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Texto de Patrícia Carvalho, autora do livro 'Ainda aqui estou'.

Dedicatória

Texto de Patrícia Carvalho, autora do livro 'Ainda aqui estou'.
4 min
«Não foi fácil escrever este livro, voltar àqueles incêndios que, não tendo sido meus por não ter perdido ali nada nem ninguém, foram de todos nós porque todos nós nos perdemos um pouco naqueles dias.»

 

“Cecília estica o braço e aponta em frente, para lá da vivenda amarela a que chama casa, para lá da vila de Castanheira de Pêra, para a colina que molda o horizonte. ‘Foi ali que o fogo começou’, diz.” É este o início da primeira das histórias de Ainda aqui estou. O que não contei no livro foi o que aconteceu a seguir, a minha reacção àquele braço estendido, àquelas palavras de Cecília. Tentei responder-lhe. Só consegui dizer “eu estive aqui no dia seguinte” e as lágrimas que me subiam aos olhos e à voz não me deixaram continuar. Parei. Engoli-as. Senti-me envergonhada. Não estava à espera que aquilo me acontecesse, tantos meses depois do incêndio. Pedi-lhe desculpa. A ela e ao marido, Fernando Tomé, bombeiro da corporação de Castanheira de Pêra que, ali, ao lado dela, à minha frente, tinha à vista muitas das marcas físicas daquela noite de inferno em Pedrógão Grande. Eles disseram que compreendiam, que não fazia mal e continuámos.

Tenho, da conversa que se seguiu com ambos e a que se juntou a bombeira Filipa Rodrigues, uma gravação de mais de duas horas. Está cheia de vozes embargadas, de frases interrompidas para engolir as lágrimas e do choro convulsivo de Cecília quando relata o que foi para ela aquela noite em que o marido e o filho foram queimados pelas chamas que deviam combater. Há muitas lágrimas nessa conversa a quatro, mas nenhuma foi minha. Felizmente.

Não foi fácil escrever este livro, voltar àqueles incêndios que, não tendo sido meus por não ter perdido ali nada nem ninguém, foram de todos nós porque todos nós nos perdemos um pouco naqueles dias. E regressar custou, mas - e essa é a condição que nós, os jornalistas, os que contam a realidade, têm de enfrentar -, não podia deixar que aquele fosse o meu momento. Que aquela fosse a minha dor. Que eles tivessem de limpar as minhas lágrimas. Consolar-me. Permiti-lo seria um desrespeito pelo sofrimento real que a pele deles me mostrava.

Por isso fiquei aliviada por as lágrimas serem só deles. Lágrimas de direito e com tanta razão de ser. Nenhuma outra entrevista foi tão dolorosa quanto esta. Da muita dor, perda, desespero e esperança de que fala o Ainda aqui estou nenhuma será tão difícil de ler quanto a história de Tomé, Filipa e Cecília.

Não hesitei, por isso, quando, há dias, um colega da Antena 1 me perguntou qual era a mais emocionante de todas as histórias do livro. São todas, claro que são todas, mas esta é a única que foi quase totalmente contada com lágrimas e acho que isso se nota. Uma amiga de Oliveira do Hospital tentou ler este capítulo duas vezes e disse-me que não conseguia avançar. Começava a chorar e tinha de parar. Aconselhei-a a passar à frente, a ler os outros e depois regressar ali. Ela, que está longe e viveu à distância o desespero de saber que o fogo lhe entrava pela terra onde estavam os pais, fez isso mesmo e só depois de ter chegado ao fim do último capítulo conseguiu regressar ao início. E terminar.

Por tudo isto, se tivesse dedicado este livro a alguém seria a Cecília e ao Tomé. E à Filipa. Talvez, especialmente, à Filipa. Porque ela é tão nova e tem tanta dor marcada na carne. Ninguém devia ter sofrido aquilo, carregar aquelas marcas e memórias para sempre. Ver a vida, assim, interrompida.

Que passe. Que fique mais leve. Que não volte a acontecer. Para a Filipa e todos os que enfrentaram os incêndios do ano passado. Se o Ainda aqui estou tivesse uma dedicatória gravada nas páginas, era isto que diria. 

Patrícia Carvalho é autora do livro Ainda aqui estou, publicado pela FFMS.

 

O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor.

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