Chegou 2021, e agora?
O ano de 2020 trouxe-nos várias lições. A primeira é que shit happens. Eventos extremos que viram a nossa vida ao contrário acontecem raramente – mas acontecem. A segunda é que a humanidade é capaz de coisas extraordinárias. Graças ao progresso tecnológico, conseguimos fechar-nos em casa mantendo parte da nossa atividade. Graças ao progresso científico, menos de um ano depois do primeiro caso de infeção pelo vírus SARS-CoV-2, Margareth Keenan era a primeira pessoa a receber a vacina, numa imagem que percorreu o mundo, mostrando-nos a luz ao fundo deste túnel negro em que andamos metidos. A terceira é que os dois grandes riscos desta pandemia, para a saúde e para o conforto material, afetam cada uma e cada um de nós de forma muito diferente. A burguesia educada do sector dos serviços continuou a trabalhar em casa, protegendo rendimento e saúde. Os chamados trabalhadores essenciais – da saúde, dos transportes, das cadeias de aprovisionamento do comércio, das fábricas – continuaram a trabalhar, muitos deles arriscando a saúde para tal. E depois estão todas as pessoas que trabalham nos sectores mais afetados pela pandemia: o alojamento, o turismo, a restauração, que perderam tudo ou quase tudo.
O que é que aí vem? A boa notícia é que daqui é quase impossível que piore.
Em 2021, vai haver crescimento económico. As previsões de crescimento variam entre os 1,7%, da OCDE e os 6,5% do FMI. O intervalo de valores reflete a incerteza do momento. Independentemente de quem prevê – Banco de Portugal, FMI, OCDE, Conselho das Finanças Públicas, Ministério das Finanças ou Comissão Europeia – nenhuma previsão para 2021 recupera o trambolhão de 2020. Portanto, vamos demorar alguns anos, talvez três ou quatro, a voltar aonde estávamos em 2019 – esta é a má notícia.
Há nuvens negras no horizonte. Portugal tinha, em junho, a terceira maior percentagem de créditos abrangidos por moratórias na União Europeia. O maior peso, de quase 50%, era no Chipre, uma economia com características particulares, devido ao peso do sector financeiro. Logo a seguir vinham Hungria e Portugal – ambos com cerca de 22%. Em milhões de euros, Portugal é o quinto país da UE com mais créditos abrangidos por moratórias, atrás de economias muito maiores, como França, Espanha e Itália, e muito perto dos Países Baixos. Quando as moratórias expirarem, as empresas e as famílias vão ter de voltar a cumprir os seus compromissos de crédito. Entretanto, teremos atravessado mais de um ano na pior crise de que temos memória e a economia não vai estar de volta ao ponto de partida, como mostram as previsões das diversas instituições. É inevitável que muitas destas famílias e empresas entrem em incumprimento. Com elevada probabilidade, seguir-se-á desemprego e um aprofundamento da crise no sector imobiliário.
Há esperança? Claro que sim. Enquanto há vida (e política) há esperança. Só que é preciso ir agindo.
No curto prazo, é preciso fazer o trabalho de casa para gastar bem o Fundo de Recuperação e Resiliência da União Europeia que poderá começar a chegar na segunda metade do ano. Como escrevi no Público logo no início de agosto: “o sector público tem dificuldade em produzir informação útil de apoio à decisão, apesar do esforço despendido por muitas pessoas motivadas. Só que sem os ovos do investimento em capacitação técnica e de recursos humanos, não conseguem fazer omeletes. Esta é a mesma informação que é necessária para comunicar com transparência os recursos utilizados e os resultados obtidos em cada uma das esferas da atuação pública. (…) usar o dinheiro bem e de forma transparente só depende de Portugal. Aí, não temos desculpa. Se daqui a dez anos acordarmos da orgia com uma grande ressaca, teremos perdido a oportunidade não de uma, mas de várias gerações.”
No médio prazo, é preciso pensar em instituições políticas que permitam redistribuir os ganhos da extraordinária criatividade humana que criou a vacina e a tecnologia. Assim, quando shit happens again, poderemos partilhar riscos e distribuir ganhos. Como ainda estamos na quadra festiva, sonhar é possível.
O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pela autora.