A obra Museus de Lisboa, embora ofereça uma lista dos museus da capital, não pretende ser um guia, no sentido tradicional da palavra, e acaba por ser um convite para acompanharmos a autora e conhecermos uma realidade, em muitos casos e por vários motivos, desconhecida.
1. Há curiosidades que, só por si, valem um livro. No caso de Museus de Lisboa, da autoria da medievalista Covadonga Valdaliso, são fortes candidatos o crânio do crocodilo que andou por Chelas há doze milhões de anos (Museu Geológico); o túmulo do rei D. Fernando que, a certa altura, foi usado como bebedouro para cavalos (Museu Arqueológico do Carmo); o pudor do rei D. Manuel II que terá levado o pintor José Malhoa a apagar as tatuagens que Adelaide da Facada, a personagem feminina de O Fado (1910), realmente exibia nos braços (Museu do Fado) ou a simples existência do Museu Municipal da Vida Submarina e da História Submersa.
2. Todavia, a obra Museus de Lisboa não fica por aqui. Embora ofereça uma lista dos museus da capital, não pretende ser um guia, no sentido tradicional da palavra, e acaba por ser um convite para acompanharmos a autora e conhecermos uma realidade, em muitos casos e por vários motivos, desconhecida. A autora tenta, informalmente, descobrir as razões de tal desconhecimento. Por que motivo os museus não são parte do quotidiano da maioria dos lisboetas? As razões parecem oscilar entre o preço dos bilhetes e os horários praticados: "alguns museus não abrem durante o fim de semana, que outros encerram aos sábados ou aos domingos, e que quase todos estão fechados a partir das seis da tarde [...]".
3. Na sua maioria, os entrevistados por Covadonga Valdaliso julgam conhecer poucos museus e muitas das visitas que fazem dependem de actividades pontuais: cursos, colóquios, concertos, apresentações de livros ou exposições temporárias. O seu perfil sociológico (residentes no centro da cidade, com mais de 35 anos, com estudos universitários e profissões ligadas à cultura mas não aos museus) parece condená-los a lamentar esse alheamento. Desmontados alguns argumentos (afinal, os ingressos nos museus não são mais caros do que um bilhete de cinema) resta-nos uma resposta banal que radica, como foi observado por Marcel Proust, na preguiça humana. Isto é, não obstante a fragilidade da vida, que pode terminar a qualquer instante, a maioria de nós adia indefinidamente alguns dos sonhos e projectos mais acarinhados. Quer eles sejam declarar-nos à pessoa amada, viajar até à Índia ou visitar as novas galerias do Louvre. Provavelmente, a razão pela qual não visitamos o Museu Nacional do Azulejo ou a Casa-Museu Doutor Anastácio Gonçalves é a irrealista convicção de que dispomos de todo o tempo do mundo para o fazer. Vivendo em Lisboa, e imaginando-nos imortais, supomos que teremos inúmeras oportunidades de atravessar as suas portas. O mesmo não acontece em Madrid, Paris ou Londres. Aqueles que de nós conseguem usar parte dos seus 22 dias de férias num destes destinos, tende a considerá-los dificilmente repetíveis e corre, em conformidade, ao Prado, ao Louvre e à National Gallery.
4. Curiosamente, em Museus de Lisboa há ausências conspícuas: não só o visitante residente mas também o visitante turista. Mas, se não estão nos monumentos, museus e palácios de Lisboa (com excepção do Mosteiro dos Jerónimos, da Torre de Belém e do Museu dos Coches) onde estão os turistas? Bem, estão por toda a parte. Obliquamente, Covadonga Valdaliso diz-nos que é "inevitável sentir saudades dessa Lisboa vazia e sossegada que o viajante de Saramago descreve" na sua Viagem a Portugal (1981). Uma Lisboa onde "não deve ter encontrado filas de turistas à frente das bilheteiras, ou levados por um guia autolicenciado de regresso ao cruzeiro". Em The Secret Lives of Buildings, Edward Hollis recorre ao hotel The Venetian para discutir, simultaneamente, o turismo em Las Vegas e em Veneza, citando Guy Debord: "toda a vida das sociedades nas quais reinam as condições modernas de produção se anuncia como uma imensa acumulação de espectáculos. Tudo o que era directamente vivido se afastou numa representação" (A Sociedade do Espectáculo). Os números apontados por Hollis dão que pensar. Os residentes permanentes em Veneza são uma pequena porção dos 11 milhões de pessoas que visitam a cidade todos os anos. Em 1950, Veneza tinha 150.000 habitantes; em 2008, eram apenas 58.000. Tal como em Lisboa, as pessoas não têm como ficar: muitos apartamentos foram transformados em apartamentos turísticos e os restantes duplicaram ou triplicaram os preços. Os moradores partem para os subúrbios onde a habitação é mais barata e o espaço não foi musealizado. Antes da pandemia de Covid-19 era fácil observar, tal como em Veneza, navios de cruzeiro atracados, não numa lagoa do Adriático, mas no estuário do Tejo.
5. Museus de Lisboa não aborda directamente a questão do turismo de massas mas pergunta o que de melhor pode acontecer a um museu: "ser constantemente, e até massivamente, visitado ou subsistir apenas sem visitantes?" A reboque da coleira de escravo de Saramago ("Cá está a coleira", começa o capítulo dedicado a Lisboa de Viagem a Portugal), a autora alude a uma recente polémica e afirma, numa das mais interessantes páginas do seu livro, que "se a coleira da Torre dos Lafetás fosse levada para essa sala imaginada por Saramago e ao redor dela se construísse um espaço museológico destinado a narrar a história da escravatura, ou das diásporas africanas, ou da presença de afrodescendentes nas Lisboas do passado, vários museus da cidade poderiam emprestar peças para a exposição".
6. O livro é eminentemente solitário, provavelmente uma condição necessária à observação silenciosa dos espaços museológicos e à reflexão subsequente. Nas suas páginas são nomeados mais de 70 museus e muitas ideias que merecem atenção. Deixo aqui apenas duas. Após uma visita ao Museu do Oriente e ao Museu do Centro Cultural e Científico de Macau, a autora conclui que há "museus que preservam o que no passado se decidiu preservar e que outros foram criados para que, no futuro, o que agora se escolheu seja preservado". Esta incursão na posteridade introduz necessariamente responsabilidades cívicas, culturais e estéticas, mas também políticas que convém não subestimar. Noutro momento, e depois de nos contar que as estátuas de D. José e do marquês de Pombal ocupam, em diferentes formatos e tamanhos, vários espaços do Museu Militar e do Museu da Cidade, Covadonga Valdaliso remata que "o legado dos construtores da metrópole, dos fazedores da capital, daqueles que criaram a substância que dá forma aos alfacinhas de gema, está nas salas dos museus. Portanto, penso que quem realmente queira conhecer Lisboa, as verdadeiras entranhas da cidade, os seus mistérios por desvendar e os que sempre permanecerão ocultos, deverá frequentar os seus museus". Nesta acepção, os museus são armazéns, oficinas, gabinetes de curiosidades onde se guardam plantas, maquetes, ensaios e alternativas, cidades pretéritas mas também cidades futuras que poderiam ter existido sob outras personagens e outras circunstâncias.