![Imagem de um rebanho de cabras no concelho de São Brás de Alportel. Crédito: Ana Beatriz de Jesus](/sites/default/files/styles/header_image/public/2025-02/IMG_0047.JPG.webp?itok=yKJAM2Nx)
Ca(le)jados da Terra
Recentemente, a convite da Câmara Municipal de São Brás de Alportel (Algarve) fui atrás dos nossos pastores e dos seus rebanhos, no concelho, os verdadeiros ca(le)jados da terra, que contra todas as intempéries (faça chuva, faça sol) saem diariamente de casa com os seus animais. Hoje são eles que nos contam a sua história.
Ao longo do processo e de forma natural percebi o quão importante era registar a forma de falar dos nossos pastores, que foi sendo moldada ao longo dos tempos pela vida, pelo campo, pela solidão e que merece o nosso respeito e ser preservada.
![O pastor Manuel João Fortes, de Parises. Crédito: Ana Beatriz de Jesus](/sites/default/files/styles/media_medium_mobile/public/2025-02/ManuelJo%C3%A3oFortes_fundo_AnaBeatrizJesus.png.webp?itok=9RHKhGCd)
Manuel João Fortes 77 anos, Parises
«A minha vida tem sido uma vida de trabalho, uma vida marfada. Olhe a minha família. Quando eu nasci, 9 anos depois o meu pai morreu, fiquei só com a minha mãe, pronto a situação depois complica-se sempre, falta sempre, a falta de um pai é sempre uma grande falta.
Eu não tive muito tempo para brincar, eu depois de sair da escola, tive que ir guardar vacas para comprar uma...bom a malta nova toda da minha idade já todos tinham uma biciclete, eu para arranjar fui guardar umas vacas. Depois, desse dinheiro que eu recebi, comprei a tal bicicleta a pedal, para ir acompanhando as coisas.»
![O pastor Ricardo Anica 47 anos, Alportel. Crédito: Ana Beatriz de Jesus](/sites/default/files/styles/media_medium_mobile/public/2025-02/RicardoAnica_fundo_AnaBeatrizJesus.png.webp?itok=qm92fSeT)
Ricardo Anica 47 anos, Alportel
«Lembro-me que toda a vida o meu pai teve gado, já vinha do meu avô. Quando eu saía da escola vinha dar com o meu pai logo, comecei a andar com ele tinha 4 anos, eu tenho andado sempre com o gado.
Há muita gente que não gosta, mas eu gosto, sinto-me bem. Não sei o que é férias, é todos os dias, que chova que vento tem que ser todos os dias. Se não tiver cães, não dou conta delas, que elas começam a andar calaciando.»
Quando falámos do incêndio de 2012 e se isso o afetou: «Fui, andou à roda, que ardeu tudo à roda, consegui salvá-las que eu pus-as debaixo de telha pas guardar, que ardeu tudo à roda, que eu mais os meus irmãos, cuidaram no monte, naquilo tudo pa não arder nada. As pastagens foi quase tudo.»
![O pastor José Felício 74 anos, Carrascal. Crédito: Ana Beatriz de Jesus](/sites/default/files/styles/media_medium_mobile/public/2025-02/Jose%CC%81%20Feli%CC%81cio.jpg.webp?itok=Aevif7JT)
José Felício 74 anos, Carrascal
«Sou conhecido por Zé Marrinha, vem dos meus abisavós. Isto é já do meu avô, ele tinha cabras, tinha eu 13 anos quando ele ofereceu-me a última cabra que ele teve, depois tive sempre. Ainda cheguei a ir, no tempo que havia o mercado de Estoi, eu ir aí com o gado lá para o mercado, há mai de 30 anos. Era para vender, no tempo que faziam os mercados de gado, proibiram foi os gados.
Gosto mais das cabras, é o bicho mai bonito, a cabra junta-se e eu chamo e depois elas vêm, a cabra cria, tem mais cuidados com os filhos que certas pessoas, não há cão nenhum que se aproxime, que elas pa salvar as crias... A cabra pra mim é mais humilde e a maneira de tratar os bichos também manda.»
![O pastor João Pires (Rôla) 55 anos, Mesquita. Crédito: Ana Beatriz de Jesus](/sites/default/files/styles/media_medium_mobile/public/2025-02/Joa%CC%83o%20Pires%20%28Ro%CC%82la%29.jpeg.webp?itok=jY0us5HZ)
João Pires (Rôla) 55 anos, Mesquita
«Isto de ser pastor comecei logo desde pequeno, mas isto é um viço que nasce logo com a gente. Não havia ninguém na família pastor, isto é coisas que um gajo vai agravando na vida, gostar de animais. As brincadeiras era sempre andar com os pastores, foi por causa disso que isto aconteceu, depoi ah comecei com uma cabra ou duas ou três, e as depos fui trabalhar prás obras e adepois, eh o fim-de-semana andava sempre com eles.
Isto nãh é fácil... nem toda a gente tem esta coisa de tratar, pos claro. Atravessar estradas, tirar água, limpar currais, quando é o inverno tem de se limpar aquilo mai de 50 vezes, ficam todas enlameadas, depos uma tá coxa, depos outra trilha-se, ai mãe ai mãe ai mãe... Isto no inverno não há comida nenhuma, um gajo anda fugindo, se não for os cães ninguém dá conta disto, ando escalfado o dia enteiro. E tão quando elas parem aqui que um gajo tem que levar o borrego às costas? Se ela parir uma ainda escapa, agora quando pare duas ou três, ahah, não é boca doce. Elas eram 200 e tal cabeças, mas morreram umas quase 80 cabeças, com borregos e tudo, desde outubro até agora (maio). Quantas morrem com o veneno? Poh você bem viu lá no outro dia.»
![O pastor João Pedro 51 anos, Juncais. Crédito: Ana Beatriz de Jesus](/sites/default/files/styles/media_medium_mobile/public/2025-02/Joa%CC%83o%20Pedro.jpg.webp?itok=PAaJk15b)
João Pedro 51 anos, Juncais
«Isto dá vicio, quando andei emigrado e vinha cá e via passar os rebanhos parava logo para os ver, mas não podia sair do carro se não comprava-as logo. Tenho 65 cabras, são da raça algarvia e é o que eu gosto, mesmo o que é nosso. Esta raça se for preciso anda aí um dia inteiro ao calor, elas não gostam muito de chuva. Mas o Estado devia ajudar mais a gente, que isto tá quase a acabar.
Cuidados com as cabras é dar-lhes comida todos os dias e desparasitá-las todos os anos, domos três injeções todos os anos. Epah uma doença é agalaxia, é a mai perigosa, e é a brucelose, e é a basquilha, mas por enquanto tenho tado descansado. Agora vêm eles tirar sangue a todas, é um controle, se tiver alguma doente da brucelose levam-na, é todos os anos. Isto é uma grande despesa. A gente paga tudo, recebe um subsídio olha é taco a taco que é pra elas, é prós brincos, é pó chip que elas têm dentro da barriga, do bucho, metem um. E dantes chegavam aos nove anos, e agora chegam aos cinco, por isso aquilo nãh é bom, é um chip muita grande.»
![O pastor Manuel Vital Viegas 87 anos, Bengado. Crédito: Ana Beatriz de Jesus](/sites/default/files/styles/media_medium_mobile/public/2025-02/ManuelVital_fundo_AnaBeatrizjesus.png.webp?itok=k1PX52Ax)
Manuel Vital Viegas 87 anos, Bengado
«Andei por aí trabalhando no campo, fui pastor de cabras, uma remessa de anos, a vez que tive mais foi 120, era trabalhar bem nãh era? Era mesmo aqui que as tinha, agora acabi com essa porcaria há dois anos, pois um gajo já não pode, tem que arrear. Eu tou todo tramposo, a mulher ainda tá pior do que eu, pr’aqui vamos andando, arrumados um ao outro, até que Deus queira.
