Notas de leitura de Jorge Costa ao estudo da Fundação
Síntese das Principais Conclusões
- A maior parte da redução de rendimentos ocorre quando estão a produzir efeitos medidas orçamentais adotadas pelo governo do Partido Socialista
- Quando começa o Programa de Ajustamento, os rendimentos estão a cair, e a cair acentuadamente.
- Em 2014, quando termina o Programa de Ajustamento, os rendimentos reais já estão a aumentar, tendo a curva descendente terminado em 2012.
- A intensidade da redução de rendimentos diminuiu durante o Programa de Ajustamento, relativamente ao período sob o efeito das medidas restritivas do governo socialista.
- A diminuição da intensidade de quebra dos rendimentos sob o Programa de Ajustamento foi particularmente acentuada no caso das classes médias; as classes médias foram, assim, incomparavelmente mais afetadas pelas medidas restritivas pré-Programa de Ajustamento do que depois.
- A distribuição de esforço entre escalões de rendimentos, sob o efeito do Programa de Ajustamento, altera-se ainda noutro aspeto crucial: a classe de rendimentos mais elevados passa a figurar entre as mais afetadas, quando antes fora destacadamente a mais protegida.
- No final do Programa de Ajustamento éramos um país globalmente menos desigual do que antes.
- Além disso, antes a desigualdade estava a aumentar. Depois, a desigualdade esteve a descer, apesar da fortíssima pressão em contrário do mercado.
- É logicamente impossível que, em tais circunstâncias, as políticas públicas pós-Programa de Ajustamento tenham tido globalmente um carácter regressivo, não protegendo setores de rendimentos mais baixos, como sugerem os autores.
- Foi o desenho do conjunto das políticas públicas com incidência redistributiva, apenas e só no período pós-Programa de Ajustamento, que não apenas impediu que a desigualdade de rendimentos disparasse, como, inclusivamente, permitiu que se invertesse a tendência de subida anterior.
- Introdução
O Programa de Ajustamento resulta de um Memorando de Entendimento assinado entre Portugal e as instituições envolvidas no resgate financeiro do estado português, no dia 17 de maio de 2011, executado por um governo que tomou posse em 21 de junho de 2011.
As consequências sociais decorrentes das medidas especificamente adotadas na vigência do referido programa produzem efeitos avaliáveis a partir de 2012 inclusive.
Até 2011 inclusive, estão a produzir efeitos fortes medidas de austeridade adotadas nos Orçamentos do Estado de 2010 e 2011.
Assim, um estudo que tem dois objetos muito distintos, a saber, (1) avaliar a evolução da «desigualdade de rendimento e pobreza em Portugal» entre 2009 e 2014 e (2) avaliar as «consequências sociais do Programa de Ajustamento» não dispensa a segmentação daquele período em duas fases: 2009-2011 e 2012-2014.
O foco em períodos diversos ligados a contextos diversos é a prática seguida pelos estudos de académicos internacionais que avaliam as consequências socias das consolidações orçamentais pós-crise de 2008, designadamente aqueles que recorrem aos instrumentos de microssimulação do Euromod, como seja o mais recente e influente The effect of changes in tax-benefit policies on the income distribution in 2008-2015, citado e usado, de resto, pelos autores.
A indistinção gera forçosamente uma enorme confusão, que ao invés de ajudar a informar o debate público, enviesa e obscurece o que se propõe esclarecer.
Algumas conclusões do estudo que maior eco público têm tido prendem-se com a análise que os autores fazem à evolução do rendimento real por adulto equivalente [ver nota de rodapé 1], quer em termos médios, quer segmentando a população por escalões de rendimento (decis), para tentar identificar «ganhadores» e «perdedores» do «ajustamento».
[nota rodapé 1: Corresponde à divisão do rendimento disponível, deflacionado pelo Índice de Preços no Consumidor, pelos indivíduos de uma família, assim ponderados: o primeiro adulto vale 1, os seguintes, dos 14 anos em diante, valem 0,5, e as crianças, 0,3. Uma família com duas crianças vale 1+0,5+2*0,3=2,1 adultos equivalentes. É a Escala de Equivalência Modificada da OCDE, usada a nível europeu.]
- Rendimento médio e mediano
Primeira grande constatação dos autores (pág. 23):
(...) entre 2009 e 2014, o rendimento médio disponível por adulto equivalente das famílias portuguesas passou de 11 383 euros/ano para 9 996 euros/ano, o que equivale a uma diminuição em termos reais de 12,2%. No mesmo período, o rendimento mediano registou um decréscimo ligeiramente inferior (10%).
