e limitaram enormemente a sua capacidade operativa.
Neste momento, as milícias destes dois movimentos já não representam uma ameaça existencial para a sociedade israelita, o que não é pouco se pensarmos no trauma profundo operado pelos ataques do 7 de Outubro.
Claro que também isto explica porque é que o governo de Israel não quer abandonar a abordagem mais dura na defesa da sua segurança nacional. Sentindo-se fortalecido com as vitórias alcançadas, e sabendo como estas também concorrem para a sua própria sobrevivência política, o primeiro-ministro e os responsáveis da coligação partidária que sustenta o executivo insistem em manter a rota deste curso implacável. Acresce que a sua tolerância para com as ameaças que fustigam o país é agora praticamente inexistente.
O governo de Netanyahu vê-se fortalecido e sente-se mais ousado. Resta saber como correrá a operação em curso no Líbano e como resultará a escalada de confronto cada vez menos cautelosa com o Irão e os seus outros proxies. Muito está, portanto, ainda em aberto. Não obstante, uma coisa já é certa: nos próximos longos anos, Israel nunca mais se deixará colocar na situação de vulnerabilidade em que estava no Outono de 2023.
Os aliados de Israel
A quarta e última nota é sobre os aliados de Israel. Sim, não há como negar que, desde a sua fundação, nunca a reputação de Israel esteve tão baixa junto dos países ocidentais como neste momento. Por boas razões, o mundo ocidental detesta a guerra, bem como os seus custos colaterais (materiais e humanitários), que vê como sinais de barbárie.
Olha, portanto, horrorizado para o que se passa naquela região e insiste em que a diplomacia e a negociação são as únicas ferramentas legitimas para estabilizar a situação. Mas ao fazê-lo esquece que para Israel é impossível aceitar como interlocutores grupos terroristas dispostos a tudo, inclusive a usar os seus próprios civis como escudos humanos.
De facto, nos últimos meses, um certo desfasamento cognitivo tem atormentado as relações entre os Estados Unidos e Israel. Agravados pela dinâmica das eleições presidenciais, são notórios o cansaço e a frustração da administração Biden, embora seja importante sublinhar que os desajustes públicos entre ambos os executivos obscurecem o que, afinal, tem sido um apoio americano sem paralelo a Israel.
Ainda sobre este ponto, e paradoxalmente, são os países árabes mais moderados da região que melhor têm compreendido a situação de Israel. Por isso, e para lá da sua retórica mais crítica para consumo da rua árabe, esses países têm colaborado com Israel quando necessário, inclusive participando ativamente na coligação liderada pelos Estados Unidos que impediu que os dois ataques diretos do Irão a Israel tivessem efeito.
De facto, habituados a verem a suas sociedades e as suas vidas políticas ameaçadas por movimentos radicais e terroristas, as autoridades árabes sabem bem que Israel não pode contemporizar com aqueles.
Por tudo isto e muito mais, a situação no Médio Oriente continua bastante complexa e extremamente volátil. Às vezes, porém, é preciso que tudo seja questionado, para se conseguir alcançar o chão firme que permite avançar. Esperemos que seja precisamente isso que esteja a acontecer naquela região tão sofrida.