«Há indícios de um período do Paleolítico ainda desconhecido»
De descoberta em descoberta, João Zilhão tem ajudado a desvendar a história de Portugal primitivo. E há indícios de mais um achado inédito. Será a porta de entrada para um período mais longínquo, sobre o qual (ainda) nada se sabe.
Em Almonda, na região de Torres Novas, estão a ser feitas escavações que podem dar os primeiros vislumbres sobre como era Portugal e a sua população há meio milhão de anos.
O arqueólogo João Zilhão e a equipa descobriram uma jazida com vestígios ainda mais antigos do que o famoso «crânio da Aroeira», com 400 mil anos. A idade concreta permanece um mistério, mas confirmando-se as expectativas, o investigador poderá voltar a fazer história.
Numa entrevista, a propósito do lançamento do seu livro «Portugal na Idade do Gelo», fala sobre os tesouros que o solo português ainda esconde e conta muito do que sabe sobre as populações que cá viveram há centenas de milhares de anos.
Que segredos do Paleolítico pode esconder o solo português?
Ainda esconde quase todos os segredos. Desta era especificamente, ainda não sabemos nada sobre o período anterior a meio milhão de anos. A partir daí começamos a ter alguns vestígios, mas são avulsos, com pouca informação contextual sobre o ambiente, a economia ou o aspeto físico das pessoas.
As fases do Paleolítico melhor documentadas são as mais recentes, mas mesmo assim há ainda «buracos negros».
Tem suspeitas de algum vestígio arqueológico por encontrar em Portugal?
Seguramente haverá mais fósseis como o crânio da Aroeira e a criança do Lapedo. E quando forem descobertos, vão mudar muito a perceção que se tem sobre a evolução humana.
A Península Ibérica, em particular o Sudoeste (Portugal e Andaluzia), foi uma região privilegiada durante toda a Idade do Gelo: as condições ambientais destes territórios eram melhores e as populações estavam mais concentradas, mas sabe-se muito pouco sobre elas.
Há alguma lacuna arqueológica que possa estar prestes a ser desvendada?
As jazidas do Almonda dão-nos indícios de que vamos ultrapassar a barreira do meio milhão de anos. Vamos começar a ter informação sobre um período mais antigo. É o que eu espero que nos próximos anos venha a acontecer.
Esta é uma escavação que está em curso, na gruta do Aderno, onde nos últimos dois anos identificámos níveis mais antigos – por enquanto não sabemos quão antigos -, do que os do crânio da Aroeira.
Qual a descoberta que mais o marcou?
O meu momento «Eureka» foi quando, em dezembro de 1998, vou pela primeira vez ao Abrigo do Lagar Velho, no Vale do Lapedo, e vejo os ossos humanos tingidos de vermelho, algo muito típico de um enterramento com 28 mil - 30 mil anos. Quando vi aquilo foi um rush de adrenalina. Era o menino do Lapedo.
Essa foi uma descoberta revolucionária, que veio deitar por terra o que se sabia sobre a relação entre o homem de Neanderthal e o homem moderno. Porquê?
Durante os anos de 1980, tornou-se dominante a ideia de que os neandertais eram uma espécie diferente, que teriam faculdades cognitivas inferiores e se teriam extinguido com a chegada de uma população de gentes como nós – que supostamente tinha evoluído na África Oriental há cerca de 200 mil anos. A criança do Lapedo, que teria vivido já uns cinco ou dez mil anos depois do desaparecimento dos neandertais, veio demonstrar, por características próprias no seu esqueleto, que tinha havido miscigenação entre neandertais e gentes de tipo físico moderno.
Ao princípio esta ideia inovadora e minoritária foi muito criticada, mas acabou por se revelar correta. E o entendimento do que aconteceu aos neandertais foi completamente renovado. Afinal, não se extinguiram e desapareceram sem deixar rasto. Quando se faz a análise ao ADN fóssil, há componente de neandertal nas populações subsequentes, desde o Paleolítico Superior até ao presente.
Há vestígios do que era Portugal na Idade do Gelo?
Há partes de esqueletos das populações dessa época, as ferramentas de pedra que fabricaram e a sua arte. Há, nalguns casos, estruturas de habitação e lareiras, há vestígios de animais caçados e outros que morreram de causas naturais. Há os vales glaciários da Serra da Estrela – como o vale do Zêzere – que testemunham como o que hoje consideramos um vale, estava, há 25 mil anos, coberto de gelo. Eram centenas de metros de gelo, que formaram um rio de gelo até Manteigas.
Como viviam as populações?
Eram caçadores recoletores – viviam da caça e da preparação de plantas, frutos e tubérculos. Juntavam-se em pequenos grupos, de três/quatro famílias, que para sobreviver exploravam juntos um território.
No final do Paleolítico, Portugal era povoado por algo como 10 mil habitantes, distribuídos por todo o país, com particular incidência nas regiões de vales e zonas litorais, mais ricas em recursos. O nosso país era muito mais vazio de gente e mais cheio de animais.
As relações eram geograficamente muito extensas, porque no mesmo grupo de 20 ou 30, podia não existir nenhum par para procriar. Procuravam casar fora do grupo e isso significou manter relações de aliança e intercâmbio, que abarcaram territórios muito mais vastos.
Encontramos semelhanças na cultura material e nos estilos artísticos, por exemplo, há 25 mil anos, que abrangem espaços tão vastos quanto Portugal, Espanha e Sul de França. Os animais são representados praticamente da mesma maneira, o tipo de ferramentas é semelhante, com as mesmas técnicas de fabrico, e isso indica redes de circulação de ideias, objetos e pessoas que unem estes territórios.
Em que período surgiram os primeiros vestígios de linguagem? Há quem diga que foi durante o Paleolítico…
A única forma de termos a certeza de haver linguagem é a partir do momento em que há escrita. Daí para trás só podemos fazer inferências.
A inferência que se faz é a de que para que haja coisas como Stonehenge, as pinturas de Altamira, ou o uso de símbolos de identificação pessoal - como pingentes e outros objectos de adorno do corpo - é necessário haver formas de transmissão e acumulação intergeracional de conhecimentos, que exigem a posse de uma linguagem plenamente humana.
Para mim, pessoalmente, faz sentido pensar que há linguagem desde que há cérebros cujo tamanho entre na margem de variação que encontramos na humanidade atual, ou seja, desde há pelo menos um milhão de anos.
Publicou um estudo sobre a simbologia usada no Paleolítico. Que símbolos eram esses?
Pensava-se que a pintura do corpo, o uso de objetos de adorno, a pintura de símbolos de mãos em negativo, a representação de pessoas ou animais era algo que tinha aparecido há 40 mil anos e como resultado do aparecimento do homem moderno.
Através de estudos que fiz com a minha equipa, pudemos demonstrar que os Neandertais já usavam colares pintados de ocre ou pingentes como objetos de adorno pessoal há pelo menos 115 mil anos. E demonstrámos também, pela mesma altura, que tinham sido estes a fazer as primeiras pinturas rupestres em grutas de Espanha: mãos em negativo, símbolos abstratos, pintura de estalactites a vermelho.
E que evidência há de que a música tenha surgido por essa altura?
Os mais antigos instrumentos de música são flautas, com cerca de 30 mil anos. É desde aí que há provas diretas. Se havia nessa altura, é legítimo supor que existe há muito mais tempo. Porque as flautas que se encontram são feitas em osso de pássaro ou em marfim e, portanto, conservam e fossilizam. O que é lógico pensar é que os instrumentos musicais de épocas anteriores seriam em madeira - que não fossiliza - e, por isso, não temos provas.
A minha posição é a de que a capacidade para produzir sons e fabricar cantigas e melodias existe no mundo animal de forma muito extensa. Não há razão para supor que a música não existisse na linhagem humana desde tempos muito remotos.