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Imagem de uma israelita em oração sob um céu de trovoada

Nada será como antes no Médio Oriente

O ataque do Hamas a Israel desencadeou um «terramoto de magnitude ainda difícil de avaliar, numa das zonas mais instáveis do globo», escreve neste artigo a professora e investigadora Lívia Franco. A comunidade internacional tem grandes desafios pela frente. O primeiro é o de «impedir um massacre mútuo».
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Não se trata de mais uma ronda de confrontos armados israelo-palestinianos. Não se trata, tão pouco, de outra crise resultante da captura de um punhado de reféns. Não se trata, ainda, de nova erupção de protestos na Faixa de Gaza. Trata-se de um terramoto securitário de magnitude ainda difícil de avaliar, numa das zonas mais instáveis do globo.
A 7 de Outubro o ataque multifacetado do braço armado do Hamas às populações de Israel fez colapsar o frágil status quo da região.

 

Nunca na sua curta história o pequeno país do Médio Oriente, estabelecido em 1948, sofrera uma agressão que o apanhasse tão desprevenido e atingisse de modo tão bárbaro os seus cidadãos.

O número de vítimas mortais, feridos, prisioneiros de guerra e civis israelitas raptados não tem precedentes e o nível de brutalidade usado pelos operacionais do movimento palestiniano, ainda por apurar em toda a sua extensão, é inédito.

Em estado de choque, Israel tem procurado encontrar noutros episódios um meio de comparação com o que está a viver: um novo Yom Kippur como o de há 50 anos? Um 11 de Setembro como o vivido pelos EUA em 2001? Nenhum parece ser suficiente para traduzir o real impacto deste ataque, que teve deliberadamente como alvos principais cidadãos comuns nas circunstâncias banais da sua vida quotidiana e não militares em contexto de beligerância.

Um dado é, todavia, certo: nunca o país se sentiu tão vulnerável e tão inseguro quanto agora. E isso não é de somenos numa nação que, rodeada de Estados hostis ou pouco amistosos, tinha um evidente orgulho na sua capacidade defensiva e na competência dos seus serviços de intelligence. Excesso de confiança? Complacência? Réplica das graves tensões internas decorrentes da reforma judicial em curso? Ainda é muito cedo para fazer diagnósticos do que falhou e apurar responsabilidades sobre a incapacidade de Israel para prevenir ou reagir atempadamente ao ataque.

O que falhou em Israel? Excesso de confiança? Complacência? Réplica das graves tensões internas decorrentes da reforma judicial em curso? Ainda é cedo para apurar responsabilidades sobre a incapacidade do país para prevenir ou reagir atempadamente ao ataque do Hamas.

Mas o que é o Hamas? E como foi possível que levasse a cabo uma operação desta envergadura?

O movimento palestiniano sunita, formalizado em 1987 no contexto da primeira Intifada, propõe-se fazer desaparecer o Estado de Israel da face da Terra. Opondo-se à solução dos dois Estados consagrada nos Acordos de Oslo (1993), desde 2007 que domina Gaza, de onde expulsou com violência a Autoridade Palestiniana e radicalizou uma parte considerável da população.

Nessa pequena faixa territorial, situada no sul de Israel junto à fronteira com o Egipto, foi-se enraizando no tecido comunitário, construindo centros de comando, oficinas, depósitos de armas e uma complexa rede de túneis subterrâneos, a coberto das casas, hospitais, escolas e do pequeno comércio dos seus habitantes.

Ao longo desses anos, nos confrontos entre o braço armado do Hamas – as Brigadas Al-Qasam – e as forças israelitas, as populações aí residentes serviram constantemente de escudo humano. Não admira, portanto, que os Estados Unidos, a União Europeia, o Reino Unido, a Austrália, o Japão, e outros países, incluíssem este movimento na lista negra das organizações terroristas.

Ao longo desses anos, nos confrontos entre o braço armado do Hamas – as Brigadas Al-Qasam – e as forças israelitas, as populações residentes em Gaza serviram constantemente de escudo humano

Todavia, para perceber como conseguiu o Hamas colocar Israel nesta situação de enorme fragilidade é necessário analisar o xadrez geopolítico que é o Médio Oriente.

As suas fronteiras são recentes e resultaram principalmente de critérios de racionalização administrativa, de interesses económicos e da força das armas, e não propriamente de sentimentos nacionais ou da observância estrita de considerandos étnicos e religiosos. Daí resultou que o seu mapa político moderno seja bastante artificial e muito contestado nas fronteiras que estabelece.

Mas para a compreensão das suas instáveis dinâmicas, devem-se juntar a estas divisões político-territoriais outras duas importantes linhas de fratura.

A primeira, manifesta-se no protagonismo naquela região maioritariamente árabe de duas comunidades não-árabes: os judeus em Israel e os persas no Irão. A segunda, decorre da velha cisão interna ao Islão entre sunitas e xiitas, que em termos de balança regional se materializa nos dois polos arquirrivais que são a Arábia Saudita e o Irão.

