
Compreender as incertezas políticas e dos mercados na era da transição energética
O futuro da oferta e da procura de energia – tal como a natureza da geopolítica e dos mercados de energia – é altamente incerto. Mesmo que as maiores economias mundiais consigam, até meados do século XXI, alcançar o objetivo das zero emissões líquidas de gases com efeito de estufa, não sabemos até hoje como é que o vão fazer. O facto de a sociedade precisar de manter o acesso contínuo a energia segura e a preços comportáveis ao longo do processo de transição é mais um fator de complexidade – e de urgência.
Há vários grupos de investigação e empresas de energia que têm desenvolvido cenários mundiais de emissões nulas, nomeadamente o Net-Zero Emissions by 2050 Scenario (Cenário de emissões líquidas nulas até 2050; NZE), da Agência Internacional de Energia (AIE), o Shell’s Sky 2050 Scenario (Cenário Céu 2050 da Shell) e o Net Zero Scenario (Cenário de emissões líquidas nulas), da BP. Estes cenários não pretendem ser previsões; trata-se, antes, da exploração de possíveis formas de o mundo alcançar os objetivos climáticos definidos no Acordo de Paris. As emissões mundiais continuam a aumentar, pelo que é fundamental sublinhar que o mundo não está de facto a percorrer o caminho rumo às emissões líquidas nulas.
Para iniciar essa trajetória, é necessário adotar mudanças maciças em termos de políticas públicas, de tecnologias, comportamentos e mercados. Neste paper, vamos centrar-nos na análise dos cenários de emissões líquidas nulas enquanto metas potenciais – que dependem necessariamente da correção do rumo em matéria de ambiente –, e não enquanto metas que sejam por ora expectáveis.
Além disso, há uma ampla gama de possíveis caminhos para alcançar um mundo com zero emissões líquidas de gases com efeito de estufa, consoante as políticas futuramente adotadas, as inovações tecnológicas e as preferências dos consumidores. O gráfico que se segue reúne cinco análises de cenários que contemplam combinações de fornecimento de energia primária num mundo capaz de alcançar o objetivo de limitar o aumento da temperatura média global a 1,5 graus Celsius.
Em todos estes cenários, assume-se um papel muito mais preponderante das energias renováveis, mas há variações significativas quanto ao volume total da procura de energia e aos papéis desempenhados por outros combustíveis e tecnologias, incluindo os combustíveis fósseis, a energia nuclear e a bioenergia.
Ao reconhecermos o extremo grau de incerteza em torno do futuro sistema mundial de energia, temos de ser humildes quanto à nossa capacidade para fazer previsões e estar abertos a surpresas. No passado, não foi incomum que as mentes mais brilhantes se relevassem erradas. Por exemplo, em 2003, o National Petroleum Council (Conselho Nacional para o Petróleo) dos EUA sugeriu ao secretário da Energia que o futuro do gás natural norte-americano implicaria a importação de grandes quantidades de gás natural liquefeito (GNL). Em vez disso, uma mera década depois (em 2016), graças à chamada «revolução do xisto», os EUA tornaram-se um exportador líquido de GNL e são hoje o maior exportador mundial de GNL.
Além do mais, os acontecimentos mundiais podem ter impactos desproporcionais nos mercados e no fornecimento de energia. Foi o caso da invasão da Ucrânia pela Rússia em 2022, que alterou significativamente os mercados mundiais de petróleo e de gás e voltou as atenções de todo o mundo para a segurança energética. A Rússia suspendeu a maioria do seu abastecimento de gás por gasodutos à Europa, e o Ocidente tem procurado reduzir as receitas russas do petróleo através da imposição de tetos máximos de preço.
Ao mesmo tempo, os ataques perpetrados pelos houthis a navios no Mar Vermelho afetam uma das principais rotas comerciais, e a China proibiu recentemente a exportação de três minérios essenciais aos EUA. Por outro lado, com a queda de Bashar al-Assad na Síria e a guerra em Gaza, o Médio Oriente encontra-se destabilizado.
