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Portugal, as eleições americanas e o futuro das relações transatlânticas

Portugal, as eleições americanas e o futuro das relações transatlânticas

Artigo de opinião de Bernardo Pires de Lima, autor do livro «Portugal e o Atlântico», publicado pela Fundação na colecção de Ensaios.
5 min

A política externa está ausente da campanha eleitoral americana, cumprindo assim o fecho de um ciclo maximalista da acção internacional dos EUA, favorecido com o 11 de Setembro e as longas guerras do Afeganistão e Iraque, percurso estratégico que nos últimos anos percorreu o rumo oposto, ou seja, de retração progressiva. Em rigor, este pêndulo tem oscilado em termos semelhantes desde o final da Segunda Guerra Mundial: a seguir a ciclos de grande envolvimento militar e político no exterior, seguem-se administrações mais vocacionadas para inverter a postura e olhar mais para a política interna, reconhecendo desta forma os limites do poder americano.

Contudo, os últimos quatro anos levaram o pêndulo a um extremo nunca visto no pós-Guerra. Provocou uma ruptura com organizações internacionais, com a praxis multilateral, com a qualidade e o método da diplomacia americana, tratando aliados e adversários tantas vezes da mesma maneira, saindo intempestivamente de acordos sem alternativas à altura dos desafios, sejam eles climáticos, comerciais ou proliferação nuclear. O fechamento progressivo da América foi o mote do candidato Trump e o seu mandato um prolongamento atabalhoado dessa postura. A “guerra” comercial com a China descapitalizou a classe média americana, a beligerância com o Irão não contribuiu para a estabilidade no Médio Oriente, a pressão sobre a NATO abriu várias frentes de desconfiança em cima das pressões geopolíticas russa e chinesa, e a tentativa de levar os bons ofícios presidenciais à Coreia do Norte não teve qualquer efeito na desnuclearização do regime.

Se for reeleito, hipótese completamente em aberto, Trump assumirá que todas as suas decisões externas saíram legitimadas, reforçadas e potenciadas. Acentuará o bullying sobre aliados europeus, decidindo unilateralmente e sem consultas novas deslocações de contingentes militares; levará a negociação comercial para o campo puramente transacionável, sem favorecer qualquer denominador comum; continuará a estratégia de confrontação acelerada com a China sem alargar à Europa uma frente transatlântica mais robusta, colocando-a assim no meio de uma ampla confrontação geopolítica; fará tudo para que um Brexit desregulado aconteça, enfraquecendo Londres em negociação comercial bilateral e a UE pelos efeitos colaterais provocados. A imprevisibilidade, inconstância e atabalhoamento metodológico num segundo mandato de Trump são pressões acrescidas em países como Portugal, que não só precisa de garantias estáveis de segurança, investimento e fiabilidade política no seu espaço Atlântico (Washington, Londres e Brasília não oferecem hoje nada disso), como não tem nenhum interesse em ver crescer um alinhamento autoritário entre aliados importantes. As premissas da nossa política externa são o oposto das propostas de Trump: são promotoras de ordem e não de anarquia, de expansão multilateral e não de ativismo nacionalista, por melhor regulação da globalização e não por unilateralismos beligerantes sem travão. O potencial português no Atlântico (securitário, energético, comercial, marítimo, cooperativo com África e América Latina) fica limitado com o prolongamento das convulsões transatlânticas com que Trump está confortável.

As presidenciais americanas são centrais em quase todas as dimensões da política internacional, mas extraordinariamente importantes para Portugal. Podem ditar a nossa capacidade política no espaço Euro-Atlântico.

Se Joe Biden vencer, esperando-se nesse cenário a contestação duradoura aos resultados por parte de Trump, Lisboa e a esmagadora maioria das capitais europeus respirará de alívio. Assumirá que o desanuviamento diplomático será uma marca imediatamente distintiva, que a pressão sobre a NATO descerá de nível, que a substituição de embaixadores favorecerá o diálogo bilateral e que se encontrará uma agenda mais cooperativa nas frentes conjuntas prioritárias: gestão da pandemia, China, Rússia, alterações climáticas, contenção nuclear, governação digital. Há razões para crer que tudo isto pode correr de feição no tempo e no modo, até porque o candidato democrata tem defendido isso mesmo. Biden, uma vez eleito, tem à partida as credenciais atlantistas mais enraizadas desde o presidente Bush pai, está rodeado de conselheiros com visão semelhante e experiência em administrações democratas anteriores, tem sido peremptório na defesa dos Acordos de Paris e do Irão, no regresso político e financeiro à OMS ou na reforma negociada da OMC. Se quisermos, fará um conjunto de correções estratégicas, embora seja realista pensar que o mote não será tanto de restauração da centralidade europeia na política externa americana, mas de reforma de um pacto transatlântico para o século XXI.

Portugal entra em 2021 à frente da presidência rotativa da UE. Esse período coincidirá com a entrada em funções da administração americana e com a fase crucial do Brexit já oficializado, que pode perfeitamente ser sem acordo, destapando os piores receios europeus. Só este enquadramento diz tudo sobre as múltiplas frentes que Lisboa terá em mãos, já para não falar no alarmismo económico, social e sanitário da Covid. Se Trump entrar no segundo mandato, o espaço de manobra português para ensaiar os termos preliminares de um novo pacto transatlântico fica limitado, o que não quer dizer impossibilitado. Sendo do interesse português e europeu desenhá-lo, procurando uma relação com Washington diferente da mantida nestes últimos quatro anos, então vale a pena tentar algumas diligências auscultando o outro lado. Se Biden vencer, Portugal deve acelerar os contactos com a nova administração, montando um comité de trabalho Euro-Atlântico capaz de trabalhar essa agenda partilhada, promovendo também assim a leitura que faz do potencial do Atlântico na política internacional contemporânea, rivalizando de outra maneira com o proclamado “século do Pacífico”. Os dois lados assumiriam ainda a irreversibilidade da propalada autonomia estratégica da UE, reduzindo assim a percepção de nova dependência estrutural face aos EUA, libertando dessa forma Biden desse papel paternalista de outros tempos e do respectivo fardo. Nesse cenário, europeus e americanos dariam um salto em frente na maturidade relacional e manteriam alguma da tónica independente que parece irreversível: a desconfiança europeia face aos EUA está num nível alto; e a política externa de Biden começará em casa, com a gestão da pandemia e a tentativa de apaziguar as tensões internas.

As presidenciais americanas são centrais em quase todas as dimensões da política internacional, mas extraordinariamente importantes para Portugal. Podem ditar a nossa capacidade política no espaço Euro-Atlântico, promovendo os nossos atributos diplomáticos e a nossa geografia, ou restringir a nossa ação num período absolutamente crítico à sobrevivência das democracias e da estabilidade das relações internacionais. O interesse nacional português vai também a jogo no dia 3 de novembro.

Bernardo Pires de Lima é especialista de relações internacionais e autor do livro «Portugal e o Atlântico», publicado na colecção de Ensaios da Fundação.

 

O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pela autora.

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