Da guerra na Síria à contínua instabilidade no Líbano, passando pela difícil reconstrução do Iraque ou pela pressão migratória na Jordânia e a crise humanitária no Iémen, e pelo sempiterno conflito israelo-palestiniano, a vida naquela zona só se torna inteligível à luz destas grandes demarcações.

Acontece, porém, que se muitas vezes estas linhas entram em choque, por vezes elas também se sobrepõem, originando contradições flagrantes.

O caso do apoio ao Hamas ilustra bem a complexidade dessa situação. Apesar de ser um movimento sunita, tem vindo a receber apoio técnico, militar e financeiro da Força Quds, uma unidade especial da Guarda Revolucionária Islâmica que responde diretamente ao líder supremo do Irão, Ali Khamenei. Nas últimas décadas, a Quds tem sustentado uma rede de movimentos revolucionários islâmicos na região do grande Médio Oriente, que se auto-intitula o Eixo da Resistência, e inclui, para além do Hamas, o Movimento da Jihad Islâmica também na Palestina, os Houthis no Iémen e as milícias xiitas no Iraque, na Síria e no Afeganistão.

Para perceber como conseguiu o Hamas colocar Israel nesta situação de enorme fragilidade é necessário analisar o xadrez geopolítico que é o Médio Oriente

Todos eles servem, como é óbvio, de ponta de lança dos interesses iranianos nos territórios onde operam. No conjunto destes movimentos, porém, aquele que tem uma ligação mais umbilical a Teerão é, sem dúvida, o movimento Hezbollah (xiita) no Líbano. As ligações entre o Hamas e o Hezbollah são próximas, servindo este de modelo e inspiração para aquele. Aliás, em Beirute não foram tímidas as celebrações ao ataque a Israel.

Acresce que o Hamas tem vindo igualmente a receber financiamento do Catar (onde se situa a sua cúpula política) e de individualidades sauditas em nome próprio. Temos assim este movimento a ser apoiado ao mesmo tempo por xiitas e sunitas, pelo Irão e pelas monarquias do Golfo Pérsico, tendo ainda bons contactos no Egipto e na Turquia.

Convém, contudo, sublinhar que o Hamas não tem o monopólio da representação da causa palestiniana, muito longe disso, e que os palestinianos razoáveis e moderados rejeitam as suas táticas terroristas semelhantes às da Al-Qaeda e do Estado Islâmico.

Outro exemplo que atesta o imbricamento dos interesses em jogo é a crescente disponibilidade dos governos árabes para normalizarem a suas relações diplomáticas com Israel.

Com os Acordos de Camp David (1979) o Egito estabeleceu o precedente, seguindo-se a Jordânia (1994), e mais recentemente os Emirados Árabes Unidos, o Bahrein, Marrocos e o Sudão com os Pactos de Abraão (2020-21).

Mas mais importante, são as recentes negociações entre a grande potência que é a Arábia Saudita e o Estado de Israel, para um tratado desse tipo. O potencial que este tem para alterar profundamente a situação geopolítica da zona é evidente.

Acontece que todos os acordos ignoram a questão da palestina, no pressuposto de que é possível contornar ou conter a situação em Gaza e na Cisjordânia. Essa convicção foi desmentida pelos recentes acontecimentos.

 
O apoio ao Hamas ilustra bem a complexidade da situação: tem sido apoiado ao mesmo tempo por xiitas e sunitas, pelo Irão e pelas monarquias do Golfo Pérsico, tendo ainda bons contactos no Egipto e na Turquia.

O ataque do Hamas veio relembrar, com enorme sobressalto, como nada naquela região é simples ou direto.

Por um lado, e como se viu na reação das ruas dos países islâmicos ou com significativas comunidades deste tipo um pouco por todo o mundo, a causa palestiniana continua a ter grande eco popular, a tal ponto que parece por vezes legitimar a via terrorista. O que é errado e perigoso.

Por outro, o impacto do ataque levado a cabo pelo Hamas foi sentido de tal maneira nos países da zona que, em poucos dias, se tornou evidente a necessidade das suas relações voltarem a ser balanceadas por um fiel da agulha moderador. O que nunca será fácil.

Apesar de estar a aumentar, a influência da China ainda não é suficiente para fiscalizar o equilíbrio dessa região. A Rússia, apesar de se manter ativa na Síria, está sobretudo ocupada com a guerra na Ucrânia e não tem disponibilidade nem recursos. Restam os Estados Unidos, que nos últimos anos tinham acreditado ser possível diminuir drasticamente a sua presença e influência naquela parte do mundo. As circunstâncias parecem ditar que este país reveja a sua posição.

Como impedir então a iminente escalada da situação dentro de Israel? Como prevenir o contágio regional da violência? Os próximos tempos vão ser fulcrais na determinação das respostas a estas perguntas.

No entanto, no meio da perigosa volatilidade que se voltou a instalar na zona, três desafios são já certos para a comunidade internacional: um, que é prioritário impedir um massacre mútuo; dois, que é preciso voltar a ter uma estratégia de estabilização para o Médio Oriente que vá além da reposição do status quo ante; e, por fim, que é urgente voltar a ter uma política que dê resposta ao terrorismo e às suas ligações transnacionais. Avizinham-se tempos muito difíceis.

 

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