Sobre Jacques Delors
Tive a honra e o gosto de trabalhar na Comissão Europeia ainda sob a presidência de Jacques Delors, entre 1987 e 1995. O seu mote era simples: na construção europeia o objetivo é o próprio processo.
Foi um período de grande dinâmica reformista: depois da grave crise orçamental do início dos anos 1980, Delors conseguiu dar um novo impulso à construção europeia, baseado em três elementos essenciais:
- Em primeiro lugar, a criação de condições políticas, com uma coligação muito estreita entre a França e a Alemanha, ou, se quisermos, entre Mitterrand e Kohl, ou seja, também, entre a social-democracia e a democracia cristã europeias, em que Delors era um elo fundamental de ligação.
- Depois, com ideias muito claras em relação ao futuro, quer pelo alargamento a novos estados, com o reforço da componente ocidental e nórdica, com as adesões de Portugal e Espanha em 1986, e, dez anos depois, da Finlândia, Suécia e Áustria, seguida do apoio à reunificação alemã e do lançamento das futuras adesões de países de Leste até aí sob o jugo da antiga União Soviética, mas que estavam a recuperar a sua plena soberania.
- E, a par do alargamento, com o aprofundamento do quadro institucional e das políticas europeias, indispensáveis para o avanço do projeto europeu e para a integração dos novos Estados membros que viriam a aderir bem mais tarde, em 2004. Um aprofundamento em que foram paradigmáticos o Ato Único Europeu, o Tratado de Schengen e o Tratado de Maastricht, este último que marcou o apogeu, mas também o início de uma nova crise profunda da construção europeia.
Foi já longe de Bruxelas, que Delors viu a entrada em vigor do Euro, do qual foi também um grande obreiro. Mas também pelos mecanismos de solidariedade, designadamente os novos fundos estruturais. E também solidariedade com os outros, os deserdados do Mundo, nos países em desenvolvimento, os mais pobres de entre os pobres.
No dia-a-dia era um homem muito trabalhador, rigoroso e muito exigente, tal como o seu colaborador mais direto, Pascal Lamy. A Comissão Europeia trabalhava a 100 à hora e, diria mesmo, sem horas… Muitos tinham-se juntado ao projeto como participando num sonho de Paz, de bem estar, de solidariedade, de construção de uma Democracia europeia política, económica e social, com a diminuição das desigualdades sociais, em que cada qual tivesse igualdade de oportunidades, de vencer na vida pelos seus talentos e pelo seu trabalho, fosse Português, Francês ou Alemão.
Tive, em 1989, o meu momento privado de glória com Delors: foi no final de uma sexta-feira, pelas 20h00, quando o telefone do diretor-geral do Desenvolvimento tocou (não havia ainda telemóveis…) e eu, então jovem funcionário da Comissão, mas já assistente do DG, resolvi atender.
Do outro lado da linha, Pascal Lamy mandou-me subir de imediato ao seu gabinete, no 13º andar do Berlaymont, para me dizer que o presidente Delors precisava de uma nota sobre a estrutura orgânica e de capital dos bancos de desenvolvimento…para as 22h00… Tinha duas horas para encontrar a informação, compilá-la e fazer uma nota explicativa.
O diretor-geral e a hierarquia principal estavam em missão em África, não havia internet e a Comissão também ainda não tinha computadores nos serviços.Tive a sorte de encontrar um livrinho de capa azul sobre o assunto: fotocopiei as páginas relevantes, sentei-me à frente de uma máquina de escrever IBM elétrica (daquelas com uma esfera de metal com os carateres) e escrevi a nota.
Corri ao 13º andar e entrei pelo gabinete de Lamy, que leu a nota e levou-me com ele ao gabinete de Delors: leu, não agradeceu, disse apenas «c’est bien ça»… ouvi-o dois dias depois a anunciar, juntamente com Mitterrand, a proposta de criação do Banco Europeu para a Reconstrução e Desenvolvimento, dos ditos países de Leste!