Portugal: a vitória socialista e o dia seguinte
Há duas questões que os correspondentes estrangeiros costumam colocar aos cientistas políticos portugueses em véspera de eleições.
Porque é que Portugal não tem um partido político populista de direita radical com presença significativa? E porque é que o Partido Socialista (PS) sobreviveu incólume à erosão sofrida pelos partidos sociais-democratas em quase todo o resto da Europa?
Após a eleição de 30 de Janeiro, a primeira pergunta deixou de fazer sentido. O Chega aumentou o seu apoio de 1,3 % para 7,2 % dos votos e cresceu de um para 12 deputados, tornando-se a terceira maior força no parlamento, a seguir ao PS e ao PSD. Fundado em 2019 por um antigo militante do PSD, André Ventura, o Chega já tinha dado um sinal claro da sua potencial força nas eleições presidenciais do ano passado, quando o seu líder conquistou quase 12 % dos votos.
Além disso, o Chega conseguiu atrair esses eleitores fugindo parcialmente ao estigma associado aos «velhos» partidos de extrema-direita, talvez porque surgiu por dissidência com o PSD e não como um sucedâneo de organizações extremistas. O próprio Chega e o seu líder tiraram partido dos estigmas ligados não só à classe política mas também à população cigana, contra a qual o preconceito em Portugal está bastante arraigado. Ventura saiu-se excepcionalmente bem em 2021 nos municípios onde as minorias ciganas são mais numerosas, bem como em contextos em que — ligada à dimensão da população cigana — a percentagem de beneficiários de assistência social é mais elevada, sugerindo que a mensagem do partido sobre «dependência da assistência social» tinha pelo menos um alvo identificado para os seus eleitores.
A anterior visibilidade de Ventura como comentador televisivo de futebol e a irresistível atracção da comunicação social portuguesa pelo «bombástico» fizeram o resto. As sondagens pós-eleitorais dir-nos-ão mais sobre os actuais adeptos do Chega, mas o que sabemos não revela um partido desproporcionalmente apoiado pelos economicamente desfavorecidos ou pela classe trabalhadora em geral: os factores culturais, e não tanto os económicos, parecem ter sido mais relevantes.
Sucesso inesperado
Por contraste, a segunda pergunta — sobre o sucesso continuado do Partido Socialista — ainda precisa de respostas. No domingo, os socialistas obtiveram cerca de 42 % dos votos, cinco pontos percentuais acima das eleições de 2019. Este resultado foi bastante inesperado.
Ao longo dos últimos dois meses, o intervalo entre o PS e o PSD tinha diminuído continuamente nas sondagens, ao ponto de estas apresentarem um empate técnico a apenas uma semana das eleições. Na noite das eleições, contudo, os socialistas aumentaram a sua vantagem sobre o PSD de nove para mais de 12 pontos percentuais e obtiveram uma maioria absoluta no parlamento, apenas a segunda maioria na história do seu partido. Se completar este novo mandato, os socialistas terão governado o país ao longo de cerca de dois terços do século xxi.
Como sempre, há potenciais explicações de curto e longo prazo para este resultado. As de curto prazo levarão a um considerável exame de consciência. A intensa competitividade das eleições, tal como foi percebida pelos cidadãos e retratada pelas sondagens até à última semana, foi genuína ou foi fabricada por métodos potencialmente enviesados e/ou pela sua amplificação pela comunicação social? Talvez nunca se venha a saber ao certo.
Mas as consequências previsíveis dessa percepção de proximidade de resultados concretizaram-se. Em primeiro lugar, houve uma mobilização maior: num país onde a afluência às urnas tem vivido um declínio secular, colocando-a abaixo da média europeia, as eleições de 2022 trouxeram uma retoma na afluência a primeira desde 2005 — ano em que, talvez não por acaso, os socialistas obtiveram a sua anterior maioria absoluta.