A conclusão procede dos dados refletidos no seguinte gráfico, que reproduz a parte do Gráfico n.º 1 do estudo respeitante àquilo a que os autores chamam indevidamente período do programa de ajustamento.É desde logo visível a olho nu que a média ou a mediana [ver nota de rodapé 2] dos rendimentos já aumentam em 2014, e a mediana aumenta mesmo já em 2013, ano em que a média praticamente não sofre alterações.
Há, assim, uma indicação clara de que a perda de rendimentos ocorre nos primeiros anos do período em análise.
[nota de rodapé 2: A mediana é uma medida de tendência central, tal como a média. A média nem sempre é melhor descrição de um conjunto. A mediana do rendimento corresponde ao valor que divide exatamente uma população ordenada segundo a escala de rendimentos em duas partes com o mesmo número de indivíduos. Quando a distribuição de rendimentos é normal, a média e a mediana coincidem. Quando a média é superior à mediana isso significa que há concentração de rendimentos nos escalões superiores. É o caso. A análise da média significa então que estamos a olhar para uma medida de tendência central muito influenciada pela evolução nos escalões superiores. Para obtermos um retrato mais fiel da globalidade da população e menos sensível aos valores extremos, recorremos então à mediana.]
Distingamos, pois, uma vez que parece haver uma diferença significativa, o período essencialmente afetado por medidas de austeridade anteriores ao Programa de Ajustamento (2009-2011) e o período sob o efeito das medidas de austeridade do Programa de Ajustamento (2012-2014).
Com efeito, se considerarmos a média, no período que antecede o ajustamento a redução dos rendimentos é 63% do total. Se considerarmos a mediana, medida que julgamos mais adequada pelas razões expostas na nota anterior, 88% da redução de rendimentos ocorre antes do Programa de Ajustamento.
Se olharmos para a média, 37% da redução total no período completo em análise (2009-2014) ocorre sob o efeito de medidas restritivas adotadas na vigência do Programa de Ajustamento. Se olharmos para a mediana, apenas 12% dos rendimentos são reduzidos sob efeito do Programa de Ajustamento.
Em suma, qualquer que seja a medida que se use para descrever a população no seu todo, a maior parte da redução de rendimentos ocorre quando estão a produzir efeitos medidas orçamentais no essencial adotadas pelo governo do Partido Socialista.
Quando começa o Programa de Ajustamento, os rendimentos estão a cair, e a cair acentuadamente.
Em 2014, quando termina o Programa de Ajustamento, os rendimentos reais já estão a aumentar, tendo a curva descendente terminado em 2012, se considerarmos a mediana dos rendimentos, ou 2013, se usarmos a média dos rendimentos.
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Impactos diferenciados por escalões de rendimento
O estudo visa também o apuramento de «perdedores e ganhadores» daquilo a que chama indevidamente processo de ajustamento. Como se refere na pág. 25:
De facto, a identificação de quem foram os principais “ganhadores” e “perdedores” das políticas de austeridade implementadas entre 2009 e 2014 tem suscitado alguma controvérsia na sociedade portuguesa, não raro surgindo afirmações de que “a classe média foi a mais afectada” ou de que “os mais pobres foram protegidos das medidas mais severas”. No entanto, raras as vezes são devidamente fundamentadas estas afirmações.
Para resolver a questão, os autores procedem à análise da variação discriminada por decis de rendimento, isto é, consideram como evoluiu o rendimento dos 10% mais pobres, dos 10% seguintes na escala de rendimentos, até aos 10% mais riscos.
Será a média (ou a mediana) uma boa descrição do que foi a redução de rendimentos na sociedade portuguesa, no período que vai de 2009 a 2014, ou as medidas de tendência central escondem efeitos sociais muito diferenciados consoante as classes de rendimento?
Concluem os autores (pág. 26):
(...) todos os decis registam um decréscimo, mas este é muito mais pronunciado para as famílias e os indivíduos com rendimentos mais baixos. A quebra percentual de rendimentos no 1.º decil (os 10% de menores rendimentos) é praticamente o dobro da registada no 10.º decil (os 10% mais elevados).
Assim (pág. 27), a leitura dos dados permite tirar ilações sobre:
(...) os dois mitos habitualmente associados à avaliação dos impactos das políticas seguidas em Portugal. O primeiro é o de que as classes médias foram fortemente penalizadas no decurso do processo de ajustamento. O segundo é o de que as políticas de austeridade adoptadas preservaram os rendimentos dos mais pobres, isentando-os dos cortes dos salários e das pensões.
