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«É necessário capacitar as pessoas que são continuamente discriminadas» na alimentação

«É necessário capacitar as pessoas que são continuamente discriminadas» na alimentação

Excerto do livro «Hábitos alimentares dos Portugueses», de Monica Truninger, publicado na colecção de Ensaios da Fundação.
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Com o correr dos meses, a comunicação social tem dado a conhecer sinais preocupantes dos impactos da pandemia na segurança alimentar. As notícias que surgem regularmente sobre o aumento de pessoas que procuram o banco alimentar prenunciam novas escaladas de insegurança e pobreza alimentar, à semelhança das provocadas pela crise económica de 2011–2015. No IAN‑AF de 2015–2016, a insegurança alimentar atingiu 10,1 % das famílias portuguesas; dentro destas, 2,6 % experimentaram insegurança alimentar moderada ou grave (redução da qualidade e quantidade de alimentos ou privação alimentar e episódios de fome por falta de dinheiro para comprar comida).

Em entrevista à Edição da Noite da SIC a 30 de Julho de 2020, Isabel Jonet (presidente da Federação Portuguesa dos Bancos Alimentares) referia a situação «devastadora» no acesso à alimentação em que viviam várias famílias portuguesas, as quais perderam subitamente os seus empregos ou sofreram cortes substanciais de rendimento por causa do regime de lay‑off. Jonet esclareceu ainda que foi criada a Rede de Emergência Alimentar a 19 de Março, a qual apoiava 380 000 famílias. Durante a pandemia, juntaram‑se mais 60 000 famílias a esta rede, e nos meses de Abril e Maio chegaram cerca de 2000 novos pedidos de ajuda por dia.

Como vemos, não são só os grupos sociais que já tinham recorrido a esta ajuda alimentar a surgirem com intensidade. A procura de ajuda alimentar atinge cada vez mais perfis de beneficiários, fazendo aumentar a pobreza alimentar envergonhada entre quem nunca  passou por estas situações de carência.

Não há dúvida de que as medidas aplicadas para mitigar a pandemia da Covid‑19 constituíram um laboratório vivo onde se encetaram intervenções fortemente disruptivas de rotinas, obrigando uma parte significativa da população portuguesa a transformar os seus hábitos alimentares.

A crise sanitária promoveu uma reflexão em torno das questões da alimentação e provocou uma aceleração de medidas para a transição — já então em curso mas a passos lentos e dispersos — rumo a sistemas agro‑alimentares mais saudáveis, sustentáveis e inclusivos. Neste sentido, tanto o Pacto Ecológico Europeu (PEC) — o qual ambiciona que a Europa chegue a 2050 como o primeiro continente com impacto neutro no clima — como a Estratégia do Prado ao Prato incluída no PEC constituem instrumentos de regulação e intervenção nas práticas alimentares e suas ligações com outras práticas (mobilidade, trabalho, educação, saúde, ambiente, etc.). A missão do PEC — atingir um «crescimento sustentável e inclusivo para impulsionar a economia, melhorar a saúde e a qualidade de vida das pessoas, cuidar da natureza e não deixar ninguém para trás» — está também alinhada com a agenda dos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) das Nações Unidas.

Como é referido no livro, os hábitos alimentares dos Portugueses têm sofrido transformações importantes ao longo do tempo, nas suas diversas fases de aquisição, apropriação e apreciação (e de desperdício alimentar). O grande desafio que a pandemia da Covid‑19 traz é a oportunidade de, no futuro próximo, enveredarmos por trajectórias de construção de um programa alimentar saudável, sustentável e inclusivo, à escala global e nacional, que consolide as «ligações indissociáveis entre pessoas saudáveis, sociedades saudáveis e um planeta saudável» (Estratégia do Prado ao Prato).

Para isso acontecer, é fundamental não deixar ninguém para trás. Isto é, promover uma alimentação que não só coloque as pessoas com mais recursos económicos e escolares na crista da onda da mudança, mas sobretudo que promova uma aproximação gradual das populações com menos recursos a uma alimentação mais equilibrada a todos os níveis. Para isso, é crucial que haja maior empatia na compreensão dos contextos sociais e materiais que norteiam os hábitos alimentares dos grupos mais vulneráveis. Em vez de julgar, é necessário capacitar as pessoas que são continuamente discriminadas. Fica a esperança de que seja implementado um programa mais inclusivo, alterando não só os hábitos alimentares dos Portugueses como também as formas de pensar e intervir sobre a alimentação.

Monica Truninger é socióloga e autora do livro «Hábitos Alimentares dos Portugueses», publicado na colecção de Ensaios da Fundação.

 

O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pela autora.

Portuguese, Portugal