Por fim, a eleição do presidente Donald Trump levanta várias questões sobre o modo como os EUA irão interagir com o resto do mundo. No momento em que escrevemos este paper, a administração norte-americana está a alterar as relações tanto com os seus aliados como com os seus adversários. Na campanha eleitoral, Trump prometeu que os EUA iriam abandonar os esforços destinados a reduzir as emissões de gases com efeito de estufa e a combater as alterações climáticas, mas ainda não é clara a forma como o resto do mundo irá reagir. O abastecimento de energia – e as formas de produção de energia – estará sempre intimamente relacionado com a geopolítica.
Para além da incerteza sobre o caminho que o sistema mundial de energia irá percorrer no futuro, outras questões também se levantam. Se é certo que a transição para um novo sistema energético acarreta a gestão de igualmente novas dimensões de risco e de vulnerabilidade, também é verdade que essa transição pode mitigar as habituais preocupações geopolíticas em torno da vulnerabilidade a quebras no abastecimento de energia.
Nos últimos 50 anos, as equipas da AIE e outros agentes importantes do mercado energético têm-se dedicado ao desenvolvimento de ferramentas para enfrentar os riscos envolvidos no abastecimento de energia, nomeadamente através da criação de reservas e do programa de resposta coordenada da AIE.
Há também importantes produtores de petróleo, como a Arábia Saudita, que têm capacidade para aumentar a sua produção, ajudando assim a estabilizar o mercado. No entanto, não existe nenhum programa coordenado deste tipo que se aplique à nova economia energética.
Eventuais quebras no abastecimento de produtos ou matérias-primas associados às energias limpas têm um impacto menos imediato do que as que se verificam no abastecimento de petróleo, mas podem ter consequências graves no que toca ao ritmo da transição energética e aos investimentos nas novas indústrias energéticas em todo o mundo.
O desenvolvimento de medidas que permitam lidar com as quebras de abastecimento no setor das energias limpas (ou com a sua escassez a partir desse momento) irão desempenhar um papel importante para compreendermos as implicações geopolíticas da transição energética e na aceitação generalizada da transição para um sistema energético que tem de ser seguro, com preços acessíveis e sustentável.
Uma das questões relacionadas com o ritmo da transição energética e as suas consequências geopolíticas vai ser o grau de globalização do sistema energético e, mais genericamente, do sistema económico.
Será que um crescente enfoque dos EUA e da Europa na criação interna de empregos e de cadeias de abastecimento resilientes e «provenientes de países amigos» irá aumentar os custos energéticos ou alterar o ritmo da transformação e as formas de energia atualmente em desenvolvimento? Será que as restrições comerciais irão reduzir o crescimento económico e, por consequência, a procura de energia? O atual domínio, por parte da China, em produtos como os painéis solares e os minérios essenciais, bem como a sua predisposição para usar esse domínio como arma geopolítica, aumenta ainda mais a relevância destas questões. Se é certo que o ensejo de diversificar a oferta de produtos de energia limpa faz todo o sentido numa perspetiva securitária, também é verdade que cria o risco de aumentar os custos e dividir os mercados.
A incerteza não serve, evidentemente, de desculpa para a inação. Apesar da grande incerteza quanto à forma como a oferta, a procura e o comércio mundiais de energia vão evoluir, há uma série de fatores com os quais podemos contar. Recorrer a estes indicadores «altamente fiáveis» pode ajudar a tomar decisões em cenários de incerteza.
Mesmo nos países ricos, o acesso à energia sobrepõe-se às preocupações de sustentabilidade
No «trilema» da transição energética – otimizar a segurança do aprovisionamento, o preço e a sustentabilidade ambiental –, em tempos difíceis, a sustentabilidade passa muitas vezes para segundo plano.
O acesso à energia implica a ideia de segurança e de acessibilidade económica, ou seja, que haja oferta suficiente a preços comportáveis. Em contextos de tensão, a segurança energética será sempre o fator mais importante. A energia é essencial à vida moderna, e mesmo os países empenhados em fazer a transição energética tratarão de alterar as suas políticas caso o acesso à energia seja posto em causa — conforme, aliás, ficou demonstrado na recente crise de fornecimento de gás à Europa.
A acessibilidade dos preços da energia – um conceito claramente subjetivo que não é consistente em todos os países nem entre todos os tipos de consumidor – será sempre um indicador do bem-estar económico. As grandes variações nos preços da energia não só afetam negativamente os consumidores e as empresas como também diminuem a confiança nos governantes eleitos e as respetivas taxas de aprovação.
Nenhum governo que queira combater as alterações climáticas conseguirá manter-se tempo suficiente no poder caso a população considere que não esteja a garantir, no imediato, o fornecimento seguro de energia a preços acessíveis. Os governos e os mercados têm de assegurar um sistema energético que aprovisione energia de forma segura e a preços acessíveis ao longo da transição energética, e que não se centre apenas no objetivo final pretendido. Idealmente, uma abordagem consensual que incorpore todo o espectro político resultaria num ambiente de políticas estáveis, capaz de promover o investimento em energias mais limpas.
Não vamos assistir a uma só transição energética, mas sim a várias transições a vários ritmos
A velocidade e a natureza das transições energéticas serão muito variáveis de país para país. São fatores a ter em conta: os níveis de riqueza, os modelos de desenvolvimento económico e os pontos de partida quanto ao consumo de energia; também o são a disponibilidade de terrenos, as dotações de combustíveis fósseis, de minérios e de recursos renováveis como o sol, o vento e o potencial hidroelétrico.
Para se desenvolverem, as economias emergentes precisam de mais energia. Mais de mil milhões de pessoas são «energeticamente pobres», o que significa que não utilizam eletricidade suficiente para obterem um impacto significativo nas suas vidas, incluindo pessoas com acesso a uma oferta demasiado incerta ou cara para que lhes possa ser útil. Até certo ponto, a utilização de energia tem uma forte correlação com vários indicadores do bem-estar da humanidade, nomeadamente a esperança de vida, a mortalidade infantil e a segurança alimentar. O aumento da utilização de energia acima de um certo «patamar» traduz-se num menor retorno de bem-estar, mas milhares de milhões de pessoas vivem com bem menos energia do que esse patamar, o que significa que beneficiarão de vantagens significativas se lhes fornecermos mais energia.
A produção descentralizada de eletricidade renovável (maioritariamente solar) pode ser um primeiro passo para aumentar o nível de desenvolvimento e melhorar a qualidade de vida das populações mais pobres do mundo, com custos razoáveis – sobretudo se for articulada com baterias ou com reservas de combustíveis fósseis para gerir as utilizações intermitentes de energia. Porém, é mais dispendioso e tecnicamente exigente desenvolver uma economia industrial totalmente alicerçada em energias renováveis de natureza inconstante.
Além dos desafios técnicos, os custos iniciais deste tipo de projetos são mais elevados, o que torna essencial disponibilizar financiamento a taxas de juro suportáveis. Um responsável do Banco Mundial descreveu assim o desafio: «Os países mais pobres estão presos num círculo vicioso em que pagam mais pela eletricidade, não conseguem suportar os custos iniciais da energia limpa e ficam limitados aos projetos de combustíveis fósseis.»
A eletricidade e a eficiência são essenciais para a transição energética
A eletricidade vai continuar a corresponder à maior proporção do consumo final de energia ao longo do tempo. De facto, em todos os cenários de transição bem-sucedida prevê-se uma ampliação substancial da eletrificação do sistema energético, recorrendo-se à eletricidade para utilizações como o transporte pessoal, o aquecimento de interiores e os processos industriais que hoje recorrem a combustíveis fósseis. Além disso, devido às utilizações informáticas – como os centros de dados, a inteligência artificial e a computação quântica –, a necessidade de energia vai aumentar.
Os cenários conjeturais de transição assumem que o aumento das necessidades é acompanhado pelo recurso a fontes com emissões nulas (maioritariamente renováveis). Em muitas utilizações, a eletricidade é mais eficiente do que a combustão direta de combustíveis fósseis, e este ganho de eficiência pode ajudar a mitigar o aumento das necessidades totais de energia, satisfazendo ainda assim todas as necessidades de serviços energéticos.
O aumento da eficiência energética em todas as utilizações é uma forte tendência do sistema energético mundial. A utilização de energia por unidade de produção económica tem vindo a diminuir ao longo do tempo; porém, para cumprir os cenários de transição e alcançar as emissões líquidas nulas, é preciso que esse ritmo de diminuição acelere rapidamente. No IEA’s Net Zero Scenario, por exemplo, assume-se que, no período entre 2023 e 2030, a energia utilizada por unidade do PIB irá diminuir 4,1% ao ano. Trata-se do dobro do ritmo de diminuição de 2022 e quase quatro vezes mais do que a média dos cinco anos anteriores.
Na primeira edição do roteiro Net Zero, a AIE calculou que, caso não fosse adotada a combinação dos três fatores – eletrificação, melhoria da eficiência tecnológica e mudanças de comportamento –, o consumo energético seria, em 2050, 90% mais elevado. O resultado de adotar essa combinação seria inédito, contrastando com o tradicional padrão de crescimento constante do consumo mundial de energia. Dado que o mundo em desenvolvimento precisa de muito mais energia, os avanços na eficiência são particularmente importantes, permitindo reduzir a necessidade de energia nos países mais ricos e dar maior margem de manobra ao mundo em desenvolvimento. Dos cenários apresentados na figura 1, apenas o cenário Shell Sky 2050 apresenta maior procura de energia primária em 2050 do que hoje em dia.
Mesmo numa transição energética rápida, continua a ser preciso investir em petróleo e gás
Os trabalhos desenvolvidos pela AIE e por outras entidades mostram que o investimento contínuo em petróleo e gás natural vai ser necessário mesmo em cenários de transição para emissões líquidas nulas.
Mesmo nos cenários mais ambiciosos, a diminuição natural da taxa de produção nos poços de petróleo e de gás natural atualmente existentes a nível mundial é mais rápida do que a taxa de diminuição das necessidades no futuro. O petróleo e o gás natural representam atualmente 55% do fornecimento mundial de energia, o que torna especialmente importante a continuidade do investimento nesta área, tendo em conta que, em qualquer dos cenários possíveis, as possibilidades de sucesso dependem da manutenção do acesso à energia a preços acessíveis, seja atualmente, seja ao longo de todo o processo de transição energética.
Estes factos levam a concluir que os alicerces sólidos da transição energética devem consistir sobretudo numa gestão coordenada da oferta e da procura, e não tanto na limitação da oferta de combustíveis fosseis. Reduzir a oferta e, assim, aumentar o preço dos combustíveis fósseis estimularia os consumidores a procurarem alternativas; contudo, se o aumento for demasiado alto, gera-se um problema político, além de graves dificuldades económicas entre os consumidores e os países com rendimentos baixos.
O equilíbrio entre a necessidade de aumentar os preços dos combustíveis fósseis e a revolta política que esse aumento provocaria é um dos grandes desafios da política climática. Implementar políticas que promovam a substituição para reduzir a procura é a opção com mais hipóteses de sucesso para ser politicamente aceite e duradoura.
Sendo o combustível fóssil com menos emissões de gases com efeito de estufa (mediante uma boa gestão das emissões de metano), o gás natural irá provavelmente continuar a desempenhar um papel fundamental no sistema energético, sobretudo nos países menos desenvolvidos. Por exemplo, no Stated Policy Scenario da AIE, o uso do gás natural aumenta (mesmo com o decréscimo do petróleo e do carvão) e, nos cenários de transição mais agressivos da AIE, a taxa de declínio é menos acentuada do que a dos outros combustíveis fosseis.
