A
A
Crise, crises, etc.

Sentirmo-nos «em crise» pode afastar-nos de uma solução. Saiba como

No seu ensaio para a Fundação, Carlos Leone distingue os termos «crise» e «crises». Compreenda ambos e saiba que as «crises» podem ser meras percepções individuais. Que se auto-alimentam e consomem
5 min
Autor
No capítulo intitulado 'Crise e crises' (do livro 'Crise e crises em Portugal'), Carlos Leone distingue estes dois termos e fala da omnipresença das «crises» no nosso quotidiano. Reunimos quatro excertos do capítulo.

 

Qual é o significado original da palavra 'crise'?

«A Medicina é um campo em que facilmente se entende o uso do termo crise. Ainda hoje se mantém quase inalterado, na prática: uma crise de asma, uma crise maníaca, uma crise epiléptica. Nada que os gregos não conhecessem directamente. Mas o sentido em que se usava o termo, e que hoje ainda se mantém, era mais específico. A crise é o momento de decisão, em que se produz uma viragem decisiva no estado do paciente. Ou seja, o momento no qual ou o doente ou a doença soçobram, o momento no qual o tratamento começa (ou não) a produzir o efeito pretendido. Todos temos ainda experiência disto em coisas tão triviais como uma febre, cujo pico antecipa de imediato o início da melhoria, e diminuição da temperatura, ou complicações maiores. A crise, nesta acepção específica e forte do termo, é o momento decisivo, não tanto o estado que conduz a esse instante ou todo o processo desde o início da doença até à sua cura completa.» (pág. 11)

Mas o termo 'crise' é hoje usado com outros significados. Quais?

«Existe um "discurso da crise" com o qual todos estamos mais ou menos familiarizados. Ele existe no discurso público em vários registos, desde o profissional-especializado, por vezes dito científico, que elabora versões sofisticadas de crises civilizacionais, tal como existe no senso comum, na vox populi que recita como uma lengalenga (ou inflamadamente, nas redes sociais) vulgares acusações e queixumes sobre "esta crise que não acaba" e os seus responsáveis, geralmente "os políticos". Esse discurso, com traços bem identificáveis, é influente desde logo porque se dá como natural, raro é encontrar-lhe oposição. [...] Na prática, esse ambiente geral de crise esgota os outros temas, mais do que se deixa esgotar por simples repetição. Tem traços distintivos: a crise deixou de ser o momento de viragem e passou a ser um estado; deixou de ser produtiva e passou a ser um processo de reciclagem interminável; perdeu o seu carácter excepcional e tornou-se um contexto que deixa camuflada a realidade.» (pág. 22)

As crises que todos os dias ocupam todo o espaço e reforçam a sensação geral, anódina, de crise permanente, nunca se esgotam, todo o material mundano as pode servir.

Hoje em dia não há apenas 'a crise', mas 'crises' na vida das pessoas. O que quer isto dizer?

«As crises aparentam ser alterações profundas mas acabam por ser convulsões de superfície, comparáveis, analogizáveis, mas em derradeira análise inconsequentes – e inflacionadas na sua suposta relevância [...]. Uma crise nunca é fácil, nem o deveria ser, mas não é boa política evitá-la sempre, projectando fora de nós o que nos persegue, seja projectando em outros, em circunstâncias incontroláveis ou em tempos imprevisíveis. Há um luto a fazer, não uma depressão a ter, com a consciência de que as crises que nos agitam, quer verdadeiramente o saibamos e queiramos quer não, são arremedos de uma relação obscurecida que mantemos com a crise [...]. A nível pessoal, os divórcios não têm de ser reduzidos a disputas envolvendo os filhos, as separações não têm por que obrigar a separar amizades de um e de outro, os insultos e as mentiras não têm de ser o desfecho de cada final. Há uma grandeza própria da crise que não tem de ser, nem deve ser, rebaixada em crises, que apenas desvirtuam o que foi bom, ou necessário, e o deixou de ser, por completo. [...] Se não há nada de positivo a reter, é pelo menos possível não nos degradarmos com a degradação das relações em crises sucessivas. A doença infantil de ter sempre a última palavra ou querer ter sempre toda a razão pode não ter cura, mas pelo menos os seus sintomas são minimizáveis pela autocontenção.» (págs. 29-31)

Mas então, o que é exactamente 'crise' e o que são 'crises'?

«As crises que todos os dias ocupam todo o espaço e reforçam a sensação geral, anódina, de crise permanente, nunca se esgotam, todo o material mundano as pode servir. A crise, em sentido forte, antigo, ligava o presente ao futuro, projectava quem a vivia de um ao outro, nada ficava igual. [...] Como sucede com a generalidade do discurso da crise, o discurso sobre a «crise de valores» na actualidade baseia-se antes de mais numa mitificação do passado, uma história tradicional também ela mas sem dados que a comprovem (pelo contrário, basta ler o que nos restou do passado), passível de várias encenações mas sem o efeito catártico – antes traumático. É um discurso que funciona por implicação, mais do que por explicação; daí mesmo ser analógico mais do que analítico, amálgama de experiências distintas, aproximação daquilo que só em perspectiva própria e diferenciada pode ser apreciado. Para tanto, as crises são o instrumento ideal, cada uma por si, todas desgastando em conjunto o ânimo e instalando a anomia, sempre incompleta para que o processo nunca gere entropia que o faça consumir-se de vez.» (págs. 32-33)

 

O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor.

Autor
Portuguese, Portugal