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Deficiência e discriminação: a banalidade da violência

Autor de «Pessoas com deficiência em Portugal» escreve sobre o seu ensaio
3 min
"Porque é que nós [pessoas com deficiência], para sermos socialmente valorizados, temos que ser os melhores em tudo o que fazemos?”.

Esta foi a questão que, em 2007, aquando do início do trabalho de campo com vista à preparação da minha tese de doutoramento, me colocou um dirigente de uma organização de pessoas com deficiência.

Confesso que na altura, para decepção do meu interlocutor, tive grande dificuldade em desconstruir e explicar este fenómeno.

Na verdade, a discriminação das pessoas com deficiência opera de formas muito variadas, mais ou menos veladas, mais ou menos conscientes e a diferentes níveis, unidas unicamente pelo seu resultado: a opressão, a menorização e a exclusão da pessoa com deficiência. A montante deste processo encontram-se ideias estereotipadas da deficiência, da pessoa com deficiência e do seu papel na sociedade.

Longe de ser irrelevante, a forma como entendemos a deficiência influencia decisivamente os direitos e as vidas daqueles/as a quem é atribuída ou imputada esta condição e reflecte-se no conjunto de oportunidades de participação, de autonomia, de liberdade e de desenvolvimento que lhes são proporcionadas. Alicerçada numa ideologia opressora e em relações de poder social e culturalmente legitimadas, a discriminação das pessoas com deficiência, mais não faz que reproduzir essas concepções, que à custa de uma incessante reiteração se apresentam como naturais e, portanto, inquestionáveis. A discriminação das pessoas com deficiência constitui, assim, um mecanismo de construção e reprodução da diferença baseado num sistema de classificação hierárquico e essencialista que inventa e glorifica a ideia de normalidade.

As manifestações deste processo de discriminação estão longe de ser uma realidade do passado. Nas sociedades actuais, as pessoas com deficiência continuam a ser alvo de fenómenos de exclusão, de opressão e de violência física, verbal e psicológica. Para além do conjunto de barreiras que as impedem de participar activamente na vida em sociedade e de acederem ao espaço público, ao emprego e à educação, no seu dia-a-dia as pessoas com deficiência enfrentam, ainda, uma multiplicidade de situações de humilhação simbólica e identitária.

Vivemos num contexto em que só as formas mais gritantes de violência conseguem granjear reconhecimento e reprovação social, fazendo com que a grande maioria das formas de discriminação das pessoas com deficiência sejam invisibilizadas pelo véu da banalidade, mercê da sua reprodução e naturalização.

De facto, como talvez tenha ficado patente no meu silêncio ante as palavras do meu interlocutor, existe uma dificuldade alargada em identificar e denunciar as formas de opressão e discriminação que, por não emergirem como violências óbvias, se encontram totalmente banalizadas.

Se a nível internacional tem sido feita uma importante caminhada no sentido de reduzir a exclusão social e a discriminação de que as pessoas com deficiência são alvo e para combater a realidade da violência direccionada, em Portugal, em face das condições objectivas de existência e das oportunidades de vida dispensadas às pessoas com deficiência, os esforços terão de ser redobrados. Para além da necessária eliminação das barreiras físicas e da exclusão social e económica que obstaculizam a participação das pessoas com deficiência na vida da sociedade portuguesa, urge proceder a uma profunda revolução cultural capaz de eliminar as barreiras psicológicas e atitudinais que contribuem para a reprodução das diferentes formas de discriminação e para a sua sublimação em fenómenos de violência.

O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor

Portuguese, Portugal