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Uma pessoa aceita submeter-se a maus tratos por parte de outra pessoa. Quais as consequências dessa aceitação? E se ela não for expressamente declarada mas existir de facto?

Em regra, as ofensas corporais e as injúrias são contrárias à vontade de quem as sofre e constituem crimes. Porém, a integridade física e a honra, ao contrário da vida, são livremente disponíveis pelo próprio: o direito penal dá relevância à vontade do titular que consinta nessas ofensas.

Assim, em certas condições, o consentimento faz com que a ofensa praticada pelo terceiro seja lícita, pelo que este não comete crime algum. É o caso, por exemplo, de quem faz uma tatuagem num cliente, ou de quem inflige maus tratos ou dirige injúrias ao seu parceiro no contexto de uma relação sadomasoquista consentida, ou do escritor que romanceia a vida de uma celebridade imputando-lhe falsamente factos desonrosos, desde que o visado consinta, ainda que secretamente, nessa imputação (por exemplo, porque isso lhe trará publicidade).

Ao considerar lícitas condutas que de outro modo seriam criminosas, a lei penal protege um interesse muito importante: a liberdade de uma pessoa decidir sobre os seus interesses. Compreende-se, por isso, que o consentimento tenha de ser livre e só possa ser prestado por maiores de 16 anos, pois só assim estarão reunidas as condições para que seja expressão de uma vontade esclarecida e genuína.

Ao contrário do que sucede com a honra, a integridade física não é absolutamente disponível, uma vez que se trata de um dos bens mais importantes da pessoa. A lei põe limites ao consentimento, que só pode valer se a lesão não for contrária aos «bons costumes». Esta noção aberta tem de ser concretizada mediante ponderação dos motivos e dos fins do agente e do ofendido, bem como dos meios empregues e da amplitude previsível da ofensa. É duvidoso que a mera aceitação de maus tratos físicos, sem mais, cumpra estes requisitos, pois não existe motivo relevante por parte do agente e do ofendido. Uma situação desse género levará mesmo a questionar a natureza livre do consentimento, logo a sua validade.

Em regra, não é preciso formalizar o consentimento em qualquer documento, embora isso possa ter importância para efeitos de prova. O consentimento nem sequer tem de ser expresso, podendo ser tácito. Diferente é o consentimento presumido, que permite lesar licitamente os interesses de uma pessoa que se encontra impossibilitada de expressar a sua vontade real — por exemplo, porque está inconsciente —, desde que a situação permita razoavelmente supor que teria consentido na ofensa se conhecesse as circunstâncias. Por exemplo, no contexto de um acidente, poderá ser razoável presumir que uma mãe consentiria doar sangue para salvar a vida do filho, que necessita da transfusão para sobreviver. A presunção tem de se basear no que seria a vontade da pessoa concretamente visada, não na vontade hipotética da generalidade das pessoas.

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Legislação e Jurisprudência

Código Penal, artigos 38.º e 39.º; 149.º e 150.º; 156.º