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Imagem de uma fábrica a lançar fumo para o céu.

Receita para a ansiedade: ler a declaração final da COP28

A declaração aprovada na Cimeira do Clima da ONU, que agora terminou, é meio caminho andado para uma crise de ansiedade lexical, conta o jornalista Ricardo Garcia. Onde está a ação para o combate às alterações climáticas? Onde estão os compromissos? Na prática, resume nesta crónica, «ninguém é obrigado a nada».
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Tenho o péssimo hábito de ler textos aborrecidos. E faço-o com algum gosto, como um desafio. Por isso não me importei de examinar detalhadamente, parágrafo por parágrafo, as 21 páginas da decisão final da COP28 – a recente cimeira da ONU sobre o clima, no Dubai.

É um exercício necessário. Afinal, o documento resume o que quase 200 países estão dispostos a fazer para evitar o pior da crise climática. Em tese, deverá servir de guia para a ação de governos, empresas e cidadãos. Orientará, quiçá, investimentos. E, se tudo correr bem, deixará, a prazo, os combustíveis fósseis debaixo da terra.

Tudo isso sugere que a declaração final da COP28 esteja cheia de verbos fortes e indiscutíveis, que explicitamente comandam a ação. Enganam-se…

Nas decisões das cimeiras climáticas da ONU, normalmente há um verbo a abrir cada parágrafo, escrito em itálico para lhe conferir força e protagonismo.

Contei-os e o mais comum no texto final da COP28 é o verbo «reconhecer». Reconhece-se, por exemplo, o que a ciência já disse: que um aquecimento global acima de 1,5 graus Celsius vai ser catastrófico; que é preciso reduzir drasticamente as emissões de CO2; que estamos longe da meta; que temos de fazer mais. Já o sabíamos, mas, pronto, está reconhecido.

Reconhece-se também o que é óbvio: que é fundamental combater a fome ou proteger os oceanos; que os impactos das alterações climáticas são complexos e ultrapassam fronteiras; que a cooperação internacional é essencial.

O jargão da diplomacia climática é tão prolífico e tortuoso, que, por vezes, é difícil compreender o que está a ser reconhecido.

Muito do que se reconhece já tinha sido reconhecido em decisões anteriores, de outras COPs, como as necessidades diferenciadas dos países em desenvolvimento. Mas também se reconhece que determinadas questões ficaram em aberto e terão de ser resolvidas nas próximas COPs.

O jargão da diplomacia climática é tão prolífico e tortuoso, que, por vezes, é difícil compreender o que está a ser reconhecido.

Com tanto reconhecimento, lá se foram 35 parágrafos da declaração final da COP28.

A seguir no ranking, está o verbo «notar», no sentido de observar ou registar algum facto já conhecido – como os alertas científicos sobre o que está ou pode vir a acontecer.

Na terceira posição, finalmente, a coisa começa a mexer. Temos o verbo «encorajar». Por exemplo, todos os países são encorajados a apresentar planos climáticos mais ambiciosos – tendo-se já reconhecido e notado, amplamente, que os planos atuais pecam por falta de ambição.

Assim como encorajar, temos também «convidar», «exortar», «apelar» – felizmente para quem redigiu o texto, há muitos sinónimos para dizer o mesmo. O documento apenas «apela» aos países para que contribuam para uma transição que nos afaste dos combustíveis fósseis – o resultado considerado mais importante da COP28.

As cimeiras do clima são mesmo isso: uma classe com alunos malcomportados, na qual o professor, sem autoridade, tenta pateticamente estimulá-los a fazer o trabalho de casa.

Ler a declaração aprovada na conferência é meio caminho andado para uma crise de ansiedade lexical. Onde está a ação? Onde estão os compromissos? Na prática, ninguém é obrigado a nada. As cimeiras do clima são mesmo isso: uma classe com alunos malcomportados, na qual o professor, sem autoridade, tenta pateticamente estimulá-los a fazer o trabalho de casa.

É certo que o funcionamento dessas conferências da ONU não ajuda. Como tudo tem de ser aprovado por todos os países, por unanimidade, qualquer um tem o poder de exigir que o seu recado ou interesse próprio seja incluído nas decisões. Nem de propósito, o documento final tem 196 parágrafos, um a mais do que os 195 países que subscreveram o Acordo de Paris – o tratado adotado em 2015 para o combate às alterações climáticas.

«Decidir» de facto, é algo que só aparece oito vezes na declaração final da COP28. Decidem-se sobretudo procedimentos, por exemplo, sobre como e quando determinadas discussões serão conduzidas.

Também se «resolve», mas pouco, só três vezes. E só numa única passagem é que os países se comprometem com algo: acelerar a ação climática nesta década, considerada crítica. Como? Apelando, encorajando, exortando, convidando e, sobretudo, reconhecendo.

 

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