«A Europa é mais do que instituições, merecidamente mais»
A Europa, como continente, foi considerada “frágil, inquieta, contraditória e inconsistente”, com um “passado piromaníaco” caracterizado por “uma guerra civil quase contínua”. Muito antes das carnificinas do século XX, George Washington pediu aos seus conterrâneos que mantivessem a distância dos “enredos europeus” e Thomas Jefferson apelidou a Europa de “campo de matança”. Walt Whitman, poeta, apelidou-a de “covil de escravos”. Mesmo depois de fundadas as instituições da União, a Europa já foi “pigmeu político” ou, pelo menos, “um gigante distraído e coxo”, um “sonho mal sonhado”, “paralisada a partir de dentro”, prisioneira de “uma decadência vivida como apoteose”, atolada num sistema de governação “intelectual e politicamente esquizofrénico”, em lenta “queda para a irrelevância”. As instituições desta “filha insegura da ansiedade” são, para alguns, “um edifício imponente assente num passado inqualificável”, um “monstro delicado” com “tradições jacobinas” e natureza “pré-constitucional”, com alguns tiques mais próprios de uma “nomenklatura”. Jacques Derrida chamou-a “coisinha pequena”: “cette petite chose qu’est l’Europe”. Mas a Europa é também, desde sempre, “o subcontinente extraordinário”, origem de uma cultura de “inquietude, angústia e dúvida” que fez dela “o berço da civilização”, e “um espaço privilegiado da esperança humana”, “casa comum” e “fermento global”, toda “uma aventura por concluir”.
Num certo sentido, aquilo que a Europa é – este contraste entre substância intangível e realidades visíveis, imperfeitas – lembra Iago, a personagem shakespeariana que, numa interpretação generosa do conceito de identidade, afirmou serenamente: “Não sou o que sou.” Os Europeus percebem que a Europa é mais do que instituições, merecidamente mais. A ordem das duas citações que abrem este livro não é cronológica nem acidental. Acredito que o emergir de uma Europa com sentido é mais importante do que discutir o seu sentido “real”. O bom, o mau e o feio, invocados com facilidade nas críticas à construção da Europa, são três exageros que ilustram o desassossego em relação ao momento da Europa e ao seu papel no mundo. Acredito que este desassossego ficará connosco durante bastante tempo. Este livro é o relato da minha luta pessoal com a inquietude europeia.
A Europa é tanto um continente quanto uma ideia e uma cultura. Os elementos emocionais, históricos, culturais e psicológicos que oferecem coerência e resiliência à ideia de Europa são parte do conjunto de ativos — ou passivos — que influenciam a paz e a prosperidade no mundo. As diferentes visões da Europa — geográficas, históricas e culturais —obrigam-nos a questionar se existe algo único a que podemos chamar Europa e como são aqueles que se autointitulam Europeus. A situação da Europa já foi encarada, com justa causa, como desesperada. A integração económica apareceu num fim de linha de uma série de grandiosos projetos para o continente que envolveram tanto crenças religiosas como desígnios militares imperiais. As realidades emocionais e as possibilidades pragmáticas complementam-se ou diminuem-se mutuamente. O futuro político e económico não pode ignorar o resultado aterrador dos autoritarismos e totalitarismos do passado. As conquistas e os limites daquilo a que chamamos União Europeia povoam este ensaio como uma sombra que anima a reflexão.
[...] Na sua 'Europe: A History', Norman Davies relata o episódio de um gueto judeu na Europa de Leste cercado há várias semanas, ao ponto de não restar praticamente nenhuma comida. Aí, dois homens enfraquecidos pela fome entram na sinagoga e cometem o sacrilégio de deixar cair as tábuas da Tora ao chão. O delito é público e muito grave. O rabi da zona, conhecido pela sua sabedoria, é chamado a decidir qual o castigo que devem sofrer, que se espera proporcionalmente pesado. O rabi decide condenar os dois homens esfomeados a vários dias de jejum, “se forem capazes”. Discutir o futuro da Europa num contexto de crise exige aos pensadores e aos políticos o tipo de exercício espiritual em que jejuar já não é suficiente. Com o statu quo institucional a revelar-se um sustento muito limitado para o futuro da Europa, pensar torna-se hoje tão urgente como jejuar. A Europa precisa de uma fome que tenha tanto de espiritual quanto de evidente.
O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor