O fim do compromisso sueco
“The Winner Takes It All” é um dos maiores sucessos da mítica banda sueca ABBA. O tema foi inspirado pelo divórcio de um dos dois famosos casais do grupo, Agnetha e Björn [1]. Na verdade, a letra poderia, com melodrama, contar a história do fim de muitos compromissos. Na Suécia ou noutra geografia.
Mas, “the winner takes it all” é também uma expressão utilizada para caracterizar sistemas eleitorais e sistemas políticos em que o vencedor ou um partido maioritário tende a conquistar todo o poder. Ou seja, onde há claros vencedores e vencidos. Por isso mesmo, não serve para caracterizar o modelo de democracia adotado na Suécia. Se na taxa bruta de divorcialidade podemos encontrar a Suécia no primeiro patamar dos países da União Europeia[2], na política o temperamento sueco tende mais para valorizar o compromisso.
Por conseguinte, vale a pena notar que o voto de não confiança no primeiro-ministro Stefan Löfven, que teve lugar no dia 21 de junho, foi o primeiro da história da Suécia a ser aprovado[3]. É certo que o governo formado por uma coligação entre o Partido Social Democrata e os verdes é minoritário e que os dois partidos ocupam apenas 116 (100+16) dos 349 lugares do parlamento. No entanto, há muito que os suecos se habituaram a governos minoritários. E, sobretudo, a acordos interpartidários capazes de garantir não apenas a estabilidade governamental mas também um considerável consenso em matéria de políticas públicas. Que o diga o próprio Stefan Löfven, que desde 2014 lidera um governo minoritário que foi sobrevivendo em grande medida devido a essa cultura e prática política.
Longe vão os tempos da hegemonia incontestada do Partido Operário Social Democrata da Suécia (nome oficial), que esteve no governo ininterruptamente desde 1932 até 1976. A partir dos anos 70 nota-se uma ligeira oscilação e decréscimo no eleitorado social democrata (entre 1936 e 1970 sempre acima dos 45%), mas é a partir do final dos anos 90 que o decréscimo é mais acentuado. O novo século consumou o desalinhamento de grande parte do eleitorado com o Partido Social Democrata, o fim da sua autossuficiência para formar governos de esquerda e a necessidade de conviver com os verdes e o Partido da Esquerda[4]. Ao centro e centro-direita a realidade sempre tinha sido diferente. Nunca houve um partido hegemónico, com o eleitorado a dividir-se entre o Partido Moderado, o Liberal, o do Centro e mais tarde os democratas-cristãos.
Assim, passou-se de um sistema dominado pelo Partido Social Democrata, para um sistema dividido em dois blocos partidários. Um à esquerda e outro ao centro-direita, cuja aspiração de governar parecia depender de conseguir somar e articular uma maioria de 175 deputados no Riksdag. Contudo, o sistema partidário não se manteve imóvel nesta geometria de dois blocos simétricos. As últimas duas décadas são também marcadas pela ascensão eleitoral dos Democratas Suecos, partido populista e anti-imigração, posicionado na extrema-direita. Primeiro, paulatinamente: ao longo da primeira década não chegam aos 3%. Depois, em claro crescimento: 5,7% (2010), 12,9% (2014), e 17,5% (2018).
São vários os impactos da ascensão dos Democratas Suecos, mas tentemos sumarizar as consequências para os equilíbrios no sistema partidário e na formação de governos. Esta conquista de eleitorado pela extrema direita veio tornar mais difícil a obtenção de uma maioria formada pelo bloco dos partidos do centro e da direita “tradicionais”. Se durante décadas o sistema partidário foi assimétrico devido à hegemonia dos sociais democratas, o avanço da extrema direita na arena parlamentar criou uma nova assimetria.
A reação dos restantes partidos a esta nova configuração parlamentar foi em linha com as tradições centristas (centro-esquerda) e de compromissos interpartidários suecas. Na sequência das eleições de 2014, nenhum dos blocos conseguiu uma maioria. Aliás, à esquerda os três partidos fizeram campanha em separado e a soma de sociais democratas, verdes e Partido da Esquerda ficou-se pelos 159 deputados. Os quatro partidos do centro direita apresentaram-se em coligação mas obtiveram apenas 141 lugares. Os 49 lugares dos Democratas Suecos ficaram de fora destas contas. A solução adotada seria a de um governo minoritário de coligação dos sociais democratas e dos verdes, deixando assim o Partido da Esquerda também de fora da governação.
Mas foi uma crise na aprovação do orçamento para 2015 que daria origem a um acordo interpartidário entre os dois partidos do governo minoritário e os quatro da aliança de centro direita, firmado em dezembro de 2014 e que ficaria conhecido precisamente por “Acordo de Dezembro”. Entre várias disposições, na prática os signatários comprometiam-se a viabilizar governos minoritários liderados pelos partidos mais votados, assim como os seus orçamentos. No fundo, o acordo formalizava o compromisso do centro direita de não pactuar com os Democratas Suecos e o dos sociais democratas a procurar entendimentos ao centro. O “Acordo de Dezembro”, propriamente dito, que deveria vigorar até 2022, acabou por ser rompido em outubro de 2015 pelos democratas cristãos[5], mas a solução de governo acabaria por se manter com o apoio dos restantes partidos de centro direita e por se repetir após as eleições de 2018.
A aprovação de um voto de não confiança ao primeiro-ministro com os votos favoráveis do Partido Moderado (70), Democratas Suecos (62), Partido da Esquerda (27) e Democratas Cristãos (22) é a prova de que o sistema partidário continua em movimento. É verdade que face à erosão do governo (em particular no contexto do combate à pandemia) não era expectável que o centro direita pudesse ficar “refém” para todo o sempre destes equilíbrios. Também é certo que graças ao sistema de governo parlamentar e à longa tradição de acordos interpartidários ainda vários cenários estão em aberto. Mas dificilmente a configuração do sistema partidário e a formação de governos na Suécia irá manter-se dentro dos limites dos anteriores compromissos.
O que se segue então? Um novo bloco à direita com a inclusão dos Democratas Suecos ou, pelo menos, a não exclusão?
Por exemplo, na Finlândia, em 2015 o Partido dos Finlandeses obteve 17,7% dos votos e acabou por integrar uma coligação governamental com Partido do Centro e o Partido da Coligação Nacional. É certo que em 2017 enfrentaria uma importante cisão parlamentar que o levaria de volta à oposição, mas em 2019 voltaria a conquistar o segundo lugar e 17,5% dos votos. Pelo caminho, alguns assinalam como o partido se foi moldando às regras institucionais, em particular do parlamento, e foi procurando compromissos de modo a influenciar a ação e o programa de governo[6].
Não temos bolas de cristal para saber exatamente o que acontecerá na Suécia. Uma institucionalização dos Democratas Suecos conduzirá a uma maior polarização e uma maior radicalização das políticas defendidas pelos partidos de direita? Ou assistiremos a uma moderação deste partido e uma adaptação à política de compromissos de modo a ser mais influente nas políticas públicas, designadamente em matéria de imigração? Uma mistura destes dois cenários? Em que grau? Serão as novas forças centrifugas mais dinâmicas do que as tradicionais forças centrípetas? Como evoluirá a competição entre os partidos dominantes e este challenger[7]?
Uma coisa é certa, o sistema partidário continuará a mover-se e a viabilização de governos não será fácil.
O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor.
[1] https://abbasite.com/articles/the-winner-takes-it-all-the-story-of-a-masterpiece/
[2] https://www.pordata.pt/Europa/Taxa+bruta+de+divorcialidade-1565
[3] A votação está disponível na página oficial do parlamento sueco: https://www.riksdagen.se/en/news/2021/jun/21/the-riksdag-calls-for-declaration-of-no-confidence-in-prime-minister-stefan-lofven-social-democratic-party/
[4] A entidade oficial de estatísticas da Suécia disponibiliza os resultados das eleições desde 1910: https://www.scb.se/en/finding-statistics/statistics-by-subject-area/democracy/general-elections/general-elections-results/pong/tables-and-graphs/historical-statistics-of-election-results/historical-statistics-of-elections-19102018/
[5] https://www.thelocal.se/20151009/swedish-party-votes-to-quit-budget-deal/
[6] Poyet, C. e Raunio, T. (2021) “Confrontational but Respecting the Rules: The Minor Impact of the Finns Party on Legislative–Executive Relations” Parliamentary Affairs, gsab010, https://academic.oup.com/pa/advance-article/doi/10.1093/pa/gsab010/6168571
[7] De Vries, Catherine E. e Hobolt, Sara B. (2020), Political Entrepreneurs: The Rise of Challenger Parties in Europe, Princeton e Oxford, Princeton University Press.