«Há a expetativa de que, ainda este ano, existam hospitais totalmente operados por IA»
A IA pode ser útil para ajudar nos diagnósticos e tratamentos? Quais são as áreas médicas que podem beneficiar mais?
Não existe área da medicina que não seja profundamente influenciada pela IA. As áreas que mais rapidamente evoluíram nesta interdependência são aquelas que recorrem a imagem, como a radiologia, a análise de imagens de patologia, a oftalmologia, entre outras. Também as áreas cirúrgicas estão a evoluir rapidamente dada a precisão cirúrgica de robôs autónomos alavancados por inteligência artificial.
Como é que a IA pode ser usada, por exemplo, na prevenção de doenças?
A rapidez e alcance da IA associada ao facto de que a generalidade das pessoas utiliza dispositivos digitais, tal como os smartphones, faz com que a IA seja uma ferramenta extraordinariamente útil em saúde pública. Por exemplo, para entender a natureza de uma nova doença infeciosa, a tolerância ao tratamento, o modo como uma pandemia se pode espalhar na comunidade, o rastreio de contactos, ou mesmo no desenho de novas vacinas.
E de que forma é que a ida a uma consulta ou hospital vai mudar?
Irá mudar substancialmente a vários títulos. Por exemplo, a marcação de consultas, de meios auxiliares de diagnóstico ou a admissão hospitalar serão progressivamente efetuadas por robôs e consolas digitais interativas, tal como já acontece em alguns hospitais do mundo. Existe a expetativa de que, ainda este ano, existam hospitais totalmente operados por IA onde a participação humana, mesmo na consulta clínica, seja diminuta. O que será um enorme desafio para a medicina dada a natureza intrinsecamente humana da relação médico-doente.
Tendo em conta que neste momento já se usa IA na saúde, qual tem sido a sua principal função?
A medicina e a saúde pública estão progressivamente mais dependentes da IA e de outras tecnologias digitais, desde o modo como se realiza a consulta médica – que é já processada por IA –, à sugestão de diagnóstico diferencial de doenças, ou à proposta de tratamentos e de meios auxiliares de diagnóstico. Também o diagnóstico cirúrgico, por exemplo a biópsia de neoplasia da mama guiada por IA ou a cirurgia robótica de inúmeras doenças é já uma realidade.
Ou seja, em muitas operações já se usa robôs. Será o futuro para a maioria das cirurgias?
A cirurgia robótica é uma ferramenta indispensável na medicina do século XXI. Em alguns casos – na neurocirurgia, na neoplasia da mama ou da próstata, por exemplo – a cirurgia robótica guiada por IA poderá substituir o cirurgião transformando-se este num copiloto do robô cirúrgico. Em outros casos a robótica irá apenas coadjuvar os médicos na cirurgia de rotina, mais ou menos complexa. O futuro da maioria das cirurgias, de uma forma ou de outra, irá depender progressivamente da IA.
O que se prevê que mude nos próximos tempos com o recurso à IA?
É previsível uma substancial evolução a vários títulos. Por um lado, a IA na saúde vai alterar as condições de acessibilidade ao SNS dado que conjugada, por exemplo, com a telemedicina torna o acesso muito mais rápido e eficaz, contribuindo para a diminuição das listas de espera na saúde. Na prática clínica, os médicos ficarão mais disponíveis para atender os pacientes reservando-se a IA para as tarefas administrativas. Por seu turno, os doentes terão uma tendência crescente para consultar aplicações digitais de saúde estimulando-se assim o autocuidado. Será, também, uma ferramenta essencial para otimizar a gestão hospitalar, por exemplo no que respeita ao registo de saúde eletrónico ou à elaboração de escalas médicas que tanta preocupação tem dado aos portugueses. O caso da obstetrícia é paradigmático.
E a nível de investigação, qual será o impacto na IA?
A investigação biomédica irá evoluir muito rapidamente com a IA por vários motivos, desde logo a capacidade de processar dados, de os codificar e de consultar bases de dados primários através da IA generativa de que o ChatGPT é um bom exemplo. Ou pelo recurso a mecanização, através da robótica, o que permite uma mais rápida execução da ciência em laboratório. Porém, esta rápida evolução necessita de constante supervisão para assegurar que a humanidade consegue sempre entender os processos utilizados e monitorizar os resultados.
Haverá medicamentos novos mais rapidamente?
A vacina para a Covid-19 é um bom exemplo de como a IA pode ser uma ferramenta essencial para o desenvolvimento de novos fármacos, de grande qualidade, extraordinariamente úteis para a humanidade, e em tempo recorde. Ou seja, entramos em uma nova era da investigação biomédica, onde os limites são definidos pelos valores éticos das sociedades modernas e não pelas fronteiras tecnológicas que serão facilmente ultrapassadas. Por exemplo, a evolução da genómica para a proteómica, e todo o seu impacto na medicina e na genética, devem-se ao contributo indispensável da IA. Também a medicina de precisão está a evoluir rapidamente com a IA.
Disse publicamente que na sua opinião, «na saúde, em especial na medicina, a IA será disruptiva a vários níveis». O que isso significa? Significa que a medicina tem de estar especialmente atenta a vários aspetos, potencialmente incontroláveis da IA. Desde logo, a capacidade de a IA evoluir sem que o ser humano tenha controlo de essa evolução. Por este motivo a generalidade das declarações internacionais sugerem vivamente que o ser humano deve estar sempre «no controlo» isto é «in the loop». A grande disrupção surgiria se a inteligência artificial operando em rede, dentro e fora da saúde, controlasse de tal forma a vida em sociedade que a liberdade individual fosse uma miragem. Em particular na saúde esta falta de controlo e supervisão humanas seriam devastadoras.
Que riscos, resultantes dessa falta de controlo ou de outros fatores, o preocupam mais?
Um dos riscos é a possibilidade de os doentes passarem a confiar progressivamente na IA a ponto de esta se tornar preponderante na prática médica. Esta excessiva dependência da tecnologia, aliás já comprovada por vários estudos, pode implicar uma desumanização da saúde, sobretudo se os médicos não tiverem consciência de que é precisamente a dimensão humana o cerne da relação médico-doente.
E no meio de toda esta evolução da IA, como é que vai fica a questão da responsabilidade médica?
Na prática clínica a automatização de diferentes procedimentos médicos através da IA está a evoluir para uma fase em que o processo de tomada de decisão é progressivamente controlado pela IA, e não pelo médico ou outro profissional de saúde. Falando-se mesmo de «robôs médicos» ou de «médicos digitais». Uma questão que se coloca – e que ainda não tem resposta – é como determinar a responsabilidade de um ato médico que foi decidido essencialmente pela IA e não pelo médico. O sistema jurídico de responsabilidade médica, já hoje especialmente complexo, terá de abordar esta evolução o mais depressa possível.
Quais serão a nível ético os maiores desafios?
Os maiores desafios éticos prendem-se com o respeito pelos valores centrais da medicina. Por exemplo, o segredo médico é base milenar da prática médica e consta do juramento de Hipócrates. Como é que a IA, associada aos novos desenvolvimentos da computação quântica, respeita a privacidade dos doentes e protege eficazmente os seus dados? Desde logo tratando-se de dados sensíveis como são os de saúde. Outros desafios respeitam à autonomia dos doentes, ao consentimento informado, ao acesso à saúde, à equidade na partilha dos benefícios da IA, ou mesmo à proteção dos mais vulneráveis da sociedade, tal como os idosos ou as pessoas com deficiência.
Coordenou o Livro Branco sobre Ética e Inteligência Artificial. O que contém esse documento e qual a sua importância?
O Livro Branco sobre Ética e Inteligência Artificial do CNECV parte de um pressuposto: que na medicina e nas ciências da vida a IA evolui com extraordinária velocidade pelo que se trata de um Livro Branco que estará em constante reformulação, prevendo-se nova edição daqui a dois anos. Contém, ao dia de hoje, a análise ética e jurídica das principais implicações da IA na medicina e na saúde em geral, incluindo o impacto da IA na investigação científica.
O que, na sua opinião, é urgente legislar no país e no mundo?
É fundamental legislar na matéria. Não no sentido de restringir a evolução da IA, o que aliás seria uma impossibilidade, mas para apontar quais os principais riscos da sua utilização, e as linhas vermelhas que não devem ser ultrapassadas. E, também, para se promoverem os consensos internacionais que permitam a harmonização de práticas em diferentes culturas.
A EU tem legislação em curso sobre o tema?
A União Europeia deu um importante sinal ao mundo ao aprovar o AI Act, ou seja, o regulamento da EU sobre inteligência artificial. Trata-se da mais moderna legislação internacional na matéria, consentânea com a doutrina dos direitos humanos, e que deve servir de referencial para a legislação de todos países, desde logo aqueles que lideram a investigação em IA.
Segundo tem dito, um dos problemas «é a falta de explicabilidade da IA». Ou seja, a incapacidade de o ser humano entender o modo como a IA alcança determinadas conclusões…
É, porventura, o principal problema com o qual a medicina terá de se confrontar. Já hoje a mais brilhante mente humana não consegue acompanhar a rapidez da IA desde logo porque esta aprende a aprender. Ou seja, a IA evolui por si própria e o ser humano não consegue explicar o modo como os algoritmos chegam a determinadas conclusões. A explicabilidade da IA na medicina e na investigação é uma questão central que deve ser solucionada, para que a sociedade olhe com confiança para a inteligência artificial e para o seu impacto na saúde das pessoas.
Os médicos estão conscientes desse impacto da IA na medicina?
O que mais preocupa é que a medicina e os médicos não percebam a evolução em curso, quiçá mesmo uma revolução silenciosa, e não se adaptem em conformidade. Isto é, que não apostem na relação médico-doente como relação humana e profundamente ética. Se a medicina tiver esta perceção, então a inteligência artificial será uma fantástica ferramenta de auxílio à decisão médica e ao tratamento dos doentes.
Acredita que um dia os médicos e outros profissionais de saúde podem todos ser substituídos por robôs?
Quero crer que os doentes irão sempre necessitar de médicos e de outros profissionais de saúde, dada a natureza intersubjetiva das relações humanas, e porque ainda não se demonstrou que a IA possa vir a dispor de afetividade e de inteligência emocional. Porém, os médicos devem estar atentos a esta evolução e devem tudo fazer para apostar na relação clínica, humana e compassiva com os doentes.