As cabras já o meu avô tinha, depois o meu pai também arranjou e depos eu fui atrás deles, eh arranji pr’aqui esta brincadeira. Com a lida que eu tinha aí com 120 cabras a matar chibos, ordenhar cabras e corria aí, ai mãe...nem eu me quero lembrar disso tãh pouco, ah era uma escalfa, não era só eu, era eu e a mulher, eramos os dois. Ah, queria eu ver essa malta nova que há aí fazer esse trabalho. Você já viu o que era eu passar o verão inteiro aí ao calor aí com as cabras aí? Aquilo só comiam bem era pelo calori, hein? Por causa da mosca que com o calor nãh se apoquentava.
A liberdade pra mim agora é o descanso, o maestro tá tudo podre, tenho só prali uma.»
![O pastor Aurélio Sousa 57 anos, Desbarato. Crédito: Ana Beatriz de Jesus](/sites/default/files/styles/media_medium_mobile/public/2025-02/Aur%C3%A9lioSousa_fundo_AnaBeatrizJesus.png.webp?itok=If6RpMPi)
Aurélio Sousa 57 anos, Desbarato
«Sou pastor, já tinha o vírus, o bichinho, aquela coisinha, ah isto éi uma entretenha qu’a pessoa tem. Ninguém dá valor a nada disto, e depois houve uma grande epidemia da brucelose e acabaram com os mercados todos, a gente agora o criador vai vender isto aonde? Conforme vou ganhando, vou comprando, vou investindo, eu nãh devo nada a ninguém. Ah a minha vida foi, sai daqui porque fui obrigado, tive qu’ir pa tropa e depos acabou-se, cá tou. Quando cheguei a casa a minha irmã ia casar, o meu pai tinha lá uns animais e a minha mãe disse-me: olha o teu pai ainda nãh chegou, vai lá ali buscar os borregos que é pa gente depois jantar, fui. Eiii vejo lá uma chibinha, quanto é que queres por aquela chibinha? Eu quero sete contos. Ah mas só posso 6 contos e 500 que eu 500 escudos é pa mim ir amanhã aí po trabalho. Foi o primeiro negócio logo que fiz, depoi fui ao mercado de Estói e comprei outra e assim olhe... Já vem de trás, os meus avózes, tanto faz dum lado como doutro tinham.»
![O pastor José Brígida, 64 anos, Peral. Crédito: Ana Beatriz de Jesus](/sites/default/files/styles/media_medium_mobile/public/2025-02/Jos%C3%A9Br%C3%ADgida_fundo_AnaBeatrizJesus.png.webp?itok=VL_MPdeP)
José Brígida 64 anos, Peral
«Isto tem um valor doido meninaaa, eh, ninguém sabe dar o valor disto, só pra quem gostaaa. Tão quem é que quer andar aí molhado o dia inteiro e mal comido e mal dormido? Eu pa dizer que fui muito solitário com o gado não, não porque a gente ajuntávamos rebanhos e tal, fazíamos almoços... mas pronto o que é que à noite tínhamos que ficar ao pé delas, ma nesse tempo não me fazia diferença porque eu nesse tempo era solteiro. Dormia aí acompanhado com o guarda-chuva e com os cãs, oh... Tão e depois em velhos a gente sofre, depois vêm as tais dores, tão claro. E depois as friezas q’eu apanhei com os tratores?»
Quando o questiono sobre os rendimentos: «pouco ou nada, olha agora tem sido uns anos que nãh tenho tirado nada, têm é morrido por causa dos venenos que eles poem.
Ah, mas os tratores e as cabras isso é uma paixão já desde criança, eu desde os 15 anos que ando com tratores, porque o meu primo tinha um trator, e eu ia lá e ora, toca de andar no trator, e depois oh, fui gostando daquilo, fui-me apaixonando pel’aquilo... e depois andávamos naquelas terras que aquilo era lavrar com aquelas ladeiras e depos aquilo dá vício.»