A partir da análise da evolução do rendimento real dos vários decis, é possível contradizer essas afirmações, ou seja, a diminuição dos rendimentos foi profundamente desigual e em grande parte regressiva, e nem as classes médias foram as que mais sofreram com as políticas seguidas, nem os mais pobres foram poupados no processo de empobrecimento.
Olhemos de novo para a tabela anterior, agora acrescentada pela descrição das variações por decis de rendimento e, tal como anteriormente, discriminado o período antes do Programa de Ajustamento e o período posterior.
Em todos os decis de rendimento, como concluem os autores, há decréscimo de rendimentos, mas em todos os casos, com uma única exceção, mais de metade da redução dos rendimentos ocorre até 2011.
Depois, em graus variados, continua a redução de rendimentos, mas serão reduções menores, e no caso das «classes médias» (do 3.º ao 7.º decil) significativamente menores, do que as registadas no período anterior. A intensidade da redução diminui em todas as classes, exceto na classe rendimentos mais elevados, o 10.º decil.
Esta era de longe, de entre as 10 classes, a menos afetada por reduções de rendimento até 2011.
Em 2014, já não era assim. No final do ajustamento, as classes com maiores reduções de rendimentos continuavam a ser as de menores rendimentos (1.º e 2.º decis) e a classe de maiores rendimentos (10.º decil). Estas três classes são as únicas que têm reduções totais no final do período que vai de 2009 a 2014 superiores à média.
O gráfico ao lado reproduz o Gráfico 3.º do estudo, introduzindo o contributo de cada subperíodo para a redução total de rendimentos por decil, assinalando a «anomalia» do 10.º decil, que passa de classe menos afetada a uma das mais afetadas.
Em síntese, não só a intensidade da redução de rendimentos diminuiu do primeiro para o segundo período, sendo a diminuição muito acentuada no caso das classes médias, como o padrão de distribuição de esforço entre escalões de rendimentos se altera, passando a classe de rendimentos mais elevados a figurar entre as mais afetadas, quando antes fora destacadamente a mais protegida. -
Igualdade e desigualdade
O Coeficiente de Gini é a medida sintética de desigualdade na distribuição de rendimento comummente mais referida. É também objeto de extensos e discutíveis comentários dos autores. Vejamos (pág. 35):
No Gráfico 7 é visível a quebra, pós-2010, do ciclo descendente da desigualdade que, como foi visto no estudo anterior, se registava desde o início do século. No período 2009-2014, o coeficiente de Gini estabilizou em torno de 34%, com ligeiras oscilações que não são estatisticamente significativas. Este resultado é consistente com o Gráfico 3, onde os decis centrais (decis 3 a 7) tinham um decréscimo muito similar de rendimento no mesmo período (todos entre 10% e 12%), sugerindo uma forte estabilidade nas assimetrias na parte central da distribuição.
O Gráfico n.º 3 aludido corresponde ao gráfico de colunas atrás reproduzido, e acrescentado da decomposição das quebras de rendimento por decil através dos contributos para esse efeito de cada um dos dois períodos: antes e após Programa de Ajustamento.
O Gráfico n.º 7, por seu turno, é o que a seguir reproduzimos, com escalas diferentes das usadas pelos autores, por forma a não esbater elementos de análise significativos.
or um lado, para salientar que efetivamente ocorre uma «quebra do ciclo descendente da desigualdade».
Mas nem essa quebra se dá no pós-2010 – dá-se depois de 2009 e com uma subida acentuada em 2010 –, nem o coeficiente de Gini «estabiliza» depois da «quebra do ciclo descendente» em torno de 34%.
Sobe quase um ponto percentual entre 2009 e 2011 e, a partir daí, quebra a curta tendência ascendente registada e inicia mesmo uma tendência descendente, pouco marcada, mas real.
Estes resultados, com um perfil diferente da evolução da desigualdade antes e depois do Programa de Ajustamento – antes, ascendente e, depois, descendente – são consistentes com os resultados da decomposição por decil e por subperíodo, do gráfico da página 6.
No final do Programa de Ajustamento, de facto, éramos um país globalmente menos desigual do que antes. Além disso, antes éramos um país onde a desigualdade estava a aumentar. Depois, passámos a ser um país onde a desigualdade esteve a descer, apesar da fortíssima pressão em contrário do mercado.
De facto, o que é verdadeiramente notável é a diferença marcada das trajetórias dos rendimentos antes de depois de transferências, de 2012 em diante. Sem a leitura comparada dessas tendências, não se percebe o que se passou.
É impossível que, em tais circunstâncias, as políticas públicas pós-Programa de Ajustamento, com incidência no rendimento monetário, tenham tido globalmente um carácter regressivo, não protegendo setores de rendimentos mais baixos, como sugerem os autores.
Houve medidas com caracter regressivo, antes e depois do Programa de Ajustamento, mas, depois do ajustamento, a natureza do mix de medidas foi necessariamente muito progressiva, e bastante mais progressiva do que de 2010 para 2011. De outra forma a desigualdade teria disparado, e não invertido a tendência ascendente.
Neste passo, encontramos alguma ajuda dos autores, ainda que involuntária. Com efeito, o estudo apresenta uma análise do contributo das diversas fontes de formação do rendimento para a desigualdade, que reproduzimos na parte em fundo neutro da tabela em baixo.
E reproduzimos as instruções de leitura dos autores (pág. 40):
A contribuição de cada fonte de rendimento para a desigualdade do rendimento disponível é expressa em termos percentuais, sendo que um valor negativo significa que essa fonte tem um efeito equalizador (contribui para a redução da desigualdade) e que um valor positivo tem o efeito inverso (contribui para o seu aumento).
Acrescentámos apenas o cálculo da importância relativa total dos fatores que aumentam e diminuem a desigualdade, nos três momentos para os quais os autores fornecem dados, a saber, em 2006, 2009 e 2014.
Entre 2006 e 2009, diminuiu ligeirissimamente o peso dos fatores que intensificam a desigualdade: mercado e pensões. Esta informação é consistente com a evolução do índice de Gini para a desigualdade de mercado.
Os fatores identificados que reduzem a desigualdade, em compensação, também perderam peso. Trata-se igualmente de uma perda marginal, mas apesar de tudo residualmente maior do que a perda de importância dos fatores que intensificam a desigualdade. A diminuição da desigualdade no rendimento disponível carece de outras explicações. Em todo o caso, o elemento mais saliente deste período é a perda de influência dos impostos diretos na equalização dos rendimentos.
Diga-se de passagem, que entre os fatores de equalização dos rendimentos analisados, os impostos diretos são destacadamente o principal. Não há nada de estranho nesse facto, dado o caracter progressivo do IRS, tornando-o especialmente eficaz na produção de igualdade de rendimento disponível.
Neste caso não nos é possível introduzir uma distinção entre os subperíodos de 2009 em diante.
Mas um olhar cursivo sobre a tabela, cruzando a sua informação com as grandes tendências identificadas na análise do coeficiente de Gini, permite algumas conclusões.
Entre 2009 e 2014, o mercado aumentou consideravelmente a pressão no sentido da desigualdade, tal como as pensões. Em sentido contrário, os impostos diretos tornaram-se muitíssimo mais equalizadores, numa amplitude que neutralizou praticamente todas as pressões agravantes da desigualdade.
É importante recordar que estiveram congeladas durante a vigência do Programa de Ajustamento quaisquer alterações ao salário mínimo, o que naturalmente representou uma pressão adicional sobre os escalões de mais baixos rendimentos. Terminado o Programa de Ajustamento, foi possível celebrar em sede de concertação social o primeiro acordo de revisão do salário mínimo desde 2011.
Estes desenvolvimentos são inteiramente consistentes com o andamento dos índices de Gini: sabemos que a desigualdade de mercado disparou a partir de 2011 inclusive. Sabemos que a grande alteração nos fatores desagravantes está nos impostos diretos. Sabemos quando se deu a alteração mais significativa na estrutura deste imposto: no ano em que a diferença na desigualdade antes e depois da intervenção dos mecanismos redistributivos regista em enorme alargamento. De cerca de 10 passa a cerca de 15 pontos percentuais, de 2012 para 2013. Em 2014, essa diferença já excedia os 20 pontos percentuais.
Parece claro, pois, que foi o desenho do conjunto das políticas públicas com incidência redistributiva, apenas e só no período pós-Programa de Ajustamento, que não apenas impediu que a desigualdade de rendimentos disparasse, como, inclusivamente invertesse a tendência de subida anterior.
Jorge Costa
Assembleia da República
Assessor do Grupo Parlamentar do PSD
O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor