Refugiados: Serão uns mais iguais que outros?
Em menos de um mês a guerra na Ucrânia já é responsável pela segunda maior vaga de refugiados do mundo, as estimativas apontam para a saída de 4 milhões de pessoas, mas é preciso não fechar o ângulo apenas neste conflito.
Na última década mais do que duplicou para quase 27 milhões o número daqueles que fogem dos países onde nasceram, e para quem cada fronteira ultrapassada é uma vitória e ao mesmo tempo um desafio. É deles que falamos, dos que têm mais do que uma terra e ao mesmo tempo nenhuma, fogem da guerra, da perseguição, da fome ou do desespero da pobreza crónica. São divididos com rótulos de refugiados, migrantes, asilados, imigrantes ilegais. São várias realidades, mas a mesma urgência, nesta crise interminável, que vamos traduzir hoje com Gonçalo Saraiva Matias, professor da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa. No plano das respostas existem diferenças entre quem é refugiado e quem é migrante?
Existem diferenças estabelecidas no direito internacional. Um dos problemas mais sérios é tentar encaixar a realidade nos quadros conceptuais que nos foram deixados há muitos anos. A lei separa os requerentes de asilo, pessoas que devem cumprir os critérios estabelecidos numa convenção de 1951, pensada para pessoas que fogem de conflitos, de perseguições religiosas, étnicas e políticas. Essas pessoas são sujeitas a uma entrevista nos países onde requerem o asilo, e se os países entenderem atribuem-lhes o estatuto de refugiado. Esse estatuto confere uma proteção do ponto de vista internacional e essas pessoas podem ficar a residir legalmente no país que lhes concedeu asilo, com todos os direitos de um residente, incluindo o direito de trabalhar e os direitos sociais. Enquanto os conflitos ou as perseguições durarem, têm a garantia absoluta de que não são devolvidos à sua origem. É um estatuto bem pensado, mas muito desatualizado.
Existem problemas comuns aos quais é preciso dar resposta, tanto nessas situações de refugiados, como de migrantes, a que assistimos agora, com vagas sucessivas e cada vez com maior frequência.
Não temos políticas públicas desenhadas para isto, reagimos no momento. Assistimos a isso em 2015, e de 2015 para cá não nos preparámos para uma nova realidade. A política pública tem que ser desenvolvida em função do fluxo, não apenas do estatuto das pessoas. Em 2015 chegou um milhão de pessoas à fronteira da União Europeia [UE] e é preciso gerir esse fluxo porque os migrantes económicos continuam a ser pessoas que estão às nossas portas à espera de proteção. Não há uma definição muito rigorosa de migrante económico, mas entende-se como alguém que saiu do seu país voluntariamente. Isto é discutível, aquelas pessoas que saem dos seus países em resultado das alterações climáticas, pessoas que saem porque se encontram em situação de pobreza extrema ou de subnutrição, não são pessoas que voluntariamente abandonem os seus países. E mesmo aos que abandonam voluntariamente, tem que lhes ser dada uma resposta, e a que a UE tem dado nos últimos anos é insuficiente. Além do mais ainda vivemos na Europa, e em especial em Portugal, uma situação de crise demográfica, estamos num envelhecimento progressivo e precisamos de pessoas.
Tem defendido que, mais do que uma agência para os refugiados, devia existir uma agência para as migrações. Que vantagens é que encontra nesse modelo?
A gestão do fluxo, é importante olhar para e perceber quantas pessoas estão a chegar, de que modo é que as podemos integrar, como é que podem trazer valor acrescentado à nossa sociedade. Entretanto foi criada uma agência para as migrações, como forma de substituição do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras [SEF], que foi extinto por uma lei entretanto aprovada. Em 2015 recebemos nas fronteiras da UE cerca de um milhão de pessoas e isso foi considerado uma grande crise migratória. Houve quem falasse de invasão, de diluição cultural. Em pouco mais de duas semanas de conflito, já temos quase três milhões de pessoas.
As lições que tirámos da última vaga permitem-nos agora dar uma melhor resposta, ou também estamos a assistir a algum voluntarismo por parte dos vários estados, e continua a faltar uma abordagem comum aos vários países da UE?
Aprendemos pouco. Em 2015 o sistema de asilo na Europa entrou em colapso, não resistiu. Um dos temas de que se falou muito foi o tema das quotas, e esse tema nunca conseguiu ser implementado, por oposição do Grupo de Visegrado. Há uma alteração, a decisão que a UE tomou agora. Aliás, Portugal até se antecipou a essa decisão de ativar o chamado mecanismo de proteção temporária. Este mecanismo nunca tinha sido utilizado, é pensado para situações de migração em massa. Foi ativado e tem várias vantagens, uma delas é a rapidez com que o processo é feito, ao contrário do regime de asilo normal, que carece de uma entrevista individual e relativamente demorada. Mas o grande problema, e já o foi em 2015, é saber como é que articulamos a resposta em termos europeus. Não sabermos qual é o número de refugiados que vai para cada país, neste caso de beneficiários de proteção temporária. Há muito voluntarismo, mas muito pouca coordenação, podemos chegar ao fim numa situação de grande desigualdade entre países, e volta a colocar-se a questão de saber como é que repartimos os números porque essas quotas não existem. Em 2015 também houve muito voluntarismo e muito boa vontade, ao início. A própria chanceler Merkel que na altura tinha declarado que recebia de braços abertos um milhão de pessoas, pagou o custo político dessa declaração. Não podemos esquecer as lições do passado, as opiniões públicas podem virar rapidamente.
Esta pressão das opiniões públicas face a essa entrada, porventura desigual, em relação aos vários países, pode levar a um retrocesso, que de certo modo volte os governos contra esta entrada? Como é que se pode evitar chegarmos a esse ponto de pressão?
Pode. Itália foi o país deixado sozinho pela UE a gerir a sua crise migratória, foi o primeiro país a fazer salvamentos no Mediterrâneo. E depois elege Salvini que, não só não salvava pessoas no Mediterrâneo, como impedia os navios que salvavam pessoas de aportarem em portos italianos. Vimos esta ascensão de partidos que faziam da questão migratória uma questão essencial do seu discurso político. Mas o elefante na sala é a receção muito mais fácil que é feita aos ucranianos. Isso que pode ser compreensível do ponto de vista cultural e de identidade, não nos deve fazer esquecer as reações que podem resultar deste movimento.
Até porque há uma crise económica, provavelmente, a caminho.
Neste momento há uma reação que é essencialmente emocional. As opiniões públicas vão sentir os efeitos da guerra, já o estão a sentir nos combustíveis, na escassez alimentar. Quem desenha as políticas públicas tem que acautelar que este movimento se consegue gerir de forma tranquila, e que não vamos ter as mesmas reações que tivemos no passado.
Na sua opinião a UE tem falhado neste aspeto dos instrumentos e dos atores que tem no terreno? Há uma multiplicação de agentes no terreno, e menos um figurino que fosse mais acertado para lidar com este tipo de problemas?
Essa reforma nunca se conseguiu fazer. Foi dado mais poder à EASO, que é a agência europeia para os refugiados. A Frontex, que é a agência responsável pelas fronteiras externas, também foi dotada de mais meios financeiros. Mas não temos uma ação coordenada, hoje olhamos para a fronteira da Polónia e vemos agências europeias, mas muito desarticuladas. Vemos agências das Nações Unidas e vemos o voluntarismo dos países, mas seria muito importante haver uma coordenação institucional.
Falava há pouco no regime temporário que foi criado de forma a tornar mais expedito todo este processo. Mas este regime também não dá uma garantia, não é tão seguro como o outro regime que este visou acelerar.
Este regime temporário não tem o nível de proteção e de segurança que tem a concessão do asilo. Durante esse ano as pessoas têm uma proteção robusta, têm acesso à saúde, à segurança social, ao ensino. Se se tornar necessário, estas pessoas podem requerer o asilo e vir a beneficiar de asilo no futuro. Há outros beneficiários ou requerentes de asilo que podem não ser ucranianos e que estão neste conflito, e esse aspeto começa a aparecer muito, russos que requerem asilo porque são alvo de perseguição na Rússia.
Hannah Arendt, descrevendo outra realidade, a dos refugiados judeus, escreveu: "Perdemos a nossa casa, ou seja, a familiaridade da vida diária. Perdemos a nossa profissão, ou seja, a confiança de ser útil. Perdemos a nossa língua, ou seja, a naturalidade das reações, a simplicidade dos gestos e da expressão dos sentimentos." Quem chega às fronteiras da Europa transporta consigo esta perda. Como é que os estados que os recebem podem contribuir para responder a esta perda, como é que os podem integrar de uma forma eficaz?
Ainda vivemos com muitos mitos e preconceitos que desajudam na integração. A primeira ideia, e este caso da Ucrânia mostra isso, é de que qualquer pessoa pode ser refugiada. É evidente que há pessoas de todos os estratos, de todos os tipos, com toda a espécie de educação, que são refugiadas. É muito importante atender ao tipo de pessoas que estamos a receber, à integração que vai ser feita, onde é que vão trabalhar, umas altamente qualificadas, outras menos qualificadas. É importante aprender com os erros do passado, conhecemos bem a comunidade ucraniana, chegou a ser a principal comunidade migrante em Portugal. E houve muito desperdício, aquilo que em migrações se designa de brain waist. E até para o desenvolvimento do país seria importante que esse acolhimento fosse bem feito.
No caso da crise atual temos a situação muito particular de quem chega serem muitas vezes as mulheres e as crianças. Que desafios acrescidos transporta essa situação?
Há um desafio acrescido que tem a ver com o reagrupamento familiar, e isso está previsto no regime de proteção temporária. Uma vez que esses homens possam sair do país, têm o direito a juntar-se às suas famílias. Há ainda uma outra realidade que tem a ver com as crianças não acompanhadas, que estão sujeitas a um enorme risco de exploração infantil, de redes de tráfico humano. Há mecanismos de proteção, mas também não têm o nível de aprofundamento que deveriam ter. Isso implicaria que na fronteira houvesse uma concentração de recursos muito superior, especializados e profissionais que permitisse identificar as crianças e acolhê-las adequadamente.
No caso das famílias ucranianas que agora se vão reagrupar em Portugal, o facto de existir já uma comunidade ucraniana com raízes em Portugal, pode ajudar a essa integração.
Em migrações é muito frequente que a integração e a procura pelos locais de acolhimento seja facilitada pela existência prévia de relações familiares. Em Portugal, uma das razões para um relativo insucesso em 2015 foi precisamente não existir essa relação prévia. Os refugiados, que vinham essencialmente do Médio Oriente, não encontravam em Portugal relações familiares anteriores. Neste caso essas relações anteriores existem.
Muitos poderão querer ficar, outros poderão querer regressar para contribuir para o esforço de reconstrução. Como é que se pode preparar esse caminho de regresso de modo tranquilo?
Há uma necessidade de articular estes instrumentos, temos esta proteção temporária e depois teremos de ver se ela é renovada ou se é substituída pelo asilo. Nalguns casos as pessoas quererão regressar. A ideia de que as pessoas não querem regressar, no caso dos refugiados, é uma ideia que não tem nenhuma adesão à realidade, as pessoas querem que o conflito termine, querem voltar aos seus países o mais rapidamente possível.
Esta é uma situação que nos toca mais, que está mais na ordem do dia por causa da guerra na Ucrânia. Mas já foi considerada uma crise interminável, estas vagas sucessivas de gente que foge. Podemos estar aqui a dizer que existe uma discriminação entre quem chega às fronteiras da Europa?
É evidente essa distinção entre os refugiados do Médio Oriente em 2015, e estes que estão a chegar agora. Quanto maior a proximidade cultural, mais fácil a integração, mais fácil o acolhimento por parte das sociedades. Em Portugal tivemos comunidades de língua portuguesa, como a cabo-verdiana ou a brasileira, e não é pelo facto de falarem a mesma língua e de terem uma enorme proximidade cultural, que não tiveram dificuldades na integração e que não foram objeto de discriminação.
O que é que podem fazer os estados para informar e sensibilizar as comunidades que vão receber estas pessoas de modo a garantir essa integração o mais tranquila possível?
O pior que pode haver nestas circunstâncias é a desinformação, os mitos. A ideia de que as pessoas não têm direito a proteção ou que vêm roubar empregos. Todos esses mitos devem ser afastados e as pessoas devem ser esclarecidas. Temos uma longa tradição de integração na Europa e também em Portugal. Há índices de integração no famoso MIPEX, em que Portugal está em segundo lugar a seguir à Suécia. Portugal tem uma cultura vasta de acolhimento, até porque já foi um país de emigração.
As alterações climáticas vão seguramente ser um fator acrescido de migração, podem levar a este acréscimo do número de pessoas que é obrigada a sair dos países.
As alterações climáticas terão um impacto tremendo porque há populações muito significativas no mundo que vão deixar de ter local para viver. Não estamos preparados do ponto de vista legislativo para essa realidade. E Portugal estará muito exposto, boa parte desse movimento virá da África subsaariana, países como a Nigéria, que são muito populosos e que vão estar sujeitos a essa realidade. Esta rota do Mediterrâneo Ocidental vai ser muito procurada.
Olhando assim para o mapa geral persiste a ideia de que o Norte ainda está mais fechado à ideia do acolhimento do que o Sul, que parece estar mais disposto a abrir as portas.
Os movimentos Sul-Sul sempre foram muito frequentes porque não havia alternativa. Quando assistimos, na África subsaariana, a catástrofes humanitárias, ao que aconteceu no Ruanda nos anos 90, e outras catástrofes, os países vizinhos não tinham alternativa a não ser acolher essas pessoas. África tem muita experiência disso. A fortaleza-Europa, defendeu-se e ergueu muitos muros. No futuro isso vai ser impossível de manter, a globalização permitiu ultrapassar algumas dessas realidades e assistimos a movimentos migratórios norte-sul com alguma frequência. Vamos assistir crescentemente a movimentos em massa, que vão desafiar esses conceitos de estado-nação e da Europa-fortaleza.
Também parece existir por parte de certos países a chamada externalização da imigração, ou seja, fecharem as fronteiras e remeterem esses migrantes para outros países. Que riscos é que representa esta situação?
Foi a solução encontrada pela UE para resolver a crise migratória de 2015. Desde logo o acordo com a Turquia. Essa solução de externalizar, em especial para regimes que, ou são autocráticos ou são estados falhados, não é uma solução que honre a tradição humanitária da UE. É fundamental garantir que onde existem campos de refugiados as pessoas têm um tratamento condigno.
Qual é o grande desafio que se coloca aos países, à comunidade internacional, em relação à questão das migrações?
É fundamental olhar para os fluxos de forma integrada, garantir que há alguma equidade na distribuição destes fluxos e garantir que os países estão conscientes das dificuldades que se vivem na origem. E que no fundo vivemos numa comunidade humana, somos cidadãos do mundo.
Pode ouvir na íntegra esta conversa da jornalista Judith Menezes e Sousa com Gonçalo Saraiva Matias, ex-director do Observatório das Migrações, director de Estudos da Fundação e director da Católica Global School of Law, no 2 º episódio do podcast «O Mundo Que Se Segue.
O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor