Incêndios rurais – O triste fado português?
A Terra é vasta, e a sua 'pirogeografia' variou e mudou ao longo da sua história geológica. Os mega incêndios, outrora raros, foram-se tornando cada vez mais comuns, sendo hoje em dia frequentes, quer enquanto acontecimentos isolados, quer englobados em vagas de incêndios.
Esta evolução tem contribuído para as crescentes preocupações da sociedade, uma vez que constituem catástrofes com múltiplos e graves efeitos negativos, levando mesmo, frequentemente, à perda de vidas humanas.
Nos últimos anos, os mega incêndios ocorreram em todos os continentes habitados, tendo causado um elevado número de vitimas humanas e substanciais perdas ambientais, económicas e sociais, em países como a Austrália, o Brasil, o Canadá, a R.D. Congo, a Grécia, a Indonésia, Portugal, a Rússia, Espanha, os EUA, ...., sendo que 96% do total dos 500 mais devastadores, da última década, ocorreram durante períodos de tempo excecionalmente quente e/ou seco.
O recente Relatório de Avaliação Global (GAR2022), intitulado Our World at Risk: Transforming Governance for a Resilient Future, elaborado pelo Escritório das Nações Unidas para a Redução do Risco de Desastre (UNDRR), prevê que, à escala global, até 2030 ocorram em média 560 catástrofes por ano, o que representa 1,5 catástrofe por dia (UNDRR, 2022).
O Global Risks Report 2022 (WEF, 2022), por sua vez, aponta para que, no âmbito dos eventos climáticos extremos (vagas de frio, incêndios, inundações, ondas de calor, tempestades, etc.), ocorra um aumento da perda de vidas humanas, danos nos ecossistemas e destruição de bens e/ou perdas financeiras, igualmente à escala global.
O mesmo relatório identifica, ao nível do ambiente, as falhas na mitigação e adaptação às mudanças climáticas (1º), os eventos climáticos extremos (2º), a perda da biodiversidade (3º), os danos ambientais humanos (7º) e as crises de recursos naturais (8º) entre os 10 riscos mais graves à escala global para os próximos 10 anos, tendo, alguns deles, sido fortemente potenciados pela crise pandémica, ainda, em curso.
No que respeita aos incêndios rurais, Stephen Pyne tem vindo, desde 2015, a avisar que a intensificação dos mesmos, exacerbada pela crise climática, pode inaugurar uma nova era - a Era do Fogo, ou Piroceno. Embora se trate de um aviso intencionalmente provocatório, o facto é que a última década, a nível global, demonstrou que estamos perante uma nova geração de incêndios para a qual nem os territórios, nem as pessoas, nem os atuais sistemas de proteção e socorro estão preparados.
Em Portugal, nas décadas de 1960-70, com a profunda transformação verificada no país, deu-se um aumento da frequência, da dimensão, da intensidade e da capacidade destruidora dos incêndios, o que veio a culminar nas tragédias de 2017.
Com efeito, assistimos ao aumento, tanto do número como da dimensão dos grandes incêndios rurais e, especialmente, da sua capacidade destruidora, pois, se até 1986 nunca tínhamos sido flagelados por um incêndio com dimensão superior a 10 mil hectares, 2003 viu franquear a marca dos 20 mil hectares e, 2017, a dos 40 mil.
Sem sermos exaustivos (não foram aqui incluídos os bombeiros falecidos em acidentes rodoviários, a caminho ou no regresso de incêndios florestais) contabilizam-se 257 vítimas mortais entre 1961 e 2018, destacando-se, pela negativa, os anos de 2017, 1966, 2003, 2005, 1986 e 1985 com 116, 25, 21, 16, 16 e 14 mortos, respetivamente.
Com as mudanças climáticas, associadas às mudanças globais, prevê-se que os eventos extremos (mega incêndios, secas extremas, inundações catastróficas, …) se tornem, gradualmente, na nova «normalidade», agravando em geral a sua frequência, intensidade e capacidade destruidora. Tendo em conta esta realidade, o PNPOT (Programa Nacional da Política do Ordenamento do Território, Lei nº 99/2019 de 5 de setembro) alerta para que o País terá que “estar mais preparado para eventos extremos, onde os riscos poderão ser acrescidos e onerosos … quer em áreas urbanas quer rurais”.
Os incêndios rurais estão a contribuir, decisivamente, para a criação de sistemas socio ecológicos ainda menos resilientes ao fogo e sistemas económicos, cada vez menos rentáveis.
Agravados pelo aumento de eventos meteorológicos extremos, os efeitos das mudanças climáticas vão ter expressões territoriais muito diferenciadas, sendo também um fator de injustiça social, com consequências sobre as desigualdades intra e intergeracionais.
Nas últimas décadas, as mudanças sociais (na família, na estrutura etária e na mobilidade residencial) tiveram uma forte expressão territorial, exibindo vulnerabilidades socio espaciais, pelo que o PNPOT reconhece que, atualmente, em Portugal, a mitigação não é suficiente para lidar com as mudanças do clima, sendo por isso fundamental reforçar a adoção de medidas de adaptação.
Com efeito, atualmente, debatemo-nos com crises que, não sendo novas na sua essência, assumem, por vezes, uma grande dimensão, porque, em parte, os riscos aumentaram em funções dos novos modos de vida, da globalização e das mudanças climáticas, tudo isto a par de uma nova perceção da realidade por parte da sociedade e dos cidadãos, muitas vezes condicionada pelo imediatismo das redes sociais e pela espetacularização dos dramas, promovida por alguns meios de comunicação.
Os incêndios de 2017 vieram, entre muitos outros aspetos, demonstrar a carência de incorporação do conhecimento científico e técnico nas decisões operacionais, bem como a necessidade de se redirecionar a aposta estratégica para a prevenção, alavancada na educação, na gestão florestal e no ordenamento do território, com o objetivo de reduzir o número de ocorrências e as consequências dos grandes(Mega) incêndios, quer pela adoção de medidas prévias conducentes à redução das vulnerabilidades, quer pelo melhor planeamento das ações, quer ainda, pela melhor preparação, coordenação e cooperação de todos os envolvidos.
Portugal sempre esteve e sempre estará sujeito a eventos naturais extremos, potencialmente causadores de vítimas e de elevados prejuízos (ambientais, económicos e sociais), especialmente no atual contexto em que as mudanças climáticas acentuam essa realidade.
Quando se faz uma retrospetiva das políticas em matéria de Proteção Civil, desde 1991 até ao presente (Bento-Gonçalves, 2021), verifica-se que elas foram sendo sistematicamente descontinuadas, reorganizadas/restruturadas e têm sido demasiado reativas e pouco proactivas, não havendo continuidade nem estabilidade, o que em nada contribuiu para garantir uma efetiva segurança de pessoas e bens, nem para a formação de uma cultura de autoproteção das populações.
Esta realidade obriga-nos a tomar medidas de médio e longo prazo, como, por exemplo, o efetivo reforço da educação para o risco, que conduza a uma profunda mudança de comportamentos e atitudes, de forma sustentável e, em simultâneo, à criação e assimilação de uma cultura de autoproteção e de responsabilidade, individual e coletiva. Em simultâneo, deverá ser feita uma aposta séria e continuada no ordenamento do território e na gestão florestal e, um esforço(pacto) político e social nacional que contribua para a efetiva coesão territorial.
Estas apostas não podem descurar as respostas no imediato prazo, e que terão que passar por atitudes de continua análise, prevenção e gestão do risco, adotando metodologias multirrisco, as quais são hoje fundamentais para a gestão dos riscos e exigidas pela Comissão Europeia, e que se enquadram no Quadro de Ação de Hyogo para a Redução do Risco de Desastre 2015-2030, o qual salienta a necessidade da adoção de políticas, estratégias e medidas de redução de impactes baseadas no conhecimento integrado dos fatores de risco.
Acresce a isto a necessidade de haver uma ligação entre a análise multirrisco e a dinâmica custo/benefício e social. Mesmo o cálculo para os riscos individuais, para além de ter em consideração o Risco, a Vulnerabilidade e a Exposição, tem que ter em conta a «Capacidade de reação», que foi introduzida nos cálculos de risco desde há cerca de dez anos, e que dá um significado bastante diferente do ponto de vista do custo/benefício e da dinâmica social, principalmente em termos de prevenção e planeamento de emergência.
O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor.