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Uma escola pobre para os “pobrezinhos”?

Uma escola pobre para os “pobrezinhos”?

Nesta terceira crónica, o professor Paulo Guinote não poupa críticas à ideia de que a educação a distância vai revolucionar o ensino e alerta para o acentuar das desigualdades entre alunos.
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Os dias seguintes ao anúncio da suspensão das aulas presenciais no Ensino Básico e Secundário foram marcados por uma enorme excitação por parte dos que de forma muito apressada quiseram anunciar que se poderia estar a abrir uma nova era para a Educação em Portugal.

Não faltaram expressões bastante desajustadas como as de a pandemia ser uma “oportunidade” para a renovação da Escola Pública ou o “empurrão necessário” para que a Educação entrasse em definitivo no século XXI.

Perante tamanho entusiasmo e voluntarismo, colocaram-se desde o início duas ordens de objecções ou avisos à navegação.

O primeiro foi relativo à necessidade de se ter cuidado em matéria de ciber-segurança e de o acesso pelos alunos a plataformas digitais de comunicação à distância não se fazer apressadamente e em força, sem a devida informação prévia (para alunos, mas também professores) e alguma pedagogia sobre o modo de as usar.

A passada semana terminou com a infeliz concretização de certos receios, com a divulgação de horas e datas de aulas com base em plataformas que já se sabia serem inseguras e permeáveis à acção de hackers de pequena-média competência.

Só muito tardiamente o Centro Nacional de Cibersegurança publicou recomendações específicas para prevenir estas situações. E mesmo essas são insuficientes.

A Comissão Nacional para a Protecção de Dados tinha feito recomendações alguns dias antes, mas boa parte delas foi ignorada pelos tecno-fanáticos ou por quem quis, logo na primeira semana do 3º período, apresentar-se como seguidor@ das prioridades da tutela.

O segundo sublinhou a evidência (já estudada em outras paragens) de o ensino a distância ser potenciador do aumento das desigualdades de acesso à Educação por parte dos alunos, por causa do chamado digital gap ou digital divide.

Os avanços científicos e tecnológicos podem trazer um mundo maravilhoso para a palma da mão, mas não de todos. Em relação ao ensino pejorativamente apresentado como “tradicional”, vão agravar muito as dificuldades pré-existentes dos mais desfavorecidos.
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A tecnologia permite ultrapassar distâncias físicas, há mesmo quem garanta que “democratiza” o acesso à informação e à expressão, mas já temos elementos mais do que suficientes para perceber que globalmente distende o tipo da base da sociedade.

Num estudo já com 15 anos Jan van Dijk estimava que com base em todas “as estatísticas disponíveis ainda há uma diferença de cerca de 50% entre os estratos social mais alto e mais baixo nos países mais desenvolvidos e que nesses países aproximadamente 25–30% da população total ainda não tem acesso doméstico a computadores e à Internet” (Jan van Dijk, Digital divide research, achievements and shortcomings in Poetics, 34, 2006, 221-235). (1)

Estes valores não sofreram alterações significativas desde então e afectam, em particular, as comunidades que, habitualmente, já são mais vulneráveis, dos espaços rurais a minorias étnicas (2). O homework gap torna-se ainda mais evidente. (3)

Em Portugal, as estimativas mais recentes apontam para um terço dos alunos sem os requisitos mínimos para acompanharem aulas a distância (4), em especial quando os pais estão em regime de tele-trabalho.
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A consciência do problema levou a que o governo decidisse, depois de vários anúncios desconexos, criar uma programação televisiva em canal de sinal aberto (RTP Memória) como forma de tentar assegurar uma universalidade de acesso a conteúdos educativos por parte dos alunos com maior défice de “capital digital”.

E apareceu o anúncio e depois a grelha de programação, com as lacunas que apontei a semana passada, e agora começaram a surgir alguns exemplos de “aulas” em canais criados no Youtube, bem como a grelha específica para esta semana e os respectivos materiais de apoio.

E alguns dos piores receios parecem concretizar-se.

Se as aulas “2-anos-em-1” já prenunciavam uma abordagem muito generalista dos temas, as primeiras propostas para as disciplinas que lecciono (História, Cidadania, Português) revelam que esta será uma escola pobre e muito longe de qualquer pretensão a constituir-se como um “novo paradigma”.
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Muito pelo contrário. Ao observar aquelas orientações, o modo como se apresentam e o seu conteúdo, sinto que estou a recuar 20-25 anos na minha vida profissional. E receio que esta nova “telescola” seja uma solução muito precária – para satisfazer uma necessidade política? – destinada a encobrir o que é evidente: esta é uma solução pobre para parecer que se está a fazer algo pelos “pobrezinhos”.

 

[1] https://ris.utwente.nl/ws/portalfiles/portal/6461579/Dijk06digital.pdf (consultado em 18 de Abril de 2020).

[2] https://www.wired.com/story/school-online-digital-divide-grows-greater/ (consultados em 18 de Abril de 2020, entre muitas outras notícias a este respeito).

[3] https://apnews.com/7f263b8f7d3a43d6be014f860d5e4132 (consultado em 18 de Abril de 2020).

[4] https://observador.pt/2020/04/15/alunos-sem-computador-sao-mais-do-que-se-pensa-nas-escolas-publicas-quase-um-terco-dos-alunos-do-ensino-basico-nao-tem-equipamento/ (consultado em 17 de Abril de 2020).

 

O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor.

Portuguese, Portugal