Tendo em conta estes factos e o estado atual do mundo, podemos identificar algumas das consequências prováveis da transição energética nos mercados e na geopolítica energética.
Haverá outros países a disputar a liderança da China nos novos produtos energéticos
Atualmente, a China depende muito da importação de combustíveis fósseis para sustentar a sua economia. É o maior importador de petróleo a nível mundial, um significativo importador de gás natural e, embora seja o maior produtor mundial de carvão, ainda tem de importar uma pequena parte do carvão de que precisa. Por esta razão, as preocupações com a segurança do fornecimento de energia são especialmente relevantes na China, tornando atrativos os investimentos em produção interna de energia renovável. Além disso, por razões que incluem a sustentabilidade e a concorrência industrial, o governo chinês tem atribuído prioridade ao investimento na indústria das energias verdes (embora continue a investir na eletricidade produzida pela queima de carvão).
A política industrial chinesa e o investimento em novos produtos energéticos têm tido custos elevados, mas que se traduzem num enorme avanço da China e a posicionam como vencedora numa economia de transição energética. Por exemplo, a China é um dos cinco maiores produtores de vários minérios fundamentais para a transição energética, como a grafite, as terras raras e o lítio.
O setor da refinação de minerais chinês, que transforma minérios brutos em materiais utilizáveis, é também particularmente dominante. A China leva a dianteira na refinação de cobre, lítio, grafite, cobalto e de elementos das terras raras. Conforme referido anteriormente, a China já demonstrou que pretende usar a sua superioridade ao nível dos minérios essenciais como forma de pressão geopolítica.
A liderança chinesa também incide sobre alguns produtos que são centrais para a transição energética global. Vários incentivos governamentais têm ajudado a China a desenvolver mais de 80% da capacidade mundial de produção de painéis fotovoltaicos (FV), o que se traduz numa sobrecapacidade significativa. De facto, a capacidade de produção chinesa foi mais do que o dobro da procura mundial de painéis FV em 2023. A China é também o maior produtor e exportador mundial de veículos elétricos (VE), que perfizeram 38% das vendas de carros novos no seu território em 2023, e produz mais de três quartos das baterias dos VE a nível mundial. Como a qualidade dos VE chineses tem melhorado, a fatia das exportações para os países de rendimento elevado atingiu os 60% em 2023.
A forma como os vários países reagem ao domínio chinês nos novos produtos energéticos – e como a China utiliza esse domínio – é uma questão fundamental na transição energética. Por um lado, os países querem que as suas indústrias das novas energias criem emprego e crescimento económico, e nalguns casos compensem a perda de emprego no setor dos combustíveis fosseis. Por outro lado, o avanço inicial da China significa que é mais rápido e mais barato utilizar os produtos chineses do que desenvolver novas indústrias a nível interno.
Os Estados Unidos e a Europa, entre outros, estão a investir para diversificar as suas cadeias de abastecimento de minérios essenciais e de produtos acabados, como baterias, veículos elétricos e painéis solares. O grau de sucesso irá provavelmente variar bastante, e o ritmo da mudança será lento. Por exemplo, a criação de novas explorações mineiras é um processo muito longo, variando entre os 10 e os 20 anos, dependendo da localização e do mineral em causa.
Além disso, a sobrecapacidade chinesa em determinadas indústrias, como os VE e os painéis FV, indicia que pode não ser rentável gerar mais produção. Países que queiram deter as suas próprias indústrias energéticas poderão adotar políticas protecionistas nesse sentido. Por exemplo, tanto a União Europeia (UE) como os Estados Unidos aplicaram taxas alfandegárias aos VE chineses para protegerem as suas indústrias automóveis. As taxas da UE, que variam entre 8% e 35%, dependendo do fabricante, têm como objetivo contrabalançar no mercado os subsídios que essas empresas recebem do governo chinês. As taxas de 100% nos Estados Unidos têm como intenção manter os VE chineses completamente fora do mercado americano.
Os ambiciosos objetivos climáticos da Europa são ensombrados pelas preocupações relativas à concorrência
A Europa está empenhada numa transição energética rápida, tendo já afastado uma grande fatia dos combustíveis fósseis do seu cabaz energético, com a consequente diminuição das emissões de dióxido de carbono. Apesar de uma diminuição significativa do consumo de todas as formas de energias fóssil, a Europa continua a ser um grande importador líquido de petróleo, gás natural e carvão.
Alguns estados europeus tornaram-se líderes no fabrico de novas tecnologias energéticas e reúnem condições para beneficiarem do crescimento do mercado mundial desses produtos – embora seja importante notar que, perante o aumento dos custos e as alterações nos calendários de políticas públicas, houve uma série de empresas europeias a reverem em baixa os seus planos de investimento verde. No entanto, o facto de a Europa depender das importações de materiais para as novas energias (por ex., metais e minérios) é uma potencial ameaça para a competitividade dos seus produtos energéticos, sobretudo num mundo onde as tensões comerciais têm vindo a crescer. A Europa partilha interesses com os Estados Unidos nestas áreas, mas resta saber se a nova administração americana irá encarar a indústria europeia como uma ameaça ou como uma possível aliada vantajosa contra a China.
A dependência europeia das importações de combustíveis fósseis e de materiais e componentes para as energias renováveis faz com que, tanto hoje como no futuro, este continente seja vulnerável às falhas de abastecimento e às tensões comerciais. Após a invasão da Ucrânia pela Rússia, a segurança energética e a concorrência industrial treparam na hierarquia das preocupações da Europa. A subida dos preços da energia foi especialmente prejudicial para as indústrias de grande consumo energético do centro da Europa.
Uma das questões que cada vez mais se coloca aos novos governos na Alemanha e na UE é o modo como a política energética pode equilibrar o crescimento energético e a manutenção do emprego com os objetivos climáticos num ambiente de preços de energia elevados. A «fuga de carbono», a deslocação de investimento para países com regras de combate às alterações climáticas menos exigentes e custos mais baixos é outra das preocupações.
Uma transição energética europeia bem-sucedida obriga a gerir a dependência das importações de todos os tipos de energia. A diversificação das fontes de abastecimento vai desempenhar um papel crucial, tanto no que diz respeito às fontes de origem petrolífera como aos materiais para a energia verde. A Europa vai ser particularmente afetada se os mercados energéticos se tornarem mais repartidos e forem palco de conflitos. Assim, é do interesse da Europa evitar ao máximo que isso aconteça.
Os Estados Unidos são uma grande fonte de incerteza
Os Estados Unidos apresentam-se como uma grande fonte de incerteza para o ritmo de uma transição energética global – tanto por direito próprio, enquanto segundo maior produtor e consumidor de energia do mundo, como pela sua liderança mundial. Se as conseguirem aproveitar para esse fim, as forças que conduziram ao crescimento repentino da exploração do xisto, tornando os Estados Unidos o maior produtor mundial de petróleo e gás natural, podem colocar o país numa posição vantajosa para competir num sistema de energia global em transição. O facto de acolherem algumas das mais importantes instituições de investigação, de usufruírem de um sistema económico que promove a inovação e a tomada de riscos, de um sistema financeiro robusto, de um mercado interno de energia integrado e de escala continental, de mão de obra especializada e de medidas governamentais construtivas (aos níveis federal, estatal e local), contribuíram para o rápido crescimento da produção de petróleo e de gás a partir do xisto betuminoso. Recentemente, foi implementada legislação – como a Bipartisan Infrastructure Law (Lei Bipartidária para as Infraestruturas) e o Inflation Reduction Act (Lei para a Redução da Inflação) – concebida para alinhar politicamente estes fatores, com vista a contribuir para atingir os objetivos da transição energética.
Contudo, a tomada de posse da administração Trump põe em causa o compromisso dos Estados Unidos para com a transição energética. No campo político, as enormes reservas de combustíveis fósseis dos Estados Unidos podem tornar a transição energética mais questionável, especialmente num cenário em que seja necessário escolher entre os combustíveis fósseis americanos e os novos produtos energéticos chineses. É provável que as leis que apoiam o fabrico e instalação de energias limpas sobrevivam, uma vez que os seus benefícios estão disseminados por toda a economia, inclusivamente em áreas que são representadas pelos republicanos no Congresso. No entanto, para concorrer eficazmente no cenário da transição energética, o país beneficiaria de um ambiente político estável tranversal às várias administrações, o qual incentivasse o setor privado no sentido de inovar e investir fortemente nas energias limpas. De facto, em qualquer país, para que se faça uma transição suave, é importante que haja políticas estáveis. Poucos países, porém, foram palco de mudanças tão drásticas nas políticas climáticas como os Estados Unidos, quer no Congresso, quer na Presidência.
Os produtores de combustíveis fósseis têm grande potencial de adaptação
Os países que dependem da produção de combustíveis fósseis – entre os quais países ricos como os Emirados Árabes Unidos e países pobres, com diversos problemas, como a Nigéria – vão enfrentar vários desafios. A Rússia parece estar numa situação difícil, fruto da enorme dependência da exportação de combustíveis fósseis, da necessidade de encontrar novos mercados no rescaldo da invasão da Ucrânia e, ao nível interno, da rigidez do seu sistema político e económico. Ao nível das infraestruturas, há vários obstáculos que impedem a Rússia de substituir os mercados de gás europeus pela China, o que complica ainda mais o cenário da sua transição.
Entre as principais questões enfrentadas pelos países produtores de energia incluem-se a competitividade face aos custos da produção interna de energia num mercado mundial em provável retração, o grau de dependência das suas economias e dos seus orçamentos de Estado em relação às receitas geradas pela produção de combustíveis fósseis e a capacidade para diversificarem os seus sistemas económicos para além da energia fóssil.
Os países mais ricos têm meios para estabelecer planos para a transformação das suas economias (ver, por exemplo, o Saudi Visio 2030 e o National Transformation Plan), enquanto os mais pobres – especialmente em África – enfrentam desafios existenciais, com a perda de receitas provenientes dos combustíveis fósseis. Face às necessidades prementes de hoje, terão sérias dificuldades em superar os obstáculos futuros.
O debate acerca da transição energética nos países ricos em energia fóssil tende a omitir o impacto das alterações climáticas nestes países. Os países do Golfo Pérsico, ricos em petróleo e em gás natural, são fortemente afetados por temperaturas insuportavelmente altas e têm aquecido ao dobro do ritmo médio mundial. Apesar dos seus recursos em combustíveis fósseis, em África, os países produtores de petróleo terão sérias dificuldades em adaptar-se a um clima em mudança.
Qual o rumo das instituições internacionais de energia?
Como irão mudar a OPEP e a AIE – organizações criadas para promover os interesses dos maiores produtores e consumidores de petróleo, respetivamente –, à medida que o cabaz energético mundial evolui? A OPEP tem procurado alargar o seu alcance, ao incluir alguns produtores não-OPEP (incluindo a Rússia) – a chamada OPEP+ – nos seus acordos relativos às quotas de produção. A AIE tem atraído não-membros com grandes necessidades de energia e alargado o seu âmbito de atuação de modo a incluir a transição energética e a segurança energética. Será que, com o crescimento das novas formas de fornecimento de energia, vão ser criadas novas instituições? Poderão surgir consórcios de fornecedores de energia (como exportadores de gás natural ou de minérios) para assegurar algum controlo e estabilização nos mercados, à semelhança do que a OPEP faz nos mercados do petróleo. Por outro lado, podem surgir grupos de consumidores interessados em contrariar o domínio da China nos vários mercados.
Irão as superpotências económicas mundiais cooperar ou competir?
Embora os grandes consumidores de energia que defendem um rápida transição – incluindo a Europa, os Estados Unidos, a China e o Japão – estejam a conduzir as alterações do sistema mundial de energia, a competição pela liderança tecnológica das novas energias está tornar-se uma questão politicamente relevante. Irão os grandes consumidores ser capazes de identificar áreas de interesse comum numa transição rápida, ou irão as tensões comerciais abrandar o ritmo da transição e elevar os seus custos?
Conforme referimos anteriormente, as divisões e as tensões comerciais em torno dos produtos energéticos não vão afetar todos os países de forma igual. Os países e as regiões que são grandes importadores líquidos de todas as formas de produtos energéticos, incluindo a Europa e o Japão, serão mais afetados do que os países com maior capacidade de produção de todos os tipos de energia, quer atualmente, quer em termos potenciais, como os Estados Unidos e a China. Para quase todos os países, um mercado aberto e cooperativo conduziria a uma transição energética mais rápida e mais barata, mas o sucesso e o ritmo dessa transição não são as únicas variáveis que os decisores políticos se esforçam por otimizar. Provavelmente, as tensões geopolíticas e as rivalidades tornarão inatingível esta solução ideal; resta saber até que ponto conseguiremos aproximar-nos do ideal. Num mundo imperfeito, o melhor caminho para nos aproximarmos da meta passará por estabelecer parcerias de longo prazo com parceiros de confiança, a par de mecanismos nacionais e internacionais para lidar com as falhas de abastecimento.
A Rússia procura alcançar novos clientes... e relevância na transição energética
Num certo sentido, o rescaldo da invasão russa da Ucrânia acelerou uma mudança que já estava em curso: um desvio russo das suas exportações de energia para a Europa em direção aos mercados asiáticos em crescimento, especialmente a China. Irá a Rússia trocar a sua dependência de um único cliente de energia (Europa) por outro (China) – com todos os riscos que isso acarreta para a segurança da procura? Num mercado energético mundial caracterizado por fornecimentos de energia renovável abundantes e diversificados, é possível que a influência geopolítica russa – ainda hoje formidável – venha a diminuir.
E, como referido anteriormente, as perspetivas de a Rússia ter capacidade para se tornar competitiva no domínio dos novos materiais e das novas tecnologias de energia parecem ser diminutas, embora a sua liderança no fornecimento de combustível nuclear possa revelar-se uma vantagem ou até mesmo uma fonte de influência geopolítica.
Dada a natureza global do desafio climático, os vencedores devem reconhecer que não irão beneficiar da transição energética se os vencidos não cumprirem também a transição – aliás, se assim não for, terão uma vitória de Pirro. Nas suas estratégias, os vencedores devem contemplar iniciativas para ajudar os países mais vulneráveis a vencerem na transição energética. As alterações climáticas são um desafio global, pelo que todos serão afetados pelos atrasos na transição energética. Os pensamentos de tipo soma zero não têm cabimento neste processo.
O ritmo e a dimensão da transição energética são tremendamente incertos e, em larga medida, as suas consequências para a segurança energética e económica mundial dependem de aspetos de pormenor.
Algumas vertentes da transição são mais fiáveis do que outras, e podem ajudar-nos a organizar ideias. Mesmo tomando o elevado grau de incerteza como um dado adquirido, os conhecimentos disponíveis acerca dos termos gerais da transição permitem-nos estipular algumas ideias fundamentais sobre as suas prováveis consequências nos principais países e regiões, sobre o modo como, ao longo das próximas décadas, as principais variáveis vão condicionar as alterações na segurança energética, e sobre as áreas em que o planeamento das políticas públicas pode contribuir para lidar com a incerteza.
Em especial, é possível acelerar a mudança através de medidas para gerir proativamente os riscos de segurança que resultem de uma transição energética bem-sucedida (semelhantes, por exemplo, ao sistema de segurança petrolífera da AIE).