Em segundo lugar, houve votação estratégica, ou voto útil: desde 2002, em média perto de um em cada cinco eleitores faz a sua escolha na semana anterior às eleições e, desta vez, os últimos a decidir podem ter oscilado consideravelmente em direcção ao PS, para evitar uma vitória da direita. Como seria de esperar, isto prejudicou os dois principais partidos à sua esquerda: o Bloco de Esquerda (que caiu de 9,7 % em 2019 para 4,5 % em 2022) e o Partido Comunista (de 6,5 % para 4,4 %). Mais uma vez, só os estudos pós-eleitorais poderão confirmar estas afirmações.
Portugal algo distante da Europa
As explicações estruturais e de longo prazo são talvez mais interessantes. Em muitos países europeus, os partidos sociais-democratas sofreram uma erosão drástica nas últimas duas décadas, motivada pela redução do seu eleitorado principal constituído pelas classes trabalhadoras industriais, pela ascensão de uma classe média instruída e pelo aumento da importância do eixo libertário-autoritário nos conflitos políticos. Como Herbert Kitschelt prescientemente explicou no seu clássico de 1994, The Transformation of European Social Democracy, isto criou sérias dificuldades de posicionamento aos partidos sociais-democratas, bem como oportunidades para os partidos verdes, da nova esquerda e da extrema-direita.
Portugal, no entanto, continua a ser um país afastado deste mundo. Os trabalhadores dos sectores produtivos ainda constituem uma percentagem desproporcionalmente elevada do eleitorado, mesmo segundo os padrões já de si elevados do Sul da Europa. Apenas cerca de 55 % da mão-de-obra portuguesa completou pelo menos o ensino secundário, o nível mais baixo entre os 31 países europeus investigados. A dimensão socioeconómica da luta política — redistribuição e papel do Estado — continua a ser mais importante, algo que a Grande Recessão, a crise da Zona Euro, o resgate de 2011–2013 e as políticas de austeridade associadas podem mesmo ter reforçado.
As dificuldades mais significativas, pelo contrário, têm sido sentidas à direita do espectro partidário. Durante o anterior período de governo centro-direita (2011–2015), a liderança mais neoliberal de Pedro Passos Coelho e as medidas de austeridade impostas pela troika (o Fundo Monetário Internacional, o Banco Central Europeu e a Comissão Europeia) parecem ter levado cada vez mais os eleitores a considerarem o PSD demasiado à direita. O partido perdeu alguma da sua capacidade de atrair eleitores mais velhos, menos instruídos e mais pobres.
Rui Rio, o sucessor de Passos Coelho, passou por isso os últimos anos a tentar reposicionar o PSD como moderado e centrista, até mesmo «social-democrata» . À primeira vista, tratou-se de uma abordagem aparentemente sensata. Na realidade, porém, este posicionamento foi sendo sistematicamente contestado pela ala mais neoliberal do partido, criando ao mesmo tempo oportunidades externas de concorrência à direita.
Assim, nestas eleições, o novo partido Iniciativa Liberal aumentou a sua presença no Parlamento de um para oito deputados, com base num discurso em favor de impostos mais baixos e menos intervenção estatal. Isto, juntamente com a ascensão do Chega, resultou numa direita fragmentada, com o PSD incapaz de crescer eleitoralmente em 2022.
A quadratura do círculo
O futuro comporta outros tipos de dilemas, mas desta vez para os socialistas no governo (ou para qualquer outro titular num futuro próximo). Portugal continua a ser um país com uma desigualdade comparativamente elevada em termos de rendimento e (sobretudo) de riqueza, ainda a recuperar das elevadas assimetrias sociais na sequência da pandemia. A sua força de trabalho está atrasada em termos de qualificações, a produtividade situa-se 25 % abaixo da média da UE-27 (e continua a descer comparativamente) e o investimento em educação, investigação e desenvolvimento e cuidados infantis e educação precoce permanece estagnado, na melhor das hipóteses, há pelo menos uma década.
Continua a ser pouco claro (na melhor das hipóteses) ou improvável (na pior das hipóteses) se um governo socialista sobrecarregado pela dívida (mais de 130 % do produto interno bruto) e com baixa capacidade fiscal será capaz de fazer a quadratura do círculo para suprir as necessidades sociais imediatas do seu eleitorado e, ao mesmo tempo, investir no futuro.
Este artigo foi inicialmente publicado na revista «Social Europe».
O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor.