Corrupção, um jogo de sombras
A corrupção é por certo um problema que nos acompanha em permanência. Desde logo porque nos últimos anos não tem havido praticamente dia nenhum em que não surja uma suspeição na capa de um qualquer jornal ou nas televisões. Depois, porque todas as instituições (públicas e privadas) estão naturalmente expostas a riscos de ocorrências desta natureza, quer porque cada função ofereça um quadro natural de possibilidades (oportunidades) para que tal suceda, quer porque integrem, nos seus quadros, profissionais menos íntegros.
Comecemos esta breve análise pela segunda das componentes indicadas. A componente organizacional.
Do ponto de vista dos objectivos de uma organização, a fraude e a corrupção assemelham-se e, por isso, o linguajar comum tende a reduzir tudo ao termo corrupção.
No essencial, o fenómeno. revela-se pelo incumprimento doloso das normas que “regulamentam” (de modo mais ou menos formal e claro) as funções próprias de cada um. Esse incumprimento traduz-se na satisfação egoísta dos interesses próprios ou de terceiros.
Mas há outra dimensão relevante associada ao fenómeno da fraude e da corrupção nas organizações: a racionalidade do agente. O agente, aquele que pratica o ato fraudulento (o defraudador) a fim de escapar aos riscos de ser objecto de suspeição e, correlativamente, de eventuais sanções punitivas, procurará adoptar os cuidados adequados à ocultação dos seus actos e à autoria dos mesmos.
Combinando a componente organizacional e a racionalidade do agente, pode-se pressupor com um elevado grau de razoabilidade (como tem sido demonstrado por diversos estudos) que as situações efectivas de fraude e corrupção numa organização tendem a ser mais do que as conhecidas instâncias de controlo. Trata-se de fenómenos com uma natureza tendencialmente oculta. Encontramos aqui a sua primeira grande sombra. Aquilo que deles se conhece é apenas a parte que, provavelmente, nem é a maior.
Olhemos agora para a componente mediática.
Ela diz-nos, com particular incidência nos últimos anos, que a cadência de casos de suspeição mediatizados tem vindo a aumentar. Mas nem todos os casos de suspeita de fraude e corrupção são objecto desta mediatização. Apenas determinados perfis de suspeição têm potencial para ser mediatizados.
Entre tais perfis assumem particular relevância as situações que envolvem os grandes negócios e decisões de gestão do Estado, no âmbito dos quais surgem destacadas figuras de vida política, económica e social, com são exemplo os casos mais recentes associados a ex-governantes, ex-presidentes de bancos, altas patentes militares, juízes, dirigentes dos maiores clubes de futebol nacional e outros, a que me referi recentemente em Ética e Integridade na Vida Pública - estará o Rei nu?
Mas, para lá desses denominados casos de “grande corrupção” ou de “corrupção política” existe um conjunto de outros casos de suspeição associados à denominada “pequena corrupção” ou “corrupção administrativa”, sem o mesmo potencial de exploração mediática, dado o recorte das funções que em regra estão em causa e, sobretudo, o perfil dos suspeitos nelas envolvidos, que não são suficientemente apelativos para suscitar a curiosidade social.
E esta selecção das situações com maior ou menor exposição mediáticaacaba naturalmente por produzir impactos diferenciadores na forma como a sociedade e os cidadãos em geral percepcionam o problema. E como, a partir desses sinais, edificam uma visão generalizada sobre o fenómeno.
Os estudos que a este propósito da percepção social da corrupção têm sido realizados em termos internacionais pela Transparency International, sobretudo os designados barómetros da corrupção, bem como, a nível nacional, o projecto Corrupção Política nos Média: uma perspectiva comparada - Portugal, Brasil e Moçambique, no qual colaborei, têm revelado sistematicamente um conjunto de sinais que evidenciam que, aos olhos do cidadão comum, a corrupção está associada sobretudo às classes política e económica e aos grandes negócios e projectos do Estado; que o problema vai aumentar no futuro, o que não deixa de traduzir sinais preocupantes de alguma descrença social; e que as instâncias da justiça não revelam capacidade para executar adequadamente a sua função de controlo e punição das situações que são detectadas. Este é outro sinal para preocupação profunda, associado a sentimentos de impunidade e de descrédito relativamente a um dos pilares fundamentais de qualquer sociedade, que é a Justiça.
O sentimento de impunidade pode ser particularmente perverso na medida em que concorra para um eventual incremento do número de ocorrências efectivas de fraude e corrupção, por poder induzir, em potenciais novos defraudadores, uma menor inibição associada ao receio de detecção e punição.
Encontramos, assim,outra dimensão sombria sobre o fenómeno da corrupção: apenas uma parte das situações de suspeição identificadas chega ao conhecimento mais alargado dos cidadãos.
E é a partir dessa pequena amostra que se edifica o perfil da corrupção em Portugal. E será também muito baseada nela que as próprias instâncias de controlo acabam por analisar o problema e proceder a ajustes nas medidas reactivas, de controlo e prevenção, como por exemplo as que estão presentemente em discussão pública no âmbito da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção 2020-2024.
Efectivamente este jogo de sombras subsistente produz um muito provável enviesamento sobre pelo menos algumas das características do fenómeno em Portugal. Nem o Ministério Público e os seus Magistrados, titulares da acção penal, nem os inspectores da Polícia Judiciária, que os coadjuvam, nem sequer os Juízes, que julgam os casos que lhes chegam para julgamento, possuem uma visão de conjunto sobre o fenómeno. O máximo que conhecerão são os casos que trabalham e os dos colegas de departamento com quem trocam impressões. Mais nada!
E esta é a melhor visão de que o nosso país dispõe, em pleno século XXI, sobre um problema que se considera (e é!) de grande gravidade e para o qual importa proceder a melhorias e ajustes nos instrumentos de controlo, punição e prevenção.
O Observatório de Economia e Gestão de Fraude tem considerado uma necessidade de grande importância a realização de estudos analíticos com um carácter transversal sobre os procedimentos criminais por corrupção e infracções conexas em todo o território nacional, obedecendo a critérios metodologicamente válidos e objectivos, que não exponham indevidamente nada nem ninguém, para que se conheçam outros pormenores dos contextos institucionais de ocorrência da fraude e da corrupção. Isso permitirá a sua posterior utilização para melhoria das soluções de controlo do fenómeno, como vimos em Corrupção em Portugal - mapear para prevenir melhor.
Importa procurar ver, um pouco mais que seja, para lá do que este jogo de sombras nos tem mostrado e nos permite ver.
António João Maia é professor de ética no ISCSP/ULisboa, vice-presidente do Observatório de Economia e Gestão de Fraude e membro do Conselho de Prevenção da Corrupção.