A
A
Imagem da Barragem de Odeleite

Seca no Algarve: uma catástrofe anunciada

A falta de água no Algarve já é crónica e irá agravar-se nas próximas décadas. «É uma catástrofe anunciada», explica nesta entrevista Maria José Roxo, especialista em desertificação e mudanças climáticas. O Governo anunciou reduções na utilização de água, mas mais do que cortes paliativos, são precisas medidas estruturais para o Algarve, num conjunto de soluções que consigam preparar o futuro, defende.
5 min
Livraria

A situação de seca na região algarvia tende a tornar-se crónica, com o aumento das temperaturas e a escassez de chuva? 

A disponibilidade de água no sul do país será um problema que irá agravar-se nas próximas décadas, como preveem os cenários climáticos. 

O clima mediterrâneo nesta região já se caracteriza por uma grande irregularidade de precipitação, com períodos de excesso de precipitação (anos muito húmidos/meses muito chuvosos, grandes chuvadas) ou de défice de chuva (secas mais ou menos prolongadas).  

A mudança climática, marcada pelo aquecimento global, tem tido como consequência evidente o aumento das temperaturas, sendo mais frequente o registo de temperaturas máximas diárias muito elevadas, durante vários dias (ondas de calor). A estes factos junta-se a redução dos quantitativos totais anuais de precipitação neste região.

 

Como podemos aproveitar melhor a água nas barragens e albufeiras do Algarve?  

Quando falamos nas barragens e albufeiras desta região,há que ter em conta um aspeto relevante: as bacias hidrográficas que drenam para estas barragens são geralmente pequenas – devido à morfologia da região (serra algarvia) – e não conseguem captar volumes muito grandes de água. Um melhor aproveitamento das águas passa por uma maior capacidade de armazenamento das albufeiras existentes.

Neste momento, estas barragens deviam estar a ser limpas dos materiais (sedimentos) que estão acumulados nas albufeiras e são bem visíveis. É importante ter uma efetiva e constante monitorização da utilização da água, de maneira a poder prever com antecedência uma distribuição mais racional e sustentável.

 

Os agricultores vão ver as suas culturas afetadas, o que vai ter efeitos para os consumidores dos produtos agrícolas e para o tecido económico da região.  

O Governo anunciou cortes de 25% no uso de água para a agricultura. Os produtores de laranjas do algarve, por exemplo, estão muito preocupados…. 

Grande parte da água usada na agricultura é garantida pelas captações de água subterrânea armazenada nos aquíferos, que com a escassez de precipitação não têm assegurada uma realimentação que compense as captações realizadas. Compreensivelmente, os agricultores vão ver as suas culturas afetadas, o que vai ter efeitos para os consumidores dos produtos agrícolas, mas igualmente para o tecido económico da região.  

No entanto, esta era uma catástrofe anunciada, pelos sucessivos anos de seca e por haver nesta região do país outros usos que utilizam grandes volumes de água, como a atividade turística.  

 

De que forma o turismo nesta região será afetado e que medidas já deviam estar no terreno? 

Se houver cortes no abastecimento, de certeza que será afetado. Mas o mais preocupante será a conjugação de períodos de temperaturas elevadas (verão) com menores disponibilidades de água. Isso sim, será inevitavelmente um mau cartão de visita para o turismo.  

Neste momento, todas as medidas que sejam tomadas são apenas reativas e paliativas. É necessário que haja coragem para se colocarem em andamento medidas estruturais, baseadas no conhecimento científico, num bom diagnóstico, de forma a criar um conjunto de soluções.  

Não há uma solução, há várias: melhorar a utilização das águas residuais tratadas, monitorizar de forma concreta e fiscalizar o uso das águas subterrâneas, incentivar a população a reduzir consumos, aumentar a eficiência dos sistemas de rega, monitorizar as fugas nos sistemas de distribuição, entre outras. Todas as soluções devem ter em conta as características geográficas do território, salvaguardando, sempre que possível o equilíbrio dos ecossistemas.  

Sempre tivemos uma cultura de utilização de água baseada na abundância, o que foi um erro.

Que medidas concretas podem tomar os municípios, para gerir melhor este recurso, cada vez mais escasso? 

Os municípios têm um papel muito relevante, são conhecedores dos territórios e devem contribuir para um desenvolvimento económico sustentável e para o bem-estar das populações. Neste sentido, devem promover o uso sustentável dos recursos hídricos, melhorando as infraestruturas de distribuição (o desperdício no contexto que vivemos é criminoso), contribuir para uma gestão integrada dos recursos partilhados, ter particular atenção às alterações do uso do solo, no sentido de não facilitar a introdução de culturas com elevada necessidade água e, sobretudo, incentivar as populações a reduzir a utilização deste recurso.  

 

Porque continuamos a regar jardins com água potável ou a usamos nos autoclismos?  

Porque sempre tivemos uma cultura de utilização baseada na existência de água em abundância, o que foi um erro. Daí ser necessário fazer uma transição e aprender que este recurso é um bem-comum, cada vez mais escasso que deve ser utilizado com cuidado e eficiência.  

 

Poderemos enfrentar à semelhança da Catalunha um corte no consumo diário de água por habitante?  

Este é um cenário conhecido de muitos portugueses desde Trás-os-Montes, Beiras e Alentejo, já em vários anos. Não é uma situação nova. É sim, uma situação lamentável, resultante do facto de nunca se terem tomado as medidas estruturais necessárias para prevenção da situação atual, apesar dos estudos científicos sobre os efeitos da mudança climática no país e das sucessivas secas que têm ocorrido com mais frequência desde 2000 até hoje.  

Portuguese, Portugal