Há uma aceitação global da virtude da democracia
Muito democraticamente, o dissídio estava instalado. Todos tínhamos inúmeras perguntas a fazer. Mas ninguém sabia ao certo por onde começar, ou como ordenar tantas perguntas através de um número contado de temas que desse coerência a um debate que deveria ter a duração de algumas horas.
Quando, há largos meses, a Fundação Francisco Manuel dos Santos nos pediu que organizássemos um grande Encontro dedicado à Democracia (nada mais nada menos), a ter lugar num só dia, de preferência no Outono deste ano, a primeira dificuldade que enfrentámos foi a de definir um ponto de partida comum, que fosse partilhado por todos nós, e que servisse de mote à organização do Encontro. Muito democraticamente, o dissídio estava instalado. Todos tínhamos inúmeras perguntas a fazer. Mas ninguém sabia ao certo por onde começar, ou como ordenar tantas perguntas através de um número contado de temas que desse coerência a um debate que deveria ter a duração de algumas horas. A escolha dos conferencistas estava dependente de um acordo prévio, sempre difícil de alcançar quando se juntam várias pessoas (e o Conselho Científico que preparou esta programa contava com uma dúzia) com olhares muito diferentes sobre as coisas. Nada que não saibamos, pela experiência, quando se delibera democraticamente. Tínhamos, pois, muitas perguntas. Acordo quanto a temas, ou quanto a perspectivas, tínhamos pouco ou nada.
Até que concluímos que assim era por causa daquilo a que chamámos, talvez um pouco pomposamente, o «paradoxo dos nossos tempos». Nunca, como antes, a democracia teve aceitação tão generalizada quanto tem hoje. A maior parte dos Estados do Globo diz-se, de uma maneira ou de outra, democrática. Mas, paradoxalmente, esta aceitação da virtude universal da Democracia não trouxe nem paz, nem segurança, nem certeza. A insatisfação das pessoas relativamente às instituições que as governam cresce – na Europa e no mundo.
Foi a verificação deste «paradoxo», comummente aceite, que nos levou logo a decidir que o Encontro deveria começar por uma conferência que tivesse como pergunta, justamente, a seguinte: porquê a Democracia ( e não qualquer outra coisa)? Podemos compreender por que razão os nossos contemporâneos a consideram em geral - não obstante todas as suas imperfeições - uma boa forma de governo? Esta, a primeira pergunta a colocar, na conferência de abertura. Foi o primeiro acordo que obtivemos. A seguir chegámos, muito naturalmente, a um outro. Decidimos que o Encontro deveria terminar com uma outra conferência, desta vez sobre o futuro. Será que pode manter-se a aceitação generalizada das virtudes comparadas da democracia ? Como irão evoluir as práticas democráticas? Esta a pergunta a fazer na sessão de encerramento.
Para a resposta à pergunta inicial (porquê a democracia) convidámos o Professor Ian Shapiro. Ian Shapiro é professor na Universidade de Yale e tem uma conhecida obra sobre os fundamentos dos regimes políticos e, em especial, sobre os fundamentos da democracia.
Para a resposta à pergunta final (para onde vai a democracia) convidámos um escritor, Mario Vargas Llosa, que dispensa apresentações. Fizemo-lo porque entendemos que o tema não é pertença de «experts», sejam eles filósofos, politólogos ou economistas. Diz respeito a todos e nessa medida é pertença de todos, e a literatura aborda-o com a profundidade que lhe é própria.
Resolvidas estas questões, concordámos também que por aqui se ficavam as conferências a proferir por uma pessoa só. Decidimos portanto que os restantes temas deveriam ser abordados polemicamente, de preferência através de conversas entre dois «oradores», chamemos-lhes assim, que tivessem sobre as coisas visões diferentes, se não mesmo opostas., conversas essas moderadas por quem conhecesse essas visões opostas.
O problema no entanto surgiu de novo. Que temas tratar polemicamente, segundo este «formato» adversarial?
Lembrámo-nos então de escolher como bússola aquilo a que chamámos o «léxico básico da democracia».
Toda a gente fala em democracia. E embora não haja acordo quanto ao que a palavra quer rigorosamente dizer, toda a gente a associa a outras palavras ou expressões que sempre a acompanham. Assim com a palavra «povo». A democracia é o poder ou o governo do povo. Assim com as palavras «representação», ou «representantes eleitos». Em democracia, o poder do povo é exercido pelos seus representantes, escolhidos através de eleição. Assim também com a ideia de «espaço público». Para que haja eleição entre diferentes possibilidades de representação, é necessário que a discussão e o dissídio – tão presente em democracia quanto na preparação do nosso Encontro – tenha um espaço livre de expressão e discussão, onde se formam as maiorias que permitem a deliberação. Assim, finalmente, com a ideia de igualdade e de justiça social. Um povo que se encontre tragicamente dividido por fracturas económicas e sociais injustas não é um sustentáculo são para a democracia.
Foi, portanto, a partir destes quatro elementos (povo, representação, maiorias e espaço público, justiça social) que organizámos as restantes sessões que compõem o Encontro. Para cada uma delas procurámos e escolhemos oradores com obra conhecida sobre o assunto em discussão. São eles que nos vão ajudar a reflectir.
Venha juntar-se ao debate: vale muito a pena.
Maria Lúcia Amaral, Vice-presidente do Tribunal Constitucional e Comissária do Encontro "Que democracia?"
O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor