A História cercada II
A História como área de estudo, encontra-se num período crítico, cercada por tendências opostas que alegando a sua defesa, apenas a procuram instrumentalizar e esvaziar, quer da sua capacidade de descrição e compreensão do passado, quer do seu contributo para contextualizar o presente.
Por um lado, temos o retorno de movimentos nacionalistas, fortemente identitários e exclusivos, que procuram radicar na História as suas opções actuais no sentido de expansionismos, separatismos ou isolacionismos, enquanto por outro temos as tendências auto-proclamadas «críticas», herdadas de um pensamento pós-moderno, pós-colonial, neo-feminista e o que mais possamos identificar, que reclamam a rescrita da História à luz de um conjunto de valores contemporâneos que se apresentam como universais, no tempo e espaço, mesmo se servidos numa bandeja relativista. O que só é paradoxal até certo ponto. Em especial se cruzarmos tudo com as «guerras da linguagem» que se têm travado nas últimas décadas em torno do vocabulário «certo» a usar na comunicação e ensino da História.
Vou recuar quase um quarto de século (Maio de 1998) e recordar uma sessão, em Paris, da Conferência Internacional Vasco da Gama e a Índia, destinada a assinalar os 500 anos da abertura da rota do Cabo e da chegada dos portugueses por via marítima ao litoral indiano, em busca de «cristãos e especiarias», sendo que aqueles já se sabia não existirem por lá, sendo aquelas o verdadeiro motivo de uma viagem longamente preparada.
Na mesa, um historiador português exaltava o feito de Vasco da Gama e prosseguia com o elogio da singularidade da instalação lusitana no Oriente, que ele caracterizava como tolerante e pacífica, por comparação com as práticas posteriores de outras potências europeias. A assistência, formada por portugueses, franceses, ingleses, canadianos, australianos, indianos, entre outros, mantinha aquela compostura protocolar própria deste tipo de iniciativas que funcionam em circuitos fechados, quase sem verdadeiro debate, em que a cortesia é a de se cumprimentar muito os palestrantes, o seu contributo (sempre brilhante ou estimulante ou inovador ou…), cumprir-se a formalidade de uma questão mais ou menos técnica e quase sempre muito específica colocada por um elemento do público, e seguir em frente para o próximo utilizador do microfone.
Coisa que comigo funciona mal, sempre com um défice claro nestas coisas do verniz académico. E questionei, chegada a minha vez, o orador sobre essa «singularidade» da presença portuguesa, pois, desde o primeiro momento, o Gama deixou claro que ou lhe arranjavam as especiarias ou descarregaria pólvora sobre Cochim, tendo cumprido a sua palavra até satisfazerem o seu pedido.
Ou seja, os portugueses tinham sido tolerantes (e foram-no em muitas ocasiões, mas quase sempre por mero pragmatismo) desde que fosse feito o que pretendiam. Caso contrário, bombarda neles. O que era típico da época e da prática dos que se sentiam mais fortes.
Pretendia eu com aquela intervenção apoucar a figura de Vasco da Gama e dos seus feitos, nomeadamente da sua viagem de descoberta de uma longa rota até então nunca feita por europeus? Estava a retirar-lhe a aura de um dos obreiros da grande abertura comercial do mundo que marcaria o século XVI? Nada disso. Estava apenas a tentar que fosse feita uma descrição equilibrada dos factos, interpretados à luz dos valores daquele tempo.
O Gama fez o que tinha ido fazer, da forma como então era suposto ser feito, de acordo com as circunstâncias. Nos dias de hoje, podemos considerá-lo um «imperialista», um «militarista». Em 1498, esses conceitos nem existiam e as práticas que lhes associamos eram consideradas de outra forma, muito mais positiva, heróica mesmo. Devemos esconder isso, recorrendo a artifícios de linguagem, a conceitos contemporâneos, sem explicitar essa divergência de contextos?
A leitura do passado à luz do presente não é algo novo, mas já deveríamos ter ultrapassado essa tentação, em especial se o fazemos de forma selectiva. Porque ouço e leio muita gente a querer derrubar estátuas de «imperialistas» e «racistas» e a rever a História da Expansão europeia, mas não encontro uma vontade equivalente na caracterização de outras sociedades. Ainda me lembro do escândalo provocado pelo filme (certamente exacerbado na sua brutalidade quase demencial) Apocalypto de Mel Gibson, como se fosse ficção a existência de sacrifícios humanos nas sociedades pré-colombianas. Recentemente, foram descobertas centenas de crânios nas ruínas da antiga capital asteca [1] deixando pouca margem para dúvida a respeito destas práticas. Devemos ocultá-las, para não passarmos por produtores de visões «colonialistas»?
Em outras longitudes, estaremos preparados para caracterizar as grandes sociedades e culturas do Extremo-Oriente (China, Japão) como extremamente xenófobas no seu isolacionismo e enorme desconfiança em relação a todos os que não consideravam como seus durante séculos e séculos? Estarão os «purificadores» da História Ocidental, disponíveis para uma abordagem das relações entre os povos asiáticos (como dos africanos) à mesma luz aplicada ao Gama, a Colombo ou a Albuquerque?
E qual é o papel do professor de História perante isto? Perante os seus alunos? Qual é o seu «dever»? Perante alunos de diferentes idades, condições, credos, origens culturais? Procurar apresentar uma verdadeira «História Global», com origem nos anos de 1960, em que todas as culturas merecem ser tratadas com igual dignidade, mas também com igual imparcialidade em relação às suas características? Ou fugir aos temas complexos, procurar versões assépticas, para ninguém incomodar, ninguém perturbar, ninguém ofender?
Nem de propósito… como reagir quando os alunos, mesmo muito novos, nos inquirem sobre os acontecimentos no leste europeu? Com toda a dificuldade que isso acarreta, procuro em muitos momentos seguir o que há 2500 anos Tucídides já descrevia como as exigências da sua missão, que era a do «historiador», tal como ele ajudou a defini-la na prática. Que se aplicam a quem escreve, mas também a quem ensina, História e não tem dela a ideia de uma disciplina que só interessa instrumentalizar de acordo com os sabores e conveniências do dia.
«Deve-se olhar os fatos como estabelecidos com precisão suficiente, à base de informações mais nítidas, embora considerando que ocorreram em épocas mais remotas. (…) O empenho em apurar os fatos se constituiu numa tarefa laboriosa, pois as testemunhas oculares de vários eventos nem sempre faziam os mesmos relatos a respeito das mesmas coisas, mas variavam de acordo com suas simpatias por um lado ou pelo outro, ou de acordo com sua memória. Pode acontecer que a ausência do fabuloso em minha narrativa pareça menos agradável ao ouvido, mas quem quer que deseje ter uma ideia clara tanto dos eventos ocorridos quanto daqueles que algum dia voltarão a ocorrer em circunstâncias idênticas ou semelhantes em consequência de seu conteúdo humano, julgará a minha história útil e isto me bastará». (Tucídides, História da Guerra do Peloponeso; Brasília/São Paulo: Editora Universidade de Brasília; e Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2001)
[1] “Feeding the gods: Hundreds of skulls reveal massive scale of human sacrifice in Aztec capital”, Science, 21 de Junho de 2018 (cg. https://www.science.org/content/article/feeding-gods-hundreds-skulls-reveal-massive-scale-human-sacrifice-aztec-capital, consultado em 27 de Fevereiro de 2022). Sobre os sacrifícios na cultura Maia, entre muitos outros exemplos, “Death as a human sacrifice awaited some travellers to a Mayan city”, Nature, 17 de Julho de 2019, (cf. https://www.nature.com/articles/d41586-019-02175-6, consultado em 27 de Fevereiro de 2019)
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