Vantagem comparativa: uma lição a relembrar
O Congresso dos EUA aprovou em 2022 dois grandes programas de apoio à indústria, sob o signo da criação de emprego, da transição energética e, sobretudo, da segurança nacional. O Inflation Reduction Act gastará cerca de 400 mil milhões de dólares para promover a transição energética e diminuir a dependência da China em termos de fornecimentos de bens intermédios, por exemplo baterias para carros elétricos, e o CHIPS Act dirigirá 52 mil milhões de dólares para a indústria de semicondutores.
Estes programas enquadram-se numa tendência de protecionismo e reforço da política industrial que se iniciou há cerca de cinco anos e que se alargou aos vários blocos económicos mundiais. O movimento cresceu após o início da pandemia e reforçou-se com o agravamento das tensões militares e geopolíticas no Leste da Europa e na Ásia.
Na União Europeia este processo traduziu-se na adoção da designada “autonomia estratégica aberta” (open strategic authonomy), um termo adaptado da terminologia militar e que traduz a ideia de que se procurará o multilateralismo sempre que possível, mas existirá uma ação autónoma sempre que seja preciso, em particular quando se entender que existem práticas coercivas externas.
Os efeitos desta visão estendem-se à política industrial e têm impacto no funcionamento do mercado único. Durante a pandemia, e em ligação com as políticas de recuperação, a aplicação da política de concorrência da UE foi relaxada (State aid temporary framework) e os Estados-membros embarcaram em políticas de apoio industrial, inevitavelmente diferenciadas consoante a capacidade financeira dos países. Mais recentemente, têm-se feito ouvir apelos à adoção na UE de políticas semelhantes às dos EUA, numa lógica eminentemente retaliatória e envolvendo fundos comuns.
Este conjunto de políticas é apresentado como uma forma de alcançar objetivos meritórios, como a transição energética, a criação de emprego ou a segurança no abastecimento de produtos essenciais. A retórica é normalmente cautelosa e destinada a conquistar o apoio da opinião pública, mas é impossível disfarçar o perigo latente de protecionismo e de práticas anti concorrenciais, que conduzem a prazo ao empobrecimento coletivo.
Nada disto é novo. Existem vários motivos que levam os governos a adotar políticas restritivas do comércio internacional e do investimento estrangeiro, bem como, em alternativa ou em complemento, a subsidiar investimentos internos.
A redução da atividade, acompanhada da destruição de empregos, ou o agravamento de desequilíbrios nas contas externas, tendem a ser motivos fortes. Nestes períodos emerge a perspetiva de que é preferível produzir internamente o que se importa e os governos embarcam facilmente na criação de barreiras ao comércio e em estímulos à produção nacional.
Acontecimentos como a pandemia, a invasão da Ucrânia pela Rússia ou a tensão entre os EUA e a China aumentam a incerteza e provocam medo nos cidadãos, adensando a vontade de menor dependência do exterior e induzindo o apoio a práticas protecionistas. Estas circunstâncias interagem com as dinâmicas políticas internas e extravasam a esfera económica. É verdade que existem legítimos objetivos não económicos, mas os cidadãos devem ter plena consciência do que está em jogo em termos de bem-estar. Nem sempre, ou melhor dizendo, frequentemente, tal não acontece.
Os impactos das políticas restritivas do comércio internacional e do investimento estrangeiro, ou da subsidiação de setores ou empresas nacionais são diversos. As políticas restritivas do comércio, como tarifas e quotas, ou outras mais subtis como procedimentos alfandegários, acarretam o aumento do preço pago pelos consumidores nacionais, baixam o poder de compra dos rendimentos e reduzem a variedade de produtos disponíveis. Os ganhos obtidos pelos produtores domésticos e a eventual receita com direitos aduaneiros não compensam essas perdas nem o menor acesso ao progresso tecnológico. Assim, embora possam surgir efeitos positivos no emprego em determinados setores durante algum tempo, tal ocorre à custa de menor bem-estar social. Por seu turno, as limitações à exportação de produtos tecnologicamente sensíveis tendem a não ser eficazes e os subsídios às empresas nacionais para investimento geram ineficiências, com os montantes gastos pelo Estado a superarem o aumento de bem-estar dos agentes privados. Nos casos em que existem falhas de mercado gritantes os subsídios podem revelar-se adequados, mas o seu peso fiscal estará sempre presente. Por último, as práticas restritivas do comércio e a subsidiação das empresas domésticas cria um espírito de confronto entre países, veiculando a ideia de que o benefício de um ocorre à custa do outro. Em última análise, este espírito tem um efeito negativo sobre a estabilidade e a paz. Ao invés, como a UE tão bem tem demonstrado, o multilateralismo e a integração económica promovem uma coexistência pacífica.
Uma das ideias mais poderosas em economia, que sobreviveu a mais de dois séculos de escrutínio, é a noção de que o comércio assente nas vantagens comparativas não é um jogo de soma nula. As vantagens comparativas radicam nas diferenças entre países e induzem ganhos de troca e de especialização.
Este princípio tem orientado o comércio internacional, contribuindo para tirar milhões de seres humanos da pobreza e dando aos países mais pobres uma via para o crescimento. Não quer isto dizer que não existam perdedores, por exemplo entre aqueles que perdem emprego em setores onde as importações penetram, ou outros efeitos adversos, como desequilíbrios comerciais ou práticas abusivas nos mercados de trabalho e no ambiente. Ainda assim, os ganhos gerados permitem compensar os perdedores internos e existem políticas mais eficazes do que as barreiras às trocas para combater os problemas ambientais ou a desigualdade. A utilização de práticas restritivas do comércio e do investimento internacional como políticas corretoras equivale a resolver o problema das ervas daninhas asfaltando o jardim.
Em suma, a realidade é muito complexa e existem sempre objetivos conflituantes. Por isso mesmo é importante ter um rumo coerente, não falacioso e esperar que todos percebam que cooperar é melhor que isolar. Difícil? Certamente, mas como diria Oscar Wilde «Nothing should be out of the reach of hope. Life